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1 REVISÃO DE LITERATURA

1.1 Leitura musical à primeira vista: definições

A definição de leitura musical à primeira vista (LMPV) varia entre autores.

Segundo Gabrielsson (2003), LMPV é uma performance sem qualquer procedimento prático anterior da execução de uma partitura no instrumento, sendo o contato visual com a partitura, precedente à prática, como procedimento prévio à realização de leitura musical à primeira vista (LMPV) propriamente dita. Autores como Drai-Zerbid, Baccino e Bigand (2011), consideram LMPV como uma prática de “extrair informações visuais de uma partitura para executar por meio de respostas motoras simultâneas, tais quais tocar ou cantar, baseando-se em um feedback auditivo”¹.

Entretanto, os mesmos autores acreditam que a LMPV também pode ocorrer silenciosamente, sem a mediação de um instrumento musical. Este é o mesmo entendimento de Lehmann e McArthur (2002), que consideram que pode ocorrer LMPV sem haver necessariamente um som como resultante, dando como exemplo o caso do regente, que utiliza a leitura da partitura de maneira silenciosa para estudos de condução de coro ou orquestra, lendo, em muitas circunstâncias de preparação, à primeira vista. Por outro lado, Thompson e Lehmann (2004) mencionam que, em um sentido literal, qualquer performance musical em que o músico leia uma partitura escrita pode ser considerada uma LMPV. Todavia, os dois autores apontam que o uso mais comum da terminologia é dado para “a prática de tocar uma peça de música diretamente da partitura no primeiro encontro ou após um breve ensaio”², sendo que a LMPV envolveria, portanto, uma performance de material musical sem preparação prévia clara. Risarto define as diferenças entre a leitura prévia e a LMPV propriamente dita:

A leitura prévia é um procedimento detalhado que envolve uma preparação anterior à própria execução. É um treinamento musical que o intérprete playing or singing, laying on an auditory feedback” (DRAI-ZERBID; BACCINO; BIGAND, 2011, p.217).

² “[…] the practice of playing a piece of music directly from the score on first encounter or after brief rehearsal (Thompson; Lehmann, 2004, p.145).

A habilidade de ler à primeira vista envolve a capacidade de tocar música com precisão e fluência musical, mantendo constância no fluxo musical, utilizando-se de recursos expressivos adequados ao material que está sendo executado (THOMPSON; LEHMANN, p.145). Segundo Sloboda: executar por inteiro uma sequência motora fluente na velocidade apropriada” (SLOBODA, 2008, p.117).

De acordo com o autor, “a leitura musical requer a execução de uma resposta complexa na qual há pouco espaço para desvios em tempo e qualidade”

(SLOBODA, 2008, p.117), sendo que parte da arte de conduzir uma LMPV satisfatória é saber quais partes da música devem ser salientadas para ao ouvinte, criando-se uma impressão de exatidão da obra executada para o audiente, mas que está, de fato, longe de ser totalmente fiel à partitura (SLOBODA, 2008, p.111). De acordo com o autor:

O leitor de música parece estar preparado, em particular, para armazenar informações sobre padrões de escalas ou arpejos, o que sugere que tais informações são usadas na leitura „normal‟. Isso pode ocorrer devido ao fato de tais padrões serem geralmente associados a padrões de movimentos estereotípicos dos dedos e das mãos, de modo que a identificação rápida e prévia permite adiantar o planejamento motor. Basta que alguém consiga identificar corretamente a primeira nota de um desses padrões, e tenha algum conhecimento de sua estrutura harmônica nesse ponto através do contexto, para que a identificação do contorno seja suficiente para especificar a ação necessária (SLOBODA, 2008, p.104).

Para Thompson e Lehmann (2004), no decorrer da prática da LMPV o músico é defrontado com um material musical que não lhe é familiar, sendo que necessita executar este material imitando uma performance previamente ensaiada, incluindo cuidado expressivo e coerência com o tempo musical. Desse modo, a prática da LMPV demonstra-se indubitavelmente meritória, entretanto, desprovida de imaginação (THOMPSON; LEHMANN, 2004, p.143), visto que o performer imitará gestos musicais e expressivos previamente realizados em seu acervo de conhecimentos estilísticos e técnicos. Em vista disso, músicos raramente praticam leitura à primeira vista em público (THOMPSON; LEHMANN, 2004, p.144).

Em função da tradição de uso da notação ortocrônica na tradição da música ocidental de concerto, a LMPV é quase exclusivamente uma habilidade da música considerada „ocidental‟, “embora a notação musical seja também usada em outros estilos e culturas musicais para propósitos didáticos” (THOMPSON; LEHMANN, 2004, p.145)³. Ademais, acrescentam os autores, na música de concerto a transmissão e ensino ainda é bastante baseada em recursos notados em partitura, diferente da tradição e transmissão de outras músicas, difundidas de maneira aural e através de gravações sonoras, atualmente. Destarte, pesquisas em LMPV tendem a se focar quase que exclusivamente na prática da música de concerto ocidental (THOMPSON; LEHMANN, 2004).

A tarefa de ler à primeira vista é comum no treinamento dos músicos, principalmente os que lidam com correpetição (especialmente ao piano) em práticas de ensembles, tanto em grupos de câmara, orquestras ou ofícios religiosos (THOMPSON; LEHMANN, 2004; SLOBODA, 2008; COSTA, 2011; PAIVA; RAY, 2006). Talvez por conta disto, a maior parte das pesquisas em LMPV encontradas utiliza instrumentos de teclado, principalmente o piano.

A falta de capacidade de ler à primeira vista atormenta muitos músicos, embora a necessidade de ler partitura não seja indispensável para a prática sonora de diversas culturas musicais (THOMPSON; LEHMANN, 2004; SLOBODA, 2008). É uma tarefa que causa dificuldade até em músicos experientes e talentosos, sendo que as razões para isso geralmente não são muito claras, evidenciando diferenças de dificuldades perceptivas entre os músicos que não estão necessariamente ligadas à acuidade visual (SLOBODA, 1974, p.4). Segundo Sloboda (2008, p.88),

“muitos músicos acham a leitura à primeira vista uma tarefa muito difícil, e o executante que tiver a coragem de subir ao palco sem conhecimento prévio das peças a serem tocadas é um herói”. Os problemas comuns na prática da leitura à primeira vista são altura, articulação, expressão e manutenção de pulso rítmico (LEHMANN; McARTHUR, 2002; ROCHA, 2015), envolvendo uma complexa tarefa de transcrição que engloba variadas transposições perceptuais, cognitivas e de processos motores (WATERS; TOWNSEND; UNDERWOOD, 1998).

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³ […] although music notation is also used in other musical styles and cultures for didactic purposes (Thompson; Lehmann, 2004, p.145).

Segundo Gabrielsson (2003), “leitura à primeira vista envolve uma capacidade de gerar representações auditivas para os materiais visuais da partitura, envolvendo conhecimento conceitual e expectativas específicas (WATERS;

TOWNSEND; UNDERWOOD, 1998; LEHMANN; McARTHUR, 2002). As pesquisas recentes em LMPV discorrem sobre a percepção e decodificação de padrões, o eye-hand span (separação entre a posição do olho e a posição da mão na prática da LMPV), o movimento dos olhos e processos de memorização em música, englobando, do ponto de vista psicológico a execução de programas motores, a memória e habilidades de solução de problemas, incluindo improvisação e capacidade de predição musical (LEHMANN; McARTHUR, 2002; GABRIELSSON, 2003).

De modo geral, as performances em LMPV de músicos experts são mais acuradas do que de músicos iniciantes, especialmente em pesquisas com materiais musicais de linguagem tonal (SLOBODA, 1974, 2008; WATERS; UNDERWOOD, 1998). De acordo com Drai-Zerbid, Baccino e Bigand (2011, p.217), “uma ideia de senso comum é que os músicos expert podem ouvir o que leem da partitura e representar visualmente a música que estão ouvindo”5.

Todavia, não há estudos que justifiquem com precisão todos os fatores que melhorará esta habilidade. Portanto, embora seja certamente importante que os psicólogos tentem dar orientações sobre as técnicas para a aquisição da leitura à primeira vista, essa iniciativa envolve muitas questões complexas e distintas (SLOBODA, 2008, p.89)

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4 “Sight reading involves a combination of reading and motor behavior, that is, to read note patterns coming up in the score while performing others just read” (GABRIELSSON, 2003, p.243).

5 “A common sense idea is that expert musicians can hear what they read from a score and visually represent the music that they are listening to” (DRAI-ZERBID; BACCINO; BIGAND, 2011, p.217).

1.1.1 Construindo sentido expressivo na tarefa de leitura à primeira vista

Tocar as notas corretas na ordem correta apenas não significa realizar uma leitura à primeira vista expressivamente eficaz (THOMPSON; LEHMANN, 2004;

SLOBODA, 2008). Entretanto, como a tarefa de LMPV envolve a resolução de muitas movimentações mecânicas, leitores mais iniciantes tendem a comprometer aspectos expressivos ao longo das interpretações. Como cita Perdomo-Guevara (2005), em um contexto de interpretação musical:

Quanto menos treinamento temos, mais precisamos de toda nossa atenção para tocar as notas corretas no momento correto, e por isso mais descuidamos outros fatores, que são geralmente, os elementos expressivos e de intenção musical. Estes são frequentemente deixados para uma segunda etapa. Isto apresenta um problema relativo à memória muscular, mas também transmite implicitamente uma escala de valores: traduzir a página escrita em elemento sonoro como sendo mais importante do que interpretá-la; tocar as notas corretas como sendo mais importante do que compreender e expressar a mensagem musical (PERDOMO-GUEVARA, 2005, p.201).

De acordo com Sloboda (2008), um dos primeiros processos que se realiza no momento do primeiro contato com a partitura é a formação da representação mental da música que indicará os momentos a serem marcados na interpretação.

Essa visualização oportunizará ao leitor identificar as pistas estilísticas de determinado conteúdo musical. Posteriormente, o intérprete acionará a sua

„programação motora‟, consistindo “na montagem de uma sequência de comandos aos músculos responsáveis pela execução, que revelarão na forma de sons os dispositivos expressivos selecionados do dicionário [de variações expressivas do intérprete]” (SLOBODA, 2008, p.114-115). Como constatam Thompson e Lehmann,

Embora qualquer músico pudesse ler qualquer coisa tendo tempo suficiente e um tempo lento, uma velocidade minimamente efetiva para uma peça em particular é geralmente ditada por uma convenção estilística. Ademais, para manter fluência não é possível parar sem interromper o vigor musical – e isso é um importante modo em que a leitura musical à primeira vista difere de habilidades superficialmente similares tais como digitar um documento [de texto] ou ler em voz alta6 (THOMPSON; LEHMANN, 2004, p.145-146)6.

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6“Although any musician could read anything given enough time and a slow enough tempo, an effective minimum speed for a particular piece is generally dictated by stylistic convention. Moreover, to maintain fluency it is not possible to pause without interrupting the musical steam – and this is one important way in which musical sight-reading differs from superficially similar skills such as typing from copy or reading aloud” (THOMPSON; LEHMANN, 2004, p.145-146).