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Linguagem e língua para o Círculo: a epistemologia das relações dialógicas

Volochínov (2013, p. 141, grifo do tradutor), em seu ensaio “Que é linguagem”, mostra que a linguagem é “[..] o produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto a organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou”. Toda manifestação da linguagem passa necessariamente por um contexto social já estabelecido no território histórico de uma dada época, dotada de crenças, valores e orientações ideológicas variadas.

Além de seu aspecto não único, a linguagem é colocada em prática por sujeitos em contextos próprios da expressão comunicativa. Trata-se de um fenômeno ao mesmo tempo acabado, pois pressupõe o caráter finito dos enunciados concretos, mas também inacabado, pois tem a possibilidade de se renovar e provocar sentidos e efeitos de sentido na realização das especificidades da interação social.

Volochínov (2013), no projeto da elaboração de uma orientação sociológica para a ciência da linguagem, priorizava a preocupação com o aspecto social que atua sobre os enunciados, polemizando com as correntes do objetivismo abstrato e do subjetivismo idealista, o que é trabalhado principalmente em MFL. A linguagem, para o autor, e que se estende para os demais membros do Círculo, não é concebida como corpo estático ou puramente psicofisiológico, mas é determinada, em grau elevado, pela atmosfera social em que ocorre.

Para poder observar o fenômeno da linguagem é necessário colocar tanto o produtor quanto o receptor do som e o próprio som numa atmosfera social. É necessário enfatizar que tanto o falante quanto o ouvinte pertençam a mesma comunidade linguística, ou seja, que se encontrem face a face dentro de um campo específico. A troca comunicativa verbal é possível somente num campo específico, por mais genérico e ocasional que possa ser esse campo comum (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 102).

Por meio das palavras do autor, conseguimos depreender a visão sobre a linguagem posta pelo Círculo, a ênfase na situação concreta de uma comunicação discursiva dada e a valorização da interação social como eixo em que a linguagem é posta no território de cruzamento das coerções sociais. A linguagem não é somente reduzida à reprodução de sistemas fonológicos, fonéticos, sintáticos, semânticos e lexicais, mas, juntamente com estes sistemas, atua na expressão dos sujeitos sociais.

A linguagem ganha tom e assume formas ideológicas de acordo com o modo pelo qual é enunciada pelos sujeitos.

O centro organizador da enunciação não está no interior, mas no exterior: no ambiente social que circunda o indivíduo. [...] A enunciação enquanto tal é um produto da interação social, seja do tipo mais imediato, determinado pela circunstância da enunciação, seja do tipo mais imediato, determinado pelo todo em si mesmo das condições em que ocorre tal dado coletivo falante (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 128).

A enunciação, que é a prática da língua e da linguagem em uma situação social dada, necessita da participação de sujeitos falantes/ouvintes, enunciadores/interlocutores. Para olhar um ato de linguagem, como é a realização enunciativa do discurso político, faz-se necessário tanto olhar para o contexto imediato da produção do ato enunciativo, quanto para a organização social de um grupo, no qual a enunciação se insere como expressão de valores, ideologias e lugares preenchidos por sujeitos e discursos.

É pela via da enunciação que apreendemos como se constrói o enunciado, que não nos é dado a priori, mas constituído justamente por uma organização específica da linguagem: “sem a linguagem, sem uma enunciação bem definida, verbal ou gestual, não existe expressão; assim como não existe expressão sem uma real situação social com participantes reais” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 149).

Volochínov (2013) define dois tipos de linguagem: interior e exterior. O primeiro diz respeito à ideia de que todo objeto de significação elaborado pelos sujeitos sociais é construído de acordo com sistemas de representação e de pensamento postulados na consciência prática dos homens, e o segundo se refere ao fato de que a linguagem se materializa em diferentes orientações semânticas e axiológicas e transforma-se em signo material ou em enunciado concernente a uma realidade histórico-social específica.

Para o pensamento empreendido pelo Círculo, não há linguagem sem um outro que responda ativamente a ela, pois este é instância nodal para uma situação histórica, um contexto extraverbal no qual o enunciado se processa e os signos são construídos. O caráter real da interação social pela língua/linguagem pressupõe o jogo de sujeitos e posições particulares de cada sujeito social envolvido em uma atividade discursiva.

A linguagem, o sujeito, os valores, as ideologias são construções dialógicas e sociais na fronteira do contato das alteridades externas e internas. Tudo isso está relacionado com o significante e o significado, as propriedades do significante, sua função. Para Bakhtin, toda análise concreta do discurso deve ser praticada com o significante e suas redes dialógicas e conotações trans-significativas (tradução nossa).34

34Cf. original: “El lenguaje, el sujeto, los valores, las ideologías son construcciones dialógicas y sociales en la frontera del contacto de alteridades externas e internas. Todo ello está relacionado con el significante y significado, las propiedades del significante, su función. Para Bajtin todo análisis concreto del discurso debe ejercerse con el significante y sus redes dialógicas, y connotaciones trans-significativas” (ZAVALA, 1997, p. 211).

O modo de conceber os sujeitos e a linguagem como expressão da interação entre sujeitos reflete a não separação entre linguagem interior e exterior. Em outras palavras, não há como separar o material verbal que existe na consciência dos sujeitos, os sistemas de signos incorporados no conhecimento de um falante de uma dada língua, e o ato de linguagem posto em circulação pela voz de sujeitos sociais.

A expressão comunicativa, fato social de língua/linguagem, ocorre em território interindividual e é apontada pelo Círculo como acontecimento partilhado entre sujeitos. Para o pensamento bakhtiniano, há expressão exatamente no contato entre a língua e o real. Para o autor:

[...] só o contato do significado linguístico com a realidade concreta, só o contato da língua com a realidade, contato que se dá no enunciado, gera a centelha da expressão; esta não existe no sistema da língua nem na realidade objetiva existente fora de nós (BAKHTIN, 2016, p. 51).

Percebemos na citação acima, presente em GD (Gêneros do discurso), que já há uma ideia da linguagem como eixo de expressão de sentidos que atua sobre todo ser humano e vai ao encontro da acepção de Volóchinov sobre a incidência dos índices valorativos sobre todo eixo axiológico sígnico dos sistemas variados de linguagem. O pensamento dos autores corrobora para o fato de que a língua situa os papéis sociais estabelecidos em uma situação comunicativa específica.

Ao trazermos as reflexões de Volóchinov e Bakhtin sobre a noção de língua e linguagem, cabe ressaltar que a união entre os pensadores do Círculo de Bakhtin contribuiu para uma construção coletiva do pensamento que manifesta preocupação com a realidade histórica russa, em meio aos regimes autoritários, no início do século XX.

A produtividade compreendida entre 1924 e 1929, independentemente das assinaturas, aponta para discussões e concepções do Círculo que dialogam com formalistas, marxistas ortodoxos, ideólogos, psicólogos e psicanalistas, a partir de um lugar em que a polêmica, sem ser destrutiva, constrói novos lugares epistemológicos. A poética sociológica, a resposta a teorias freudianas e o enfrentamento dos formalistas constituem formas de construção de uma filosofia da linguagem e da cultura, inaugurando uma concepção nova ao confrontar os estudos da linguagem e da cultura, inaugurando uma concepção nova ao confrontar os estudos da linguagem, quer literária, cotidiana, visual, musical, corporal, científica (BRAIT; CAMPOS, 2016, p. 22).

No pensamento empreendido pelo Círculo, no projeto de reflexão sobre como a ciência, a arte e a cultura eram reformuladas em uma nova percepção sobre o mundo, há um modo de ver os enunciados que não deixa de lado as nuances históricas e sociais da vida dos homens.

Ambos os autores convergem na acepção de que não há enunciado, linguagem35, enunciação fora de uma realidade histórico-social específica.

Para observar o fenômeno da língua, é necessário colocar os sujeitos falante e ouvinte, bem como o próprio som, no ambiente social. Pois é necessário que tanto o falante quanto o ouvinte pertençam a uma mesma coletividade linguística, a uma sociedade organizada de modo específico. É necessário ainda que nossos dois indivíduos sejam abarcados pela unidade da situação social mais próxima, isto é, que o encontro entre essas duas pessoas ocorra em um terreno determinado. O intercâmbio verbal só é possível nesse terreno determinado, por mais geral e, por assim dizer, ocasional que ele seja (VOLÓCHINOV, 2017, p. 145).

O falante e o ouvinte, como partícipes determinantes para que a língua se materialize em objeto concreto de sentido, posicionados em uma organização social dada, envolvendo campos variados da expressão, como o campo político de representação de fatos simbólicos, sobre o qual trabalharemos ao longo da análise do discurso político, posteriormente, estão situados em uma vivência, que se localiza justamente no intercâmbio dos construtos simbólicos elaborados pela estrutura socioeconômica vigente.

Para o pensamento bakhtiniano, a linguagem se faz por relações dialógicas de sentidos oriundos de discursos vários que percorrem o jogo da história e da cultura e existem junto a todo e qualquer discurso enunciado. O sujeito discursivo, ao enunciar, mobiliza sentidos simbólicos, que as palavras e signos adquirem na interação discursiva. O enunciado, repleto de signos em sua forma concreta, é posto na realidade social em relação dialógica com outros enunciados, como aponta o autor:

As relações dialógicas são relações (de sentidos) entre toda espécie de enunciados na comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados no plano do sentido (não como objetos e não como exemplos linguísticos), acabam em relação dialógica (BAKHTIN, 2016, p. 92).

O que é denominado por relações dialógicas nos estudos da linguagem, pela denominação bakhtiniana refere-se à existência sempre de um outro no interior de uma enunciação, o que pressupõe o diálogo entre discursos, interlocutores e representações sociais. Nesse sentido, em Problemas da poética de Dostoievski (1997), no capítulo intitulado “O discurso em Dostoievski”, Bakhtin, ao mostrar a necessidade de encarar o discurso como objeto não pertencente somente à língua, mas como construto dialógico vivo, expõe a

35 A palavra linguagem, em russo, iazik, pode também ser traduzida por “língua” no idioma português. Volóchinov cria a expressão linguagem-discurso composta por dois sintagmas da língua russa, iazki-rietch, para se referir ao construto psicofisológico e social da atividade linguística (GRILLO, 2017, p.145-146).

necessidade de haver um enfrentamento do discurso, tendo em vista “[...] a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso”. As relações dialógicas, que estão no centro da abordagem bakhtinana chamada de “metalinguística”, são travadas justamente na enunciação, que as mobiliza e as concretiza na atividade da linguagem.

As relações dialógicas entre discursos compõem toda e qualquer atividade da linguagem. Tal conceito, se refere, como ressalta Brait (2005, p. 95), “[...] às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos”. O princípio dialógico está no âmago da enunciação, pois um enunciado não existe sem o diálogo concreto com o outro, seja esse outro um discurso enunciado em outro tempo histórico, seja um interlocutor ou sujeito discursivo situado em outro contexto.

O modo dialógico de perceber como a linguagem e o discurso são tecidos nos sistemas de significação variados da cultura também se relaciona com os sentidos que o próprio signo possui em contextos históricos diferentes. Conforme aponta Brait (2005), o signo, pela visão bakhtiniana, emerge da dialética entre os sentidos que lhe dão estabilidade, e os que fazem com que seja adaptável a diferentes manifestações de linguagem.

Para Bakhtin:

[...] A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas. [...] Essas relações se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico [...] (BAKHTIN, 1997, p. 216).

Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e semânticas devem materializar-se, ou seja, devem tornar-se discurso, ganhando, assim, um enunciador posicionado no seio da expressão comunicativa.

A língua não existe por si só, mas somente combinada com o organismo individual do enunciado concreto, ou seja, do discurso verbal concreto. A língua entra em contato com a comunicação apenas por meio do enunciado, tornando-se repleta de forças vivas e, portanto, real. As condições da comunicação discursiva, as suas formas e os meios de diferenciação são determinados pelas premissas socioeconômicas da época. São essas condições mutáveis da comunicação sociodiscursiva que determinam as alterações das formas de transmissão do discurso alheio analisadas por nós. Além disso, parece-nos que, nessas formas em que a própria língua percebe a palavra alheia e a individualidade falante, expressam-se de modo mais proeminente e saliente os tipos de comunicação socioideológica que se alternam na história (VOLÓCHINOV, 2017, p. 262).

Conforme o autor nos mostra acima, a língua, como sistema de representação verbal do mundo, coloca em interação social sujeitos sociais, falantes, ouvintes, papéis sócio-históricos e se concretiza nas relações sociais e no diálogo entre discursos.

Na acepção bakhtinana, a língua instaura posições sociais, sujeitos e interlocutores. Faraco (2009) sintetiza a ideia de língua adotada pelo Círculo:

[...] aquilo que chamamos de língua não é só um conjunto difuso de variedades geográficas, temporais e sociais (como nos ensinam a dialetologia, a linguística histórica e a sociolinguística). Todo esse universo de variedades formais está também atravessado por outra estratificação, que é dada pelos índices sociais de valor oriundos da diversificada experiência sócio-historica dos grupos sociais. Aquilo que chamamos de língua é também principalmente um conjunto indefinido de vozes sociais (FARACO, 2009. p. 57).

O autor, acima, mostra que a multiplicidade da realização da língua em contextos diversos é fato considerável para sua própria construção no mundo. Por outro lado, também mostra que, pela língua, podemos visualizar o caráter heterogêneo da existência de vozes sociais. Com efeito, somente há língua e linguagem onde há enunciação e produção de enunciados.

Nesta pesquisa, concebemos os enunciados de Michel Temer, um em cada ano de sua gestão como presidente do Brasil, como manifestações enunciativas de língua e linguagem, pois estão situados no percurso das deliberações políticas de um país. Os enunciados realizados por Michel Temer, que estão situados no jogo da representação política, respondem a posicionamentos valorativos e estão situados no espectro econômico que atravessa os processos produtivos da sociedade.

Veremos, durante as análises, como as relações dialógicas podem se manifestar como polêmica aberta ou velada, que configuram alguns dos tipos desse conceito, e na comparação de dois enunciados do primeiro discurso com outros enunciados escritos por Michel Temer.