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A hierarquia das leis está ligada primordialmente à questão do fundamento de validade das normas, importando saber se uma norma extrai seu fundamento de validade de outra. Em tal situação, caso haja a constatação de que uma determinada norma é decorrente de outra, então, ipso facto, entre elas haverá inexoravelmente um escalonamento vertical, uma necessária estrutura hierárquica.

É de Hans Kelsen a doutrina de escalonamento de normas, quando uma lei de hierarquia inferior busca o seu fundamento em outra de hierarquia superior. Consoante o mestre de Viena, nessa busca ascendente, vai-se procurando alcançar fundamentos de validade em graus superiores até chegar à Constituição, que é o fundamento de validade de todo o sistema infraconstitucional. Eis excerto de seu pensamento:

Como uma norma jurídica é válida por ser criada de um modo determinado por outra norma jurídica, esta é o fundamento de validade daquela. (...) A norma que determina a criação de outra norma é a norma superior, e a norma criada segundo essa regulamentação é a inferior. (...) A unidade dessas normas é constituída pelo fato de que a criação de uma norma – a inferior – é determinada por outra – a superior – cuja criação é determinada por outra ainda mais superior, e que esses regressus é finalizado por uma norma fundamental, a mais superior, que, sendo o fundamento supremo de validade da ordem jurídica inteira, constitui sua unidade. (...) A estrutura hierárquica da ordem jurídica de um Estado é, grosso modo, a seguinte: pressupondo-se a norma fundamental, a constituição é o nível mais alto dentro do Direito nacional.166 (grifos do autor)

164 Aplicabilidade..., op. cit., p. 245. 165 Idem, p. 238.

Baseado na doutrina de Kelsen, José Afonso da Silva ensina que a Constituição é entendida, no sentido “jurídico-positivo”, como a norma positiva suprema, conjunto de normas que regula a criação de outras normas. É a lei nacional de mais alto grau. No sentido “lógico-jurídico”, significa “norma jurídica fundamental hipotética”, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental de validade da constituição jurídico-positiva. 167

Acrescenta José Afonso da Silva, traduzindo o pensamento de Kelsen:

(...) a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e na organização de seus órgãos (...). Nossa Constituição é rígida. Em conseqüência, é a lei fundamental e suprema do Estado Brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere poderes e competências governamentais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental.168

Por ser a lei fundamental que outorga validade a todo o sistema jurídico de um Estado, a Constituição, por conseqüência lógica, se encontra em patamar hierárquico superior em relação às demais normas que integram o ordenamento jurídico.

Contudo, quando se avança sobre o tema no plano infraconstitucional, fica patente a divergência doutrinária sobre a questão da existência de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária.

Nessa perspectiva, esboça-se a primitiva lição de Geraldo Ataliba,169 um dos

pioneiros do estudo da questão em testilha, que proclamou por tempos a superioridade hierárquica da lei complementar sobre a ordinária. Disse “proclamou, pois, conforme se exporá ao seu tempo, o ilustre professor mudou sua visão sobre o tema.

A doutrina inicial de Geraldo Ataliba se baseia primordialmente em três pressupostos básicos, a saber: 170

a) a Constituição coloca as leis complementares em segundo lugar na gradação de elaboração do processo legislativo, logo abaixo das emendas

167 Curso de Direito...., op. cit., p. 41. 168 Idem, pp. 47-48.

169 Lei Complementar..., op. cit., p. 29-31

constitucionais e acima das leis ordinárias e de outros atos normativos com mesma força destas;

b) a impossibilidade jurídica de a lei ordinária alterar ou revogar a lei complementar, ao passo que, inversamente, esta altera e revoga aquela;

c) as leis complementares são hierarquicamente superiores a todas as demais normas jurídicas do sistema positivo, salvo as leis constitucionais, pelo fato de somente poderem ser aprovadas por quórum especial e qualificado.

José Souto Maior Borges é adepto da doutrina que prega a inexistência de hierarquia entre leis complementar e ordinária, tanto no aspecto formal, quanto no material, e, nesse ponto, contesta todas as premissas do pensamento de Geraldo Ataliba acima estampadas.

Ele afirma que a posição topográfica intermediária ocupada pela lei complementar em dispositivo Constitucional, defendida por Geraldo Ataliba, não se segue o entendimento de que a lei ordinária vá necessariamente retirar daquela seu fundamento de validade.171 Entende José Souto Maior Borges que a validade da lei

ordinária decorre, em princípio, da sua conformação com a constituição e que, por isso, “a lei ordinária é obrigada a respeitar o campo privativo da legislação complementar, tal como esta não pode invadir o campo da lei ordinária.”172

Sobre a impossibilidade jurídica de a lei ordinária alterar ou revogar a lei complementar, ou vice-versa, salienta José Souto Maior Borges o que segue:

Se a lei complementar (a) invadir o âmbito material de validade da legislação ordinária da União, valerá tanto quanto uma lei ordinária federal. Sob esse ponto não há discrepância doutrinária. A lei complementar fora do seu campo específico, cujos limites estão fixados na Constituição, é simples lei ordinária. (...) Se, inversamente, (b) a lei ordinária da União invadir o campo da lei complementar estará eivada de visceral inconstitucionalidade porque a matéria, no tocante ao processo legislativo, somente poderia ser apreciada com observância de um quorum especial e qualificado, inexistente na aprovação da lei ordinária.173

Arremata José Souto Maior Borges que quando a lei complementar extravasar o seu âmbito material de validade e disciplinar matéria da legislação ordinária da União, será substancialmente lei ordinária, posto que não é o rótulo ou o

171 Lei Complementar..., op. cit., p. 21. 172 Idem.

nomen juris ou quórum de aprovação que caracterizará o fenômeno. Em tal caso a

lei complementar poderá ser revogada por outra lei ordinária da União.174

Refutando a tese de Geraldo Ataliba de superioridade hierárquica em função da aprovação da lei complementar por quórum especial e qualificado, José Souto Maior Borges, reportando-se à EC 1/69, escreveu que “o quorum art. 50 da Constituição, é tão-somente um requisito de existência; não um requisito de eficácia da lei complementar”. 175 Acrescentou ainda:

O quorum especial e qualificação é um simples requisito constitucional de integração ou perfeição do ato e, pois da sua existência como lei

formalmente complementar. Não interfere com a eficácia do ato legislativo,

um vez editado. O art. 50 da Constituição é regra que concerne não à eficácia, mas à existência e validade da lei. 176 (grifos do autor)

Conforme se vê, o pensamento pioneiro de Geraldo Ataliba que propugnava pela superioridade hierárquica da lei complementar em relação à ordinária passou a ser refutado por alguns de seus pares, não impedindo, porém, que outros autores a ele se alinhassem, conforme se demonstrará adiante.

Importante registrar a observação de Celso Bastos177ao informar que Geraldo

Ataliba reviu posteriormente seu primitivo entendimento e reconheceu a inexistência de qualquer superioridade hierárquica da lei complementar, qualificando de nenhum fundamento e de injustificada a posição anteriormente adotada.

Dentre outros doutrinadores que defendem a tese da superioridade hierárquica da lei complementar, na ordem formal e material, encontra-se José Afonso da Silva ao afirmar que “desde a Constituição de 1967 e agora na Constituição vigente, as leis complementares adquiriram superioridade formal relativamente às outras leis, num status intermédio entre leis constitucionais e lei ordinárias.”178

No mesmo sentido é a doutrina de Ives Gandra da Silva Martins, que assim preleciona:

É, portanto, a lei complementar norma de integração entre os princípios gerais da Constituição e os comandos de aplicação da legislação ordinária, razão pela qual, na hierarquia das leis, posta-se acima destes e abaixo

174 Cf. José Souto Maior BORGES, Lei Complementar..., op. cit., p. 27. 175 Idem, p. 45. Os destaques são do autor.

176 Idem, p. 45.

177 BASTOS. Celso Ribeiro. Lei complementar – Teoria e Comentários. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 57.

daqueles. (...) A lei complementar é superior à lei ordinária, servindo de teto naquilo que é de sua particular área mandamental. 179

Defendendo a mesma posição, posiciona-se Bernardo Ribeiro de Moraes nos seguintes termos:

Depois da Constituição, em nível hierárquico inferior, temos a lei

complementar (...), que é a lei votada pelo Poder Legislativo, caracterizada

por um processo elaborativo especial (mais complexo do que o da lei ordinária) e por um conteúdo próprio (regulamentação ou complementação dos textos constitucionais). São normas destinadas a melhor detalhar a Constituição, necessárias para regular as condições de exercício dos princípios ou direitos consignados na Constituição. A lei complementar está abaixo da Constituição e prevalece sobre as demais leis, pois sua posição é a de norma que complementa a Constituição.180 (grifo do autor)

Na mesma linha é o ensinamento de Hugo de Brito Machado:

(...) toda e qualquer espécie normativa ganha identidade específica, e assim tem definida a sua posição hierárquica no sistema jurídico, a partir de elementos formais. Não em razão de seu conteúdo. A competência do órgão que a emite, e o procedimento adotado em sua elaboração, determinam sua espécie e posição hierárquica.181

Apregoando o entendimento de inexistência de superioridade material ou formal da lei complementar em relação à ordinária, encontra-se, conforme já frisado, José Souto Maior Borges, o que se pode corroborar de sua visão estampada em recente trabalho onde voltou a refutar teses que sustentam posicionamento contrário.

Com efeito, em artigo publicado em 2008, o insigne Autor novamente confirmou seu tradicional pensamento afirmando que o quórum especial e qualificado para a aprovação da lei complementar é apenas um requisito constitucional de existência, e não de eficácia do ato legislativo e, também, que a função legislativa complementar só pode ser exercida nos limites materiais estabelecidos na Constituição.182

Na mesma esteira de pensamento está Celso Ribeiro Bastos preconizando que as leis complementares não se apresentam uma fisionomia unitária que

179 MARTINS. Ives Gandra da Silva. Sistema Tributário na Constituição de 1988. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 85.

180 MORAES. Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 2v. p. 21.

181 Op. cit., p. 67.

182 BORGES. José Souto Maior. Hierarquia Constitucional da Lei Complementar Tributária. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, n. 150, mar. 2008. p. 68-69.

possibilite de pronto uma definição de superioridade em relação às demais leis. Ele acrescenta:

Daí não podermos falar em hierarquia entre elas. O que pode haver é uma invasão de competência de uma pela outra. (...) a lei ordinária e a complementar não se subordinam reciprocamente (o que se verifica, por exemplo, entre a lei e o regulamento), porquanto versam matérias distintas e buscam seus fundamentos de validade diretamente da Constituição.183

Importa relatar a corrente que prega a existência de superioridade hierárquica “parcial” da lei complementar em relação ordinária, tanto no que pertine ao campo formal quanto ao material, argumentos calcados em hipóteses específicas previstas no Texto Constitucional.

É o caso de Sacha Calmon que acentua a existência de hierarquia em determinadas situações, quando a lei complementar for o fundamento e estabelecer hipóteses cuja obrigatoriedade deve ser seguida pela lei ordinária. Explica Calmon que “a lei complementar só é superior às leis ordinárias quando é o fundamento de validez destas”.184

Insere-se nessa ótica o magistério de Paulo de Barros Carvalho, segundo o qual em situações expressamente previstas na Constituição, existe superioridade formal e material da lei complementar sobre a ordinária, exemplificando o Autor com hipóteses atinentes ao direito tributário e com a Lei Complementar nº 95, de 26.02.1998, que dispõe sobre a elaboração, redação e alteração e consolidação das leis, litteris:

Interessa-nos agora o enfoque semântico da hierarquia, que, como já dissemos, pode dar-se no aspecto formal e no aspecto material. A primeira, quando a norma superior dita apenas os pressupostos de forma que a norma subordinada há de respeitar. (...) No que concerne ao campo material a situação continua a mesma da ordem jurídica anterior, vale dizer, muitas normas introduzidas no sistema pela lei ordinária, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios deverão procurar o âmbito de validade material de seu conteúdo prescritivo em normas da legislação complementar. O exemplo eloquente está nas regras que dispõem sobre conflitos de competência entre entidades tributantes. (...) Se, como dissemos, as relações de subordinação ente normas, bem como as de coordenação, são tecidas pelo sistema do direito positivo, o nosso, inaugurado em 1988, houve por bem estabelecer que as leis, todas elas, com nome ou com status de lei, ficam sujeitas aos critérios que o diploma complementar do art. 59, parágrafo único (CF) veio a prescrever com a edição da Lei n. 95/98.185

183 Lei complementar..., op. cit., p. 58-59. 184 Op. cit., p. 103.

Em que pese Paulo de Barros Carvalho perfilhar do entendimento de superioridade material, pelo menos no que diz respeito às leis complementares tributárias, ele concorda com José Souto Maior Borges quanto à impossibilidade de uma visão unitária sobre o tema da supremacia das leis complementares. Nesse aspecto, preleciona o Autor:

Não nos esqueçamos, contudo, de que existem porções privadas para a atuação da lei complementar tributária e o exemplo típico é das limitações constitucionais ao poder de tributar. Neste ponto, como os campos de irradiação semântica são necessariamente diferentes, não há como e por que falar-se em relação de hierarquia.186

2.3.1 Análise

Nota-se que, transcorrido pouco tempo do nascedouro da lei complementar, não há consenso jurídico sobre a existência de hierarquia entre esta espécie normativa e a lei ordinária, controvérsia que se mantém até dos dias atuais.

Apesar das brilhantes argumentações em sentido contrário, perfilho-me à corrente que entende haver superioridade hierárquica apenas parcial entre a lei complementar e a lei ordinária.

Nesse ponto, concordo com a lição de José Souto Maior Borges ao sustentar que o quórum especial para a aprovação da lei complementar não empresta superioridade formal a esse ato legislativo, figurando tão-só como um requisito de existência, e, portanto, não se revestindo de requisito de eficácia da lei complementar. Faço adesão, ainda, ao seu posicionamento no que respeita ao âmbito material da lei ordinária, cujo fundamento geral de validade é a Carta Suprema.

Não há como negar que a própria Carta Magna em específicas e excepcionais hipóteses determina subordinação formal e material da lei complementar, devendo as normas destas serem observadas pela legislação ordinária.

De fato, no aspecto formal tem-se como exemplo o mandamento do artigo 59, parágrafo único, da Constituição, que preceitua que lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, o que faz as vezes a lei

complementar nº 95/98.

No âmbito material, exemplifica-se com a norma constante do artigo 146, I e III que estatui que cabe à lei complementar “dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” e “estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária” nos casos especificados no Texto; é o caso também da lei complementar que fixa alíquotas máximas e mínimas do imposto sobre serviços de qualquer natureza (art. 156, § 3º, I, CF)

Nos exemplos em que tais, por desígnios constitucionais, a lei ordinária não pode afastar dos mandamentos constitucionais delimitados na lei complementar, importando asseverar, mesmo que restritivamente, pela existência de superioridade formal e material da lei complementar sobre a ordinária.

Até mesmo José Souto Maior Borges não nega essa excepcional hierarquia, o que ele denomina de “relação sintática hierárquica” ao observar e ponderar nas seguintes palavras:

Há portanto uma relação sintática hierárquica que se resolve pela aplicação da regra: “direito nacional corta direito federal, estadual e municipal”. Mas essa regra é excepcional no direito positivo brasileiro. É o quanto basta entretanto para concluir-se que a lei complementar nem sempre é superior à lei ordinária federal. Os mesmos fundamentos justificam a proposição conversa: nem sempre a lei ordinária é inferior à lei complementar. Nunca porém a lei ordinária é superior à lei complementar. As relações sintáticas materiais entre uma e outra implicam essa ponderações.187

2.4 TENSÃO ENTRE AS NORMAS DE LEIS COMPLEMENTARES NACIONAIS E