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Do sujeito pela língua ao sujeito pela história: é possível chegar ao sujeito dialógico

Para chegarmos à constituição de um sujeito que atua em uma voz política inscrita na história, recorremos, como será exposto na análise, às marcas do enunciador no discurso, às marcas de um sujeito intersubjetivo. Como trabalhamos com a produção de sentidos no discurso político, cabe ressaltar que Benveniste fornece um arcabouço rico e reconhecido para situar a linguagem no campo da enunciação.

[...] a proposta de Benveniste relacionada às formas de presença da subjetividade na linguagem, assim como a intersubjetividade que caracteriza o diálogo e o sujeito que se constitui na e pela linguagem, dizem respeito a questões que implicam a produção do sentido, dimensão da linguagem humana perseguida por diferentes teorias do discurso (BRAIT, 2006, p. 48).

Para perseguirmos a linguagem, é profícuo saber como suas marcas apontam para uma atividade enunciativa. Com raízes epistemológicas distintas, Benveniste e Bakhtin fornecem um arcabouço teórico vasto sobre a ideia de como o homem se insere na linguagem.

Como, nesta pesquisa, nossa questão central é o sujeito marcado na linguagem política, cabe reconhecer que, para entender uma representação histórica e cultural de uma FP na história, recorremos às marcas linguísticas. É nesse ponto que entra a contribuição de Benveniste. Enquanto olhamos para como a cultura abarca a produção/recepção/circulação dos enunciados, olhamos também para como eles se constituem a partir de suas formas na expressão comunicativa em sua especificidade semiótico-ideológica.

Para Benveniste, o sujeito, encarado no âmago da comunicação social, é intersubjetivo, isto é, instaura um tu para travar com ele o jogo da enunciação da língua. Para o autor existem dois níveis: o da língua e o do discurso, duas instâncias que estão em jogo na enunciação. Quando há um pronome que instaura um enunciador situado em uma atividade enunciativa não há somente um pronome, unidade de língua, há também uma unidade de discurso. Em outras palavras, há um sujeito que assume a palavra, que aparece na e pela linguagem, como vemos em “Da Subjetividade na Linguagem”50:

O "eu" não denomina pois nenhuma entidade lexical. Poder-se-á dizer, então, que eu

se refere a um indivíduo particular? Se assim fosse, haveria uma contradição permanente admitida na linguagem, e anarquia na prática: como é que o mesmo termo poderia referir-se indiferentemente a qualquer indivíduo e ao mesmo tempo identificá-lo na sua particularidade? Estamos na presença de uma classe de palavras, os "pronomes pessoais", que escapam ao status de todos os outros signos da linguagem.

A que, então, se refere o eu? A algo de muito singular, que é exclusivamente linguístico: eu se refere ao ato de discurso individual no qual é pronunciado, e lhe designa o locutor. É um termo que não pode ser identificado a não ser dentro do que, noutro passo, chamamos uma instância de discurso, e que só tem referência atual. A realidade à qual ele remete é a realidade do discurso. É na instância de discurso na qual eu designa o locutor que este se enuncia como "sujeito". É portanto verdade ao pé da letra que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua. [...] A linguagem está de tal forma organizada que permite a cada locutor apropriar-se da língua [...].

Os pronomes pessoais são o primeiro ponto de apoio para essa revelação da subjetividade na linguagem. Desses pronomes dependem, por sua vez outras classes de pronomes, que participam do mesmo status. São os indicadores da deíxis,

demonstrativos, advérbios, adjetivos, que organizam as relações espaciais e temporais em torno do “sujeito” tomado como ponto de referência: “isto, aqui, agora” e as suas numerosas correlações: “isso, ontem, no ano passado, amanhã” (BENVENISTE, 1976, p. 288, grifo nosso).

Nesta pesquisa, observamos que, para chegarmos a um sujeito dialógico, podemos traçar na língua um sujeito que se posiciona enunciativamente, demarca interlocutores e se projeta nos enunciados. Diferentemente de como o Círculo encara a enunciação, como expressão cultural e comunicativa do sujeito, Benveniste a coloca no nível linguístico, da expressão da língua:

A enunciação e este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização, a discurso, dir-se-á, que é produzido cada vez que se fala, esta manifestação da enunciação, não é simplesmente a "fala"? É preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação: é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto. Este ato e o fato do locutor que mobiliza a língua por sua conta. A relação do locutor com a língua determina os caracteres linguísticos da enunciação. Deve-se considerá-la como o fato do locutor, que toma a língua por instrumento, e nos caracteres linguísticos que marcam esta relação (BENVENISTE, 1989, p. 82, grifo nosso).

Quando observamos os discursos políticos, é a partir do entendimento de como há uma marcação de um enunciador que conseguimos visualizar o sujeito. Cabe ressaltar que o enunciado, produto da enunciação, sempre se refere a outro enunciado. Conforme aponta o linguista francês em “Aparelho Formal da Enunciação”51:

[...] na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de correferir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um colocutor. A referência é parte integrante da enunciação. Estas condições iniciais vão reger todo o mecanismo da referência no processo de enunciação, criando uma situação muito singular e da qual ainda não se tomou a necessária consciência, o ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação, a presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno. Esta situação vai se manifestar por um jogo de formas especificas cuja função é de colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação (BENVENISTE, 1989 p. 84).

Benveniste mostra que o sujeito se inscreve na instância de discurso de forma objetiva. O “eu” presente em um enunciado, no caso desta pesquisa, o enunciador político que toma a palavra, não se refere a uma classe geral, mas situa os enunciadores que falam junto com ele na enunciação do enunciado. Como, nesta pesquisa, trataremos de como um enunciador se enuncia

na esfera política, pela linguagem típica desta esfera, de modo a projetar um sujeito, cabe ressaltar a visão de Benveniste em “A natureza dos pronomes”52. Esta situa justamente as posições dos pronomes como marcas linguísticas passíveis de atuar no discurso e designar sujeitos específicos.

Cada instância de emprego de um nome refere-se a uma noção constante e “objetiva”, apta a permanecer virtual ou a atualizar-se num objeto singular, e que permanece sempre idêntica na representação que desperta. No entanto, as instâncias de emprego de eu não constituem uma classe de referência, uma vez que não há objeto definível como eu ao qual se possam remeter identicamente estas instâncias. Cada eu tem a sua referência própria e corresponde cada vez a um ser único, proposto como tal (BENVENISTE, 1976, p. 278).

Conseguimos entender a formação de um sujeito presente em uma situação de elocução pela observação das marcas enunciativas que o designam, a incidência dos pronomes nos enunciados. Segundo Brait (2006, p. 47-48), a teoria de Benveniste em AFE “[...] abre caminho para os estudos do sujeito e do discurso e é utilizada sempre que há necessidade de trabalhar as materialidades linguísticas que configuram textos e discursos”. Benveniste confirma a ideia de que, na enunciação, o indivíduo se apropria da linguagem pela marcação em primeira pessoa. Para Benveniste, (1976, p. 281), no momento em que o indivíduo utiliza a linguagem para fins diversos, mobiliza instâncias de discurso “[...] caracterizadas por esses sistema de referências internas cuja chave é eu, e que define o indivíduo pela construção linguística particular de que ele se serve quando se enuncia como locutor”.

Na presente pesquisa, não procuramos elencar as motivações do indivíduo no interior da enunciação do discurso político, mas sim entender qual corpo de ideias sociais um sujeito projeta no enunciado. Somente conseguimos realizar esse movimento pela observação das marcas enunciativas. É a partir das marcas linguísticas de um indivíduo situado em uma enunciação que podemos encontrar como há a projeção de um sujeito. É a partir das marcas na língua que conseguimos compreender as referências às pessoas designadas no discurso. Sobre a ideia das pessoas do discurso, Benveniste (1976, p. 250), em “Estrutura das relações de pessoa no verbo”53, afirma que:

Nas duas primeiras pessoas, há ao mesmo tempo uma pessoa implicada e um discurso sobre essa pessoa. Eu designa aquele que fala e implica ao mesmo tempo um enunciado sobre o “eu”: dizendo eu, não posso deixar de falar de mim. Na segunda pessoa, “tu” é necessariamente designado por eu e não pode ser pensado fora de uma 52Benveniste (1976), “A natureza dos pronomes”, p. 277-283.

situação proposta a partir do “eu”; e, ao mesmo tempo, eu enuncia algo como um predicado de “tu”. Da terceira pessoa, porém, um predicado é bem enunciado somente fora do “eu-tu”; essa forma é assim exceptuada da relação pela qual “eu” e “tu” se especificam.

Na análise que se segue neste trabalho, mostraremos como a partir das marcas de pessoa, sobretudo, da primeira pessoa do singular e do plural, podemos entender a construção de uma figura política, de um sujeito que responde às coerções históricas. O enunciador, Michel Temer, nos enunciados do corpus, assume a posição enunciativa, convoca ao enunciado um “tu”, os interlocutores, e menciona a não pessoa, “ele”, que é o próprio objeto dos discursos, os assuntos nos quais os discursos se apoiam. A partir das marcas de pessoa nos enunciados, buscamos demonstrar a figura política projetada na linguagem.

A partir da interpretação do sujeito nas marcas linguísticas, depreendemos como esse sujeito se coloca em momentos históricos específicos, pelas coerções da enunciação e do contexto de uma época. Nesse sentido, observemos, a seguir, como o linguista concebe os pronomes como classes que fazem parte do que ele chama de Aparelho formal da enunciação.

As formas denominadas tradicionalmente “pronomes pessoais”, “demonstrativos”,

aparecem agora como uma classe de “indivíduos

linguísticos”, de formas que enviam sempre e somente a “indivíduos”, quer se trate de pessoas, de momentos, de lugares, por oposição aos termos nominais, que enviam sempre e somente a conceitos. Ora, o estatuto destes “indivíduos linguísticos” se deve ao fato de que eles nascem de uma enunciação, de que são produzidos por este acontecimento individual [...]. Eles são engendrados de novo cada vez que uma enunciação é proferida, e cada vez eles designam algo novo (BENVENISTE, 1989, p. 85).

Cada vez que um enunciador entra em cena, é produzido um novo enunciado, são marcadas novas pessoas referidas por um momento enunciativo específico. No caso dos três enunciados políticos, que figuram no corpus desta pesquisa, e que tratamos como o aparecimento do mesmo sujeito, no sentido bakhtiniano, há momentos distintos e três atividades enunciativas colocadas, três circunstâncias, referente ao mesmo falante. O enunciador somente consegue se posicionar no ato de uma enunciação, de forma explícita, quando se coloca nos pronomes de primeira pessoa.

Como forma de discurso, a enunciação coloca duas “figuras” igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da enunciação. E a estrutura do diálogo. Duas figuras na posição de parceiros são alternativamente protagonistas da enunciação. Este quadro e dado necessariamente com a definição da enunciação [...]

Cada enunciação é um ato que serve o propósito direto de unir o ouvinte ao locutor por algum laço de sentimento, social ou de outro tipo. Uma vez mais, a linguagem, nesta função, manifesta-se-nos, não como um instrumento de reflexão, mas como um modo de ação (BENVENISTE, 1989, p. 87-90).

Percebemos que Benveniste toma a enunciação no interior do jogo entre duas posições que estabelecem o diálogo. No caso dos enunciados de Temer, estes são realizados por um mesmo enunciador, o ex-presidente da república, dialogam com momentos históricos, com outros discursos, e se orientam para interlocutores.

Nesta pesquisa é essencial falarmos de Benveniste, pois para chegarmos a uma FP que se expressa na história brasileira, recorremos às marcas de pessoa, que podem, no discurso, instaurar posicionamentos. Veremos ao longo das análises como os pronomes pessoais e possessivos e os verbos em primeira pessoa instauram enunciador e interlocutores. É na materialidade da linguagem que podemos encontrar o sujeito discursivo.

A seguir, passamos a mostrar como caracterizamos o corpus da presente pesquisa.