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Religiosidades e terapêuticas nova era: conectando self e universo

As práticas nova era, por sua alta transmutabilidade, não permanecem restritas aos contextos e grupo nos quais estas foram inicialmente produzidas. O tempo e as reapropriações, recombinações e ressignificações continuamente compõem novos “emaranhados criativos” (INGOLD, 2012b). No início desse movimento, como explica De La Torre (2013):

[...] a nova era era considerada pelos sociólogos como uma expressão contracultural da modernidade ocidental. Nasceu no contexto histórico da Guerra do Vietnã nos Estados Unidos, onde se originaram subculturas emergentes que se opunham à guerra, ao racismo, ao sexismo, ao industrialismo, às ameaças nucleares e à deterioração ambiental. Como Heelas (1996) diria, forneceu uma utopia para um modo de vida alternativo. Ferguson (1981), em sua obra A conspiração de Aquário, conseguiu combinar o que pareciam ser casos particulares de comunidades isoladas em uma rede que promoveu a transformação da consciência como motor de uma mudança de vida, capaz de infectar o mundo para transformar o planeta em um todo harmonioso (DE LA TORRE, 2013, p.5, Tradução livre).

Os princípios nova era, conforme descreve De La Torre (2013), apontam o final da Era Cristã, dando lugar à Era de Aquário. Assim, na concepção dos adeptos ou “errantes” (SOARES, 1989), uma era racional e material seria suplantada por uma era regida pela criatividade, pela experiência mística e pelo equilíbrio com a natureza.

Amaral (2000) afirma que o suporte inicial para o movimento nova era se deu na convergência entre as religiões orientais, místicas e o pensamento ocidental no início do século XIX. Mas foi a partir dos anos 1960 e 1970 que se deu o seu auge, quando contestações sociais e religiosas formularam as primeiras combinações ecléticas de técnicas de expansão da consciência e do encontro com o “self” – “o verdadeiro eu” – em contraposição ao ego. A autora destaca, no entanto, que tais métodos foram recortados de seus contextos originais e instrumentalizados muitas das vezes a despeito das estruturas teóricas em que eram baseados (AMARAL, 2000).

Ainda conforme Amaral (2000), a tradição romântica ocidental também influenciou o movimento nova era. Acrescentou-se uma percepção divina do universo que buscava

dissolver dualismos e reconciliar oposições que possibilitariam “a ideia de uma realidade dinâmica, na base de um processo sem fim da evolução espiritual do homem; do constante tornar-se pessoa humana e dos eventos que constituem a história natural e social, assim tornados únicos e incomparáveis” (AMARAL, 2000, p. 26).

Esse processo de “tornar-se” passa pela errância religiosa e o cruzamento heterodoxo de várias tradições, além de promover ideias de circulação e fluxos de identidades que caracterizam uma espiritualidade desterritorializada. É nesse sentido que a experiência individual é privilegiada. Como afirma Tavares (1998), o traço distintivo do relacionamento da nova era com as religiões é que este se dá através da pluralidade, diferentemente dos fiéis tradicionais. Essas novas religiosidades identificam novas formas de convivência religiosa que não se limitam à valorização da subjetividade, mas também ao desprendimento das instituições.

Na confluência da contracultura dos anos 70, das religiões orientais e do esoterismo, parece delinear-se uma nova conformação, ao nível pessoal, de diferentes orientações cosmológicas e conferindo ao indivíduo um lócus central no universo da experimentação religiosa (TAVARES, 1998, p.30).

A relação entre os referentes globais da rede transnacional pela qual circulam os nativos nova era espelha também princípios do bem-estar individual e universal que permeiam esse campo. Em certo sentido, o vínculo individual enquanto self desloca-se de uma instituição religiosa para o Universo como um todo holístico38 e propõe uma relação que, portanto, é individual e autônoma, embora também possa ser descentrada, entre o self e o planeta.

Assim, esse “espírito sem lar”, como denominou Amaral (2000), já não se vincula a pessoas, a grupos ou a lugares (interrompendo a circulação das experiências por meio de vínculos estáveis), mas a uma vasta rede transnacional (SILIPRANDI, 2000). Entretanto, os desdobramentos desse movimento contracultural extravasaram os princípios iniciais, reformulando-se de diversas maneiras, gerando variações e reapropriações locais que dialogam com os referentes globais nova era.

Guerriero (2013) aponta que é mais produtivo ressaltar os componentes-chave de seu marco interpretativo tais quais: a ideia da existência de um self sagrado e da necessidade de seu desenvolvimento como parte de uma cosmovisão holística, combinando a transformação

38 A expressão “holístico(a)” vem sendo muito utilizada por estes grupos nova era e representa uma

compreensão do todo, quer seja ele organismo humano, planetário ou de quaisquer outros tipos, de maneira integrada e que oferece uma compreensão maior que a soma de partes.

individual com a transformação universal como caminho para o advento de uma nova era cósmica. Ele destaca que a afirmação da autonomia pessoal e o valor da circulação dentro desses grupos confirmam a necessidade, enquanto forma constituinte, de um circuito transnacional por onde os nova era transitam. A experimentação das diversas tradições espirituais ganha mais força do que a homogeneidade de grupos religiosos.

Essas reformulações do fenômeno trazem à tona questões que podem ser tidas como paradoxais, como entre uma contracultura que se opõe ao capitalismo ocidental, mas que, ao mesmo tempo, busca sucesso material e aprimoramento espiritual em uma relação de meta- referência entre o indivíduo e o universo no ideário da modernidade. Amaral (1998) problematiza esse ideário indicando que a nova era parece se realizar por meio do mercado.

O aprimoramento do sujeito em sua relação com o planeta implica em constantes movimentações na busca por harmonização, ora mais centrada em projetos voluntaristas do indivíduo, ora mais disseminadas na imanência do universo. Como destaca Tavares (2015b, p. 2):

São movimentos que podem ser compreendidos nos termos propostos por Leila Amaral (2000) quando argumenta que as religiosidades nova era deslizam entre duas amplas direções para o aprimoramento do self. Na primeira situa-se a “versão hard” do complexo “magia-poder” em que as atenções se voltam para procedimentos de neutralização ou impedimento de energias de perturbação da harmonia mental. Nessa variante predomina a ideia de combate em vez da serenidade implicada nas metáforas de paz e harmonia. A outra variante, identificada pelo par “espiritualidade-harmonia”, pode se entrecruzar com a primeira, produzindo interrupções na dinâmica do “combate” e do fortalecimento do indivíduo para situá-lo numa perspectiva de descentramento do ego. (Tradução do autor)

No mesmo trabalho Tavares chama a atenção para a centralidade dos projetos de cura no ideário de harmonização da nova era, em que a doença é compreendida como sinal do rompimento do processo de harmonização, mas também pode ser encarada como uma “oportunidade” de redirecionamento e recuperação do equilíbrio. Nessa concepção, o paciente é, ao mesmo tempo, o agente responsável e transformador desse processo, tanto da instauração da doença como de sua recuperação.

Esse movimento pode se espraiar para experiências de liberdade individual como processo chave para o desenvolvimento espiritual e, concomitantemente, para experiências de responsabilidade coletiva do esforço individual de cada um para que a transformação universal aconteça. Ambas as modalidades de aprimoramento são observadas em Serra Grande, em ideários e práticas que afirmam sua desobrigação com relação aos outros ao

mesmo tempo que cobram dos outros transformações pessoais que contribuam para o bem comum. Normalmente, tais afirmações são colocadas pelos nova era ressoando sua conotação religiosa na colonização de outras formas de habitar. Muitas vezes me foi afirmado por diversos terapeutas holísticos de Serra Grande que a minha cura ou a cura de cada um representava a cura do planeta e deveria ser buscada por meio da experimentação das mais diversas técnicas terapêuticas oferecidas na Vila Alta.

Nesse sentido, mesmo que o capitalismo figure no pano de fundo de uma crítica contracultural, o mercado não é compreendido como uma entidade exterior ao movimento de desenvolvimento do self pelo desenvolvimento universal. O consumo de itens que compõem esse universo, originalmente criado pela classe média inglesa e norte-americana figura como parte importante do processo de desenvolvimento individual, especialmente no que se refere às vivências terapêuticas.

Tavares (2015c, p. 2) aponta para essa questão ao destacar que o movimento nova era encontra-se atravessado por duas tendências contrastantes:

[...] promovendo, por um lado, uma recusa da modernidade econômica (nos seus efeitos de degradação ambiental, social e ética) e, por outro, uma afinidade com valores centrais da modernidade como o individualismo, a reflexividade do sujeito e o consumo. Curiosamente, pode-se sugerir que a tensão entre essas tendências, longe de deflagrar disputas em torno de variantes nova era mais ou menos “autorizadas”, constitui a própria “marca” do movimento, reconhecendo como referente último de autoridade as “verdades” que emergem das experiências ou vivências dos sujeitos. (tradução do autor)

As experiências terapêuticas têm se apresentado como parte importante dos processos de desenvolvimento espiritual nova era. Terapias, técnicas respiratórias, orientações alimentares, práticas físicas, cerimônias, utilização de ervas e outras substâncias e tantas outras ferramentas compõem esse arsenal para o desenvolvimento espiritual, individual e coletivo, como define Tavares (2017, p. 208):

É o que se pode observar atualmente com o conceito de “terapêutico”. A extensibilidade que essa noção vem adquirindo pode ser compreendida nesta perspectiva (Tavares 2006). O “terapêutico” não se restringe ao conjunto de mediações técnicas que caracterizam os procedimentos e os efeitos mobilizados na cura, sejam eles religiosos ou não (biomedicina, terapêuticas alternativas, religiosas e tradicionais). O “terapêutico” também pode adquirir uma conotação de “valor” que se deseja cultivar mobilizado por meio de um engajamento que compreende uma transformação dos afetos: nesse caso buscam-se os efeitos decorrentes de práticas que, a princípio, não seriam consideradas como terapêuticas (práticas alternativas como a biodança, jogos

divinatórios, técnicas de meditação etc.). O seu campo semântico envolve, assim, um leque ampliado de experiências que também podem delinear “estilos” de vida.

Esse meta-referente que orienta os estilos de vida que aqui denomino como habitar(es) (INGOLD, 2012a) apresenta o imbricamento entre a cura e as religiosidades na cultura nova era (TAVARES, 2012), produzindo certos agenciamentos de cura que promovem continuidades entre uma ampla diversidade de técnicas e conhecimentos científicos, religiosos, esotérico-iniciáticos, populares e étnicos. No caso brasileiro referências religiosas de matriz africana, indígenas, orientais, cristãs colocam-se nos circuitos terapêuticos nova era frequentemente reformulados em vivências coletivas e projetos individuais. Com uma oferta vasta e diversa, Serra Grande se coloca como um importante centro de terapêutica nova era no âmbito da rede holística transnacional.