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Polêmica aberta e polêmica velada no enunciado político

As relações dialógicas operam na ligação de um discurso com outros que o antecedem e o procedem no curso da história, seja de modo mais evidente, nos modos de trazer o outro para o discurso (estilização, paródia e polêmica), seja na própria ligação entre discursos de realidades distintas. Conforme o autor Bakhtin (2016) afirma em GD:

A compreensão estreita do dialogismo como discussão, polêmica, paródia. Estas são formas externas mais evidentes, porém grosseiras de dialogismo. A confiança na palavra do outro, a aceitação reverente ( a palavra de autoridade), o aprendizado, as buscas e a obrigação do sentido abissal, a concordância, suas eternas fronteiras e matizes (mas não limitações lógicas nem ressalvas meramente objetais), sobreposições do sentido sobre o sentido, da voz sobre a voz, intensificação pela fusão (mas não identificação), a compreensão que completa, a saída para além dos limites do compreensível, etc. Essas relações específicas não podem se reduzidas nem a relações meramente lógicas nem a meramente objetais. Aqui se encontram posições

integrais (o indivíduo não exige uma revelação intensiva, ela pode manifestar-se em um som único, em uma palavra única), encontram-se precisamente vozes (BAKHTIN, 2016, p. 97-98, grifos no original).

Percebemos que no interior de uma voz ou no jogo de vozes que se estabelece sobre a linguagem há o encontro de posições axiológicas e sentidos que se relacionam entre si no diálogo entre o indivíduo e a língua. A noção de polêmica, nesta pesquisa, é essencial para a análise do enunciado político, pois indica uma relação de contraste entre discursos e posicionamentos adotados por um enunciador.

Falar juntamente com um dado discurso pressupõe falar contrariamente a outros, e, na esfera política, cada posicionamento discursivo possui impacto e consequências para o enunciador e interlocutores. A produção de um enunciado político pode afetar as relações entre atores políticos e atuar positiva ou negativamente sobre deliberações e decisões políticas.

No centro das análises literárias empreendidas em PPD, Bakhtin (1997) expõe que a base metodológica para a formulação dos conceitos sobre os tipos de discurso, isto é, os graus da palavra do outro na palavra do um, é denominada por Metalinguística, que, como já mencionamos anteriormente, busca analisar não somente os elementos lexicais e linguísticos da palavra, mas as relações dialógicas entre discursos.

O autor mostra que há vários graus da presença do discurso do outro no discurso do um. Inicialmente, em um grau menor, há no discurso do um, o discurso referencial direto, que demonstra a expressão de uma única voz sobre outra referenciada, típico de juízos lógicos definitórios (BAKHTIN, 1997, p. 183). Em um grau mediano de incidência do discurso do outro, há o discurso objetificado, que é aquele trazido pelo autor para seguir sua própria orientação na obra ou enunciado. O artigo científico é um exemplo de um gênero que materializa esse tipo, no qual, segundo Bakhtin (1997, p. 188), “[...] são citadas opiniões de diversos autores sobre um dado problema – umas para refutar, outras para confirmar e completar”. Nesse caso, as vozes trazidas para o texto, dos autores citados, validam a própria orientação do autor.

Ambos os tipos elencados acima são caracterizados por Bakhtin como monovocais, pois nesses casos predomina uma só voz, que não determina de nenhum modo o discurso do autor. Nas palavras do autor, enquanto o discurso monovocal é aquele em que há somente uma voz, o discurso bivocal é aquele no qual “[...] a palavra tem duplo sentido, voltado para o objeto do discurso enquanto palavra comum e para um outro discurso, para o discurso de um outro.” (BAKHTIN, 1997, p. 185).

Para Bakhtin (1997), no discurso bivocal, há duas forças que atuam sobre o enunciado: uma faz referência ao objeto do discurso enquanto sua realização semântica estrutural de base e a outra se refere à forma expressa do jogo entre interdiscursos no interior do discurso. Dessa forma, o discurso bivocal é ao mesmo tempo orientado para seu objeto de significação, a língua, e direcionado para o discurso do outro.

Partindo do pressuposto de que o enunciado político está enquadrado no que Bakhtin chama de discurso bivocal, pois não há uma única voz manifestada na palavra política, no interior do enunciado político pode haver quaisquer dos fenômenos do terceiro tipo. É no terceiro tipo de discurso que o grau mais elevado de presença da palavra do outro atua sobre discurso do autor. Neste, há duas vozes que se chocam ou entram em harmonia entre si de modos variados: de orientação única (caso do skaz), orientação vária (caso da paródia e estilização) e de variedade ativa (polêmica aberta e velada). Essas duas últimas noções, com as quais trabalharemos na presente pesquisa, estão inseridas neste último tipo, no qual a palavra do outro determina a palavra do um de dentro para fora. Nas palavras do autor “[...] a palavra do outro permanece fora dos limites do discurso do autor, mas este discurso a leva em conta e a ela se refere” (BAKHTIN, 1997, p. 195).

A polêmica é o movimento de trazer o outro para o discurso, criando uma situação de tensão entre o discurso enunciado e o discurso posto em diálogo. Nesse caso, diferentemente dos outros tipos da variedade do terceiro tipo, a estilização e a paródia, utilizados pelo autor para demarcar seu próprio estilo e orientação, afirma Bakhtin (1997, p. 195) que: “[...] a palavra do outro não se reproduz sem nova interpretação mas age, influi e de um modo ou de outro determina a palavra do autor”. Desse modo, a polêmica se direciona para o aspecto ideológico do discurso do outro, para a relação contrária entre aspectos semânticos e entre vozes axiológicas em conflito, que emergem de outros discursos postos no momento enunciativo dado.

Bakhtin (1997) apresenta dois tipos de polêmica: a aberta e a velada. A primeira é a eclosão das vozes dialógicas aparentes na materialidade do discurso. Nessa forma de trazer

outro ao plano da enunciação, o enunciador apresenta seu foco ideológico no modo de construção das sentenças. No enunciado político, observamos esse fenômeno quando o discurso do outro é trazido para o enunciado para ser refutado pelo enunciador. Nesse caso, o discurso do outro determina o discurso do enunciador, pois, na medida em que este último utiliza o discurso do outro para formular o seu próprio, é automaticamente levado a se posicionar frente a ele, refutando-o. No decorrer das análises dos enunciados de Temer, observaremos se o discurso do outro é trazido na materialidade dos enunciados para instaurar uma relação polêmica entre o outro e o discurso empreendido pelo enunciador.

Já o outro caso, a polêmica velada, incide sobre o enunciado político quando o enunciador utiliza de um “objeto habitual”, um tema45 não relacionado diretamente ao discurso do outro para trazê-lo ao enunciado de forma indireta. Vejamos como Bakhtin, (1997, p. 196) define os dois tipos de polêmica:

A polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro, que é o seu objeto. Já a polêmica velada está orientada para um objeto habitual, nomeando-o, representando-o, enunciando-o, e só indiretamente ataca o discurso o outro, entrando em conflito com ele como que no próprio objeto.

De acordo com o autor, enquanto na polêmica aberta o discurso do outro é aparente, na polêmica velada, a voz do outro aparece subjacente ao discurso e é disfarçada no enunciado pelos modos de construção da linguagem utilizados para instaurar um posicionamento contrário ao discurso defendido pelo outro. No enunciado político é esse discurso ao qual o enunciador visa se opor. Quando isso ocorre, há, no enunciado político, a apresentação de um tema, um objeto relacionado ao discurso do outro (como o outro se posiciona frente ao tema levantado) que não o mostre explicitamente no enunciado, trazido justamente para demarcar a posição do enunciador. Na polêmica velada, o discurso do outro não é citado. Durante as análises desta pesquisa, explicitaremos como o discurso do outro aparece de forma aberta ou velada para instaurar posicionamentos e validar ou não o projeto discursivo dos enunciados.

Com efeito, Bakhtin, ao definir os dois tipos de polêmica, mostra a dificuldade de traçar uma demarcação entre eles, pois ambos instauram um embate de posicionamentos: o discurso do um colidindo com o discurso do outro:

Em um caso concreto, às vezes é difícil traçar uma linha divisória nítida entre a polêmica velada e a aberta, evidente. Mas as diferenças de significação são muito consideráveis. A polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso 45 A palavra “tema”, que empregamos nesta pesquisa, não corresponde à designação do conceito de “Tema” elaborado por Volóchinov, em MFL, mas se refere ao assunto tratado em determinados enunciados.

refutável do outro, que é o seu objeto. Já a polêmica velada está orientada para um objeto habitual, nomeando-o, representando-o, enunciando-o, e só indiretamente ataca o discurso do outro, entrando em conflito com ele como que no próprio objeto. Graças a isto, o discurso do outro começa a influenciar de dentro para fora o discurso do autor. É por isso que o discurso polêmico oculto é bivocal, embora, neste caso, seja especial a relação recíproca entre as duas vozes. A ideia do outro não entra “pessoalmente” no discurso, apenas se reflete neste, determinando-lhe o tom e a significação. O discurso sente tensamente ao seu lado o discurso do outro falando do mesmo objeto e a sensação da presença deste discurso lhe determina a estrutura. (BAKHTIN, 1997, p. 196).

Conforme aponta o autor acima, o discurso do outro, com o qual o discurso do um polemiza, pode aparecer de dois modos. No primeiro caso, pela polêmica aberta, quando o discurso do outro é trazido no enunciado e instaura um embate de discursos e, no segundo caso, pela polêmica velada, quando o discurso do outro é subjacente à materialidade da língua, demarcando, de modo implícito, a posição contrária àquela do discurso daquele que fala.

Podemos enxergar a acepção bakhtinana sobre a polêmica nas palavras de Berone (2006, p. 219):

[...] quanto mais explícito e visível for o caráter polêmico do enunciado (em outras palavras, quanto maior for seu grau de formalização genérica), menor será seu caráter bivocal; segundo Bakhtin, na polêmica aberta, a palavra alheia é enfrentada como objeto de discurso (se coloca como objetiva), enquanto que na polêmica velada, as palavras se encontram e chocam “no mesmo objeto”. Por contraposição, quanto mais invisível resulta a palavra alheia, mais ativa se volta em seu trabalho sobre as fronteiras e a estrutura do enunciado. (tradução nossa)46

Conforme o autor, quanto maior o grau de aparecimento do discurso do outro na formulação do discurso do um, de modo objetivo, há menor bivocalidade e a polêmica aberta aparece com maior força. Já quando a palavra do outro se mostra subjacente ao discurso, dá a ele maior bivocalidade e abre uma polêmica velada.

Há algumas construções linguísticas que nos permitem enxergar a incidência da polêmica aberta e velada no enunciado político. No primeiro caso: a nomeação, a presença de conjunções adversativas, a negação, a demonstração deliberada de superioridade sobre um adversário político etc. No segundo: a apresentação de temas relacionados ao espectro ideológico do enunciador para se opor ao grupo político contrário, a ênfase em um tema tratado

46Cf. original: “[…] cuanto más explícito y visible sea el carácter polémico del enunciado (es decir, cuanto mayor sea su grado de formalización genérica), tanto más perderá su carácter bivocal; según Bajtín, en la polémica declarada la palabra ajena es enfrentada ya como un objeto de discurso (se hace objetiva), mientras que en la polémica oculta las palabras se encuentran y chocan ‘en el mismo objeto’. Por contraposición, cuanto más invisible resulta la palabra ajena, tanto más activa se vuelve en su trabajo sobre las fronteras y la estructura del enunciado […]”.

frequentemente por vários grupos políticos de modo a desqualificar a ideia apregoada por tais grupos, a demonstração de argumentos que poderiam ser defendidos pelos grupos contrários ao do enunciador etc.