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SUMÁRIO

3. EVOLUÇÃO E SIGNIFICADO PALEOAMBIENTAL DO REGISTRO FLUVIAL, COLUVIAL E PEDOLÓGICO

3.3. FORMAS DE RELEVO, DEPÓSITOS SEDIMENTARES E PALEOSSOLOS EM AMBIENTES FLUVIAIS E COLUVIAIS

3.3.2. Leques aluviais

Leques aluviais constituem acumulações semicônicas de sedimentos grossos e angulares, depositados onde o canal alimentador – que drena bacia situada em terreno elevado – intercepta a frente montanhosa (BLAIR & MCPHERSON, 1994, p. 482). A sedimentação ocorre no lobo deposicional ativo pela expansão de fluxos de sedimentos a partir do ápice do leque ou, quando esses são transferidos dentro de canal inciso para local situado leque abaixo, do ponto de intersecção. A morfologia semicônica do leque aluvial é mantida pela mudança autocíclica da posição do lobo deposicional ativo ao longo do tempo (DENNY, 1967, p. 85-87). De perfil transversal convexo, o leque exibe perfil radial levemente côncavo, com segmentos retilíneos bem definidos. Blissenbach (1954, p. 176) distingue três setores: 1) cabeceira do leque, área próxima ao ápice do leque aluvial; 2) leque médio, parte intermediária; e 3) base, zona inferior do leque, onde há coalescência com outros leques. Embora de tamanho bastante variável, os leques aluviais raramente excedem 10 km de extensão, pois seu raio é limitado pelas condições favoráveis à deposição por meio da expansão de fluxos de sedimentos.

O relevo íngreme da bacia drenada pelo canal alimentador e a ocorrência de eventos de precipitações intensas produzem combinação favorável à formação de cheias rápidas (flash floods; BLISSENBACH, 1954, p. 177; BLAIR & MCPHERSON, 1994, p. 457). A localização do leque aluvial junto à frente montanhosa é propícia não somente para receber tais cheias, mas também movimentos de massa – como quedas de blocos, avalanches, fluxos de detritos e outros. O resultado dessas condições peculiares é a deposição de sedimentos grossos, sobretudo cascalhos, angulares e pobremente selecionados no leque aluvial. As

características do material rudáceo se devem a sua origem na rocha fraturada, à curta distância de transporte, e à natureza rápida e episódica dos processos de transporte (REINECK & SINGH, 1980, p. 300; BLAIR & MCPHERSON, 1994, p. 457). Dois tipos de processos são fundamentalmente importantes para a gênese de leques aluviais (Fig. 17): fluxos de detritos (debris flows) e fluxos aquosos (water flows).

Figura 17 – Tipos de leques aluviais e respectivas fácies sedimentares: A) leque aluvial dominado por fluxos de detritos; B) leque aluvial dominado por fluxos aquosos (cheias em lençol) (BLAIR & MCPHERSON, 1994).

Os fluxos de detritos são constituídos por mistura altamente concentrada de sedimentos e água, que se move pela encosta sob ação da gravidade. Geralmente, os fluxos de detritos têm caráter transitório e ocorrem como sucessões de “ondas” ou pulsos (SHARP & NOBLES,

1953, p. 551; FISHER, 1971, p. 918; COUSSOT & MEUNIER, 1996, p. 211). Os fluxos de detritos apresentam movimento laminar e, portanto, não são erosivos – ainda que, devido a sua alta densidade e viscosidade, sejam capazes de transportar grandes matacões com peso de várias toneladas. A deposição de fluxos de detritos origina extensos diques laterais próximo à cabeceira do leque, e/ou lobos alongados radialmente na parte distal (SHARP & NOBLES, 1953, p. 558, HOOKE, 1967, p. 452, BULL, 1977, p. 236, BLAIR & MCPHERSON, 1994, p. 470, BLIKRA & NEMEC, 1998, p. 918-919). Os depósitos de fluxos de detritos consistem tipicamente de cascalhos angulares suportados por matriz fina ou por clastos, frequentemente com gradação inversa e grau de seleção pobre – os sedimentos geralmente têm distribuição granulométrica bimodal. Clastos rudáceos alongados podem estar alinhados paralelamente ao sentido do fluxo (FISHER, 1971, p. 919; BERTRAN et al., 1997, p. 10; BLIKRA & NEMEC, 1998, p. 920-921). Alguns processos – como escoamento superficial, formação de ravinas, erosão eólica, bioturbação e intemperismo – podem retrabalhar a superfície de depósitos de fluxos de detritos em leques aluviais.

Os fluxos aquosos abrangem processos como cheias em lençol (sheetfloods; BLISSENBACH, 1954, p. 178, BLAIR & MCPHERSON, 1994, p. 470), cheias em canal (streamfloods; BLISSENBACH, 1954, p. 178, BLAIR & MCPHERSON, 1994, p. 470), fluxos em lençol (sheetflows; BULL, 1977, p. 231) e fluxos em canais fluviais (streams; BLISSENBACH, 1967, p. 178, HOOKE, 1967, p. 456, BULL, 1977, p. 231). As cheias em lençol são fluxos de água não-confinados, raros e de alta magnitude, que se expandem sobre o leque aluvial. Geralmente ocorrem quando cheias rápidas deixam o confinamento do vale ao cruzar a frente montanhosa, produzindo lençol de água uniforme e turbulento. Caso existam canais incisos na superfície do leque, serão formadas cheias em canal (BLISSENBACH, 1954, p. 178; HOGG, 1982, p. 66; BLAIR & MCPHERSON, 1994, p. 474). Segundo Hogg (1982, p. 71), os fluxos em lençol são eventos relativamente frequentes e de baixa magnitude, que em geral se apresentam como redes de ravinas (rills) entrelaçadas e não na forma de lençóis contínuos. Os depósitos característicos de cheias em lençol consistem em camadas tabulares descontínuas de seixos, blocos e matacões, que se alternam verticalmente com acamamentos planos constituídos por areias grossas laminadas e grânulos. Os cascalhos do membro rudáceo geralmente estão imbricados, com os eixos maiores orientados em sentido perpendicular ao declive (REINECK & SINGH, 1980, p. 302, BLAIR & MCPHERSON, 1994, p. 470). A sedimentação em canais é representada

por unidades com geometria lenticular ou de corte e preenchimento, e formada pela acumulação residual de matacões e blocos grandes no fundo desses canais. Areias com laminação cruzada também podem preencher canais incisos na superfície de leques aluviais (BLISSENBACH, 1954, p. 186, REINECK & SINGH, 1980, p. 302).

A proporção de depósitos de fluxos de detritos e fluxos aquosos em leques aluviais comumente depende da litologia e das condições de intemperismo na bacia drenada pelo canal alimentador. Conforme Blair & McPherson (1994, p. 478), fluxos de detritos predominam em áreas constituídas por rochas vulcânicas afaníticas, cuja alteração produz sedimentos relativamente ricos em argila. Por outro lado, as cheias em lençol são favorecidas por materiais intemperizados com baixo teor de argila, provenientes de arenitos quartzosos. Leques aluviais geralmente são formados pela combinação desses dois tipos de processos. Assim, depósitos de fluxos de detritos, quedas de blocos e avalanches de rochas são mais característicos da cabeceira do leque; no segmento médio, prevalece a sedimentação de cheias em lençol e canais incisos, com ocorrência secundária de depósitos de fluxos de detritos e avalanches de rochas; finalmente, a deposição de cheias em lençol tem maior importância na base do leque aluvial, com raros depósitos de preenchimento de canais (REINECK & SINGH, 1980, p. 303, BLAIR & MCPHERSON, 1994, p. 474-475).

Embora tradicionalmente sejam associados com ambientes áridos e semiáridos, leques aluviais se desenvolvem sob condições climáticas que favoreçam a alta variabilidade de regimes de fluxo do canal alimentador e, consequentemente, a formação de grandes cheias (BLISSENBACH, 1954, p. 177-178, BULL, 1977, p. 223 e 225, REINECK & SINGH, 1980, p. 300, BLAIR & MCPHERSON, 1994, p. 457). Não há consenso quanto à influência de mudanças climáticas na evolução de leques aluviais. Alguns pesquisadores, como Blissenbach (1954, p. 180) e Bull (1977, p. 256), consideram que mudanças climáticas podem causar o entalhamento do canal fluvial e a dissecação da superfície do leque, com suavização do declive. Outros, como Hooke (1967, p. 458), contestam esse viés, e argumentam que leques aluviais com cabeceiras profundamente incisas deveriam ser mais comuns, ao contrário do que se constata na realidade. O entalhamento do canal alimentador também pode ser provocado por movimentos tectônicos; além disto, a atividade tectônica pode tornar mais íngreme o declive da superfície do leque (BLISSENBACH, 1954, p. 180, HOOKE, 1967, p. 458, BULL, 1977, p. 251-256). Leques aluviais geralmente estão relacionados a contextos tectônicos de soerguimento ou subsidência de

blocos rochosos. Entretanto, é importante salientar que pequenos leques aluviais podem ser encontrados em áreas não afetadas pela tectônica, onde o rio principal escavou o vale mais rapidamente do que seus tributários (BULL, 1977, p. 248-249).