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Sistemas ideológicos formados e a ideologia do cotidiano

Nos momentos da obra do Círculo em que o termo ideologia não é escrito nominalmente, a ideia de que existe um arcabouço de práticas culturais, simbólicas e sociais que atuam na formação e construção dos sujeitos sociais é ponto importante no pensamento do grupo. O caráter ideológico das expressões dos indivíduos nos grupos sociais diversos é elemento garantido pela própria epistemologia bakhtinana do dialogismo, segundo a qual não há sentido nem sujeito novos na realidade social.

Na esteira da ideia de que a ideologia é fator constitutivo da linguagem humana (VOLOCHÍNOV, 2013; VOLÓCHINOV, 2017), objeto de estudo de Volóchinov na proposição das bases teórico-metodológicas para a interação discursiva, vemos que existem territórios variados para a ideologia se manifestar. De um lado, o autor mostra que existem formas mais estáveis de manifestação da linguagem, os sistemas ideológicos já formados (política, ciência, religião etc.), e, de outro, a esfera do cotidiano, os diálogos e as linguagens desenvolvidas no âmbito amplo da vida.

Refutando a ideia de que a ideologia está totalmente na consciência ou fora da consciência, Volóchinov (2017) defende que, como ponto comum entre as duas acepções, a ideologia do cotidiano e a oficial estão situadas na relação entre homem e meio social.

A diferença entre os termos é estabelecida justamente para designar o que é formado e validado no conhecimento cultural do que aquilo que brota no seio do diálogo social mais próximo do discurso, não enquadrado em um quadro ideológico acabado. Os enunciados de Michel Temer, inseridos em uma atividade discursiva institucionalizada, são formas acabadas da expressão comunicativa e construções de linguagem próprias a uma esfera: a esfera política. De outro lado, sabemos que nenhum discurso político consegue sair das amarras do cotidiano social, pois todo discurso está inscrito na história e responde aos acontecimentos históricos do período em que ocorre.

A todo conjunto de vivências e expressões externas chamaremos, diferentemente dos sistemas ideológicos formados – a arte, a moral, o direito –, de ideologia do cotidiano. Esta é o universo do discurso interior e exterior, não ordenado nem fixado, que concebe todo nosso ato, estado ou ação.

Considerando o caráter sociológico da estrutura da expressão e da vivência, podemos dizer que a ideologia do cotidiano, no nosso entender, corresponde em geral àquilo que na literatura marxista é denominado como “psicologia social” [...] Os sistemas ideológicos formados – a moral social, a ciência, a arte, a religião – se cristalizam a partir da ideologia do cotidiano e, por sua vez, exercem sobre ela uma forte influência inversa, e costumam dar o tom a essa ideologia do cotidiano. Todavia, ao mesmo tempo, esses produtos ideológicos formados preservam constantemente a mais viva ligação orgânica com a ideologia do cotidiano, nutrem-se da sua seiva e fora dela estão mortos, assim como estão mortas uma obra literária finalizada ou uma ideia cognitiva fora da sua percepção avaliativa viva (VOLÓCHINOV, 2017, p. 213).

Por mais que o discurso seja inscrito em uma atividade ideológica já construída formalmente pela sociedade, ele não está dissociado do cotidiano dos indivíduos que habitam o universo cultural em que os enunciados se inserem. A ideologia oficial não existe sem a ideologia do cotidiano:

Antes de conquistar seu espaço na ideologia oficial organizada, as novas forças sociais emergentes primeiramente encontram expressão e acabamento ideológicos nas camadas superiores da ideologia do cotidiano. É claro, no processo de luta, no processo de penetração gradual nas formações ideológicas (na imprensa, na literatura, na ciência), essas novas tendências da ideologia do cotidiano, por mais revolucionárias que sejam, sofrem a influência de sistemas ideológicos já formados, assimilando parcialmente as formas acumuladas, as práticas e as abordagens ideológicas (VOLÓCHINOV, 2017, p. 215).

Uma ideia posta no cotidiano, no diálogo social entre indivíduos de uma dada conjuntura histórico-social, se materializa em diversos sistemas oficiais, como a imprensa, o campo jurídico e político, e é replicada nos tipos de discursos variados que circulam na sociedade.

Quando nos deparamos com discursos entoados por parlamentares orientados pela ideologia oficial neoliberal, que preza pelo desenvolvimento do mercado sobre os incentivos do Estado à população, sabemos que essa ideologia não surge do nada, mas é justamente alimentada nos processos de comunicação humana que circulam no interior de uma dada cultura.

Ao passo que a política é um sistema ideológico formado, as ideias veiculadas na comunicação discursiva da sociedade (cidadãos, eleitores, atores políticos não ligados a uma atividade oficial de linguagem etc.) inserem-se na ideologia do cotidiano. Para um sistema

ideológico ser formado, é necessário que uma ideologia do cotidiano tenha se incorporado nas práticas culturais da sociedade. Durante as análises dos enunciados de Temer, levamos em conta o caráter oficial dos discursos, enquanto enunciados concretos da esfera política, bem como os graus de incidência da ideologia neoliberal sobre o enunciado. Também analisamos quais ideias do cotidiano social estão persentes no enunciado. Esses dois eixos serão mostrados, pelo exame das marcas do enunciador no enunciado, da demonstração de signos que conduzem os enunciados do corpus.

2.4.1 Uma palavra sobre o neoliberalismo

Além da política como sistema ideológico formado e uma atividade de expressão da linguagem, há, em um nível mais profundo, a ideologia neoliberal, que consiste em um arcabouço de concepções que podem incidir sobre todas as esferas da comunicação discursiva. Falar em ideologia neoliberal como um conjunto de valores que regem os processos de produção centrados no desenvolvimento do mercado e na flexibilização de procedimentos econômicos, visando a expansão do capital (financeiro e especulativo), é olhar para o viés econômico que o conceito depreende e seus desmembramentos no âmbito político. Enfatizamos a relação entre ideologia neoliberal /mercado, pois levamos em conta a ideia de Anderson et al. (1998, p. 141), ao afirmar que “o processo que caracteriza os últimos dez ou quinze anos de desenvolvimento capitalista é precisamente uma extensão enorme dos mercados (especialmente os monetários, e ainda mais, os financeiros)”.

Juntamente à questão dos tipos de mercado, epicentro dos valores neoliberais, na esteira do pensamento de Harvey (2008), o neoliberalismo se configura como um eixo representativo das concepções e processos produtivos atuantes na relação entre Estados e mercados. A ideia central que pauta essa relação é a da possibilidade de uma ascensão social pautada na lógica da garantia da propriedade e dos direitos dos indivíduos como sujeitos livres, no contexto capitalista.

O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Devetambém estabelecer as estruturas e funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. Além disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a

instrução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado. Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para entender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio benefício (HARVEY, 2008, p. 12).

Percebemos, na leitura dos apontamentos do autor, que pensar o neoliberalismo, no contato com o Estado, é justamente refletir sobre as práticas econômicas e políticas sobre as quais o Estado deve atuar. Na fase atual em que se encontra a organização do capitalismo, que passa pelo direcionamento do fluxo monetário e pelo crescimento do Estado de bem estar social, e a organização do trabalho como eixo massificado da produção de mercadorias, há um fortalecimento do mercado, alimentado pelas novas formas de incentivo sobre setores hegemônicos, garantindo a possibilidade de alargamento do lucro.

Harvey (2008) mostra, de forma certeira, que a ideia de liberdade, ao ser utilizada por tal ideologia, explicita que o neoliberalismo, ao enfatizar o jogo do livre incentivo do mercado e de uma vida natural das finanças, propõe uma atmosfera em que os sujeitos são livres para investir ou injetar fluxos monetários na realidade econômica do capital, o que não corresponde à realidade das movimentações econômicas da maioria dos indivíduos.

O modo pelo qual a ideologia neoliberal atravessa a retórica e os discursos que pregam uma liberdade individual aos indivíduos, ao mesmo tempo, emprega a ideia de direitos aos cidadãos livres e se pauta na construção de um Estado que possibilita a existência de mais incentivos econômicos e maior diálogo com o mercado.

A retórica neoliberal, com sua ênfase fundacional nas liberdades individuais; o poder de fragmentar o libertarianismo, a política da identidade o multiculturalismo e até o consumismo narcisista advindos das forças sociais se puseram a buscar a justiça social por meio da conquista do poder do Estado (HARVEY, 2008, p. 50-51).

A ideia de Estado como provedor de direitos e garantidor da justiça é muito comum nos discursos políticos brasileiros, assim como a ideia de que o mercado é provedor das necessidades da população, as quais o Estado não consegue suprir, de acordo com o ponto de vista neoliberal. Os discursos conduzidos pela ideologia neoliberal evidenciam a ideia de liberdade para todos e a ideia de que todos têm direito à justiça social, o que na prática pode não ocorrer. A existência de vocábulos que indiquem uma mudança da economia atrelada a um favorecimento econômico da população é comum nos enunciados políticos que são, em maior grau, orientados para a ideologia neoliberal.

[...] o neoliberalismo colheu uma importantíssima vitória no terreno da cultura e da ideologia ao convencer amplíssimos setores das sociedades capitalistas – e a quase totalidade de suas elites políticas – de que não existe outra alternativa. [...] O vocábulo “reforma”, por exemplo, que antes da era neoliberal tinha uma conotação positiva e progressista – e que, fiel a uma concepção iluminista, remetia a transformações sociais e econômicas orientadas para uma sociedade mais igualitária, democrática e humana – foi apropriado e “reconvertido” pelos ideólogos do neoliberalismo num significante que alude a processos e transformações sociais de claro sinal involutivo e antidemocrático. As “reformas econômicas” postas em prática nos anos recentes na América Latina são, na realidade, “contrarreformas” orientadas para aumentar a desigualdade econômica e social e para esvaziar de todo conteúdo as instituições democráticas (BORÓN, 1999, p. 11).

Ainda que o Brasil, no início do século XXI, tenha adotado práticas que remetem às práticas do Welfare State, a realidade brasileira passa por um empreendimento massivo da lógica neoliberal em todos os ramos da atividade produtiva. A realidade política e econômica brasileira se orienta positivamente para o mercado, caracterizando uma não valorização do direcionamento dos fluxos monetários para os setores de menor influência econômica e a parte marginalizada da população.

O neoliberalismo no Brasil é desenvolvido nas práticas econômicas, sociais, políticas e econômicas, e impera sobre as negociações entre atores políticos e agentes de mercado. Por outro lado, o enunciador situado na atividade discursiva política pode orientar seu discurso para diversos sistemas ideológicos formados. O enunciado político pode ou não demonstrar valores neoliberais, a depender do projeto discursivo ao qual pertence.

Durante as análises dos enunciados do corpus, buscaremos na materialidade da língua, no modo pelo qual as palavras são postas na palavra política, a incidência dos valores da ideologia neoliberal que podem se manifestar no direcionamento dos enunciados para grupos políticos e econômicos.

A seguir trataremos da noção de signo, que é justamente o lugar em que a ideologia se materializa, como prática social, colocada, sobretudo, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (MFL).