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O signo ideológico: a palavra ideologicamente preenchida na enunciação

Considerando o fato de que “[...] todo signo surge entre indivíduos socialmente organizados no processo de sua interação” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 109), pensar a atividade enunciativa como lugar em que são traçados caminhos discursivos entre interlocutores e situações históricas específicas é fator determinante para entendermos as particularidades semânticas e axiológicas de todo discurso. Os sistemas ideológicos formados somente acontecem no interior da expressão de signos.

É nesse sentido que Volóchinov (2017) propõe que toda relação ideológica pressupõe a existência de signos, expondo a existência de um diálogo entre o discurso posto na enunciação e outros que foram enunciados em outros lugares e em outros momentos, que somente aparecem no fio da história no instante em que são reativados no ato enunciativo. O signo nasce da palavra, e é posterior a ela, a qual se encontra no processo de apropriação do simbólico, disposto aos sujeitos da enunciação, os quais, por sua vez, também pela enunciação, transformam-na em signo.

Entendemos aqui que o sentido se constrói no processo de interação discursiva que se dá entre sujeitos sociais que atuam na e pela linguagem, orientados por uma força responsiva

ativa (BAKHTIN, 2016). Existe sempre a possibilidade do novo na ressignificação do material verbal. Qualquer campo de significação, seja ele político, religioso, midiático ou qualquer outro possui uma delimitação estética própria. Para caracterizar tal delimitação no discurso político, utilizamos a noção de signo ideológico (VOLÓCHINOV, 2017), levando em conta a relação eu/outro no objeto discursivo.

Volóchinov (2017) mostra que há uma relação intrínseca entre palavra e signo, pois a primeira constitui um eixo da esfera comunicativa que expressa valores. Conforme o autor:

[...] a palavra participa literalmente de toda interação e de todo contato entre as pessoas: da colaboração no trabalho, da comunicação ideológica, dos contatos eventuais cotidianos, das relações políticas etc. Na palavra se realizam os inúmeros fios ideológicos que penetram todas as áreas da comunicação social. É bastante óbvio que a palavra será o indicador mais sensível das mudanças sociais, sendo que isso ocorre lá onde essas mudanças ainda estão se formando, onde elas ainda não se constituíram em sistemas ideológicos organizados (VOLÓCHINOV, 2017, p. 106).

Conforme os apontamentos do autor, a partir do momento em que a palavra é preenchida com os valores sociais, ela se torna signo ideológico, exerce função ativa na comunicação social. A palavra, por estar no centro do processo do desenvolvimento da língua, vem a tornar-se signo quando adquire um construto ideológico definido socialmente, o qual pode tornar-se modificar pela multiplicidade de contextos de sua realização.

Observamos que, no processo de enunciação, a palavra é tomada no discurso como um elemento da língua que é permeada por uma ideologia. É preciso ressaltar que a palavra, por si só, não constitui uma forma ideológica definida. A partir do momento em que a palavra adquire significação histórica e ideológica e se torna um signo, extrapola sua condição puramente formal, que possibilita o sentido primeiro de sua constituição objetiva de descrever o mundo e as coisas, e passa para o sentido ideológico e social, que emerge do processamento da linguagem por um sujeito situado na história.

O signo se orienta para um processo valorativo e concepções de mundo que o atravessam e possuem concretude na manifestação discursiva. Não se trata de uma instância de significação que somente mantém um diálogo com a realidade, mas avalia o real de um modo específico, que se dá justamente no jogo entre as estruturas ideológicas. O signo possui duas propriedades elencadas por Volóchinov (2017): de refletir e refratar a realidade, os valores sociais. Acerca dessas duas propriedades do signo, Drucaroff (1996, p. 48) coloca que:

No caso do signo, o que determina sua faculdade ativa de “quebrar” o raio é – precisamente – seu caráter de “arena de luta de classes”: se classes antagônicas falam a mesma língua, se nela (em seus discursos que são negociações, discussões com ou

sem compromisso do corpo, enfrentamentos verbais) combatem em princípio, o signo é uma superfície capaz de quebrar, de refratar o raio da existência, pelo menos em duas direções avaliativas: a de um lado e a do outro (tradução nossa).39

Na esteira da concepção sobre cultura, ideologia e signo postulada nos textos iniciais do Círculo, destacando a acepção do viés social de Volóchinov, a autora expõe que o signo é um espaço de disputa de diferentes vozes sociais que emergem no diálogo entre sujeitos sociais e possui unicidade em uma dada comunicação discursiva. Nessa perspectiva, o signo como instância material de sentido não reproduz o pensamento de forma linear de uma classe social, mas é o lugar no qual as classes demonstram o choque das relações sociais. Esse choque é refletido e refratado no enunciado e garante um acabamento na manifestação verbal.

Segundo Faraco (2009, p. 54), “[...] a enunciação de um signo tem efeitos de sentido que decorrem da possibilidade de sua ancoragem em diferentes quadros semântico-axiológicos, em diferentes horizontes sociais de valores”. A partir do momento em que existem discursos que estabelecem essa relação memorial que compõem a história, como é o caso do discurso político, que se vale dos valores sociais estabelecidos para ser construído e situado em uma esfera específica de produção enunciativa, há um movimento de atualização de sentidos já incorporados pela sociedade.

Nesse sentido, a palavra como instância de significação da língua que consiste no lugar de aparecimento dos signos sociais somente pode ser reproduzida em uma concretude da expressão verbal no interior da luta social e cultural dos sujeitos e interlocutores. Ao mostrar a palavra, quando transformada em signo, como fator pragmático e concreto, que não pode ser excluída da realidade social quando posta no mundo dos sentidos, Drucaroff (1996, p. 52) aponta que:

Palavras como fatos materiais nos quais transcorre (não se reflete) o combate social; transcorre fundamentalmente ali, embora o corpo participe; pelo menos, até que os discursos já não possam ser derrotados e somente por isso, porque não há como calá-los, como conjurar as ações que produzem, o combate privilegia agora o terreno do corpo, a materialidade não semiótica, onde, para vencer, é preciso matar aquele que fala.40

39 En el caso del signo, lo que determina su activa facultad de “quebrar” el rayo es – precisamente- su carácter de “arena de la lucha de clases”: si clases sociales antagónicas hablan la misma lengua, si en ella (en sus discursos que son negociaciones, discusiones con o sin compromiso del cuerpo, enfrentamientos verbales) combaten en principio, el signo es una superficie capaz de quebrar, de refractar el rayo de la existencia, por lo menos en dos direccioes evaluativas: la de un bando y la de otro (DRUCAROFF, Elsa. Mijail Bajtín: La guerra de las culturas. Editorial Almagesto, 1996, p. 48).

40Palabras como hechos materiales en los cuales transcurre (no se refleja) el combate social; transcurre fundamentalmente allí, aunque el cuerpo participe; por lo menos, hasta que los discursos ya no pueden derrotarse y sólo por eso, porque no hay cómo callarlos, cómo conjurar las acciones que producen, el combate privilegia

Percebemos, de acordo com o pensamento da autora, que o signo ideológico e a palavra são conceitos basilares para a percepção da língua em seu aspecto real. Drucaroff (1996) faz uma ressalva para o fato de que Volóchinov não afirmou uma realidade encarnada para a palavra, situando-a como aspecto mínimo da linguagem, mas mostrou, em sua teoria, que a palavra pode se tornar signo, entrar em território dialógico e se materializar no jogo das forças produtivas, do acontecimento social único da expressão do sujeito no mundo.

O signo é uma entidade material, está no “centro das mudanças sociais” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 106), reflete e refrata contextos axiológicos, ideologias e valores. É no momento do acontecimento discursivo que os valores aparecem demonstrados na linguagem:

[...] qualquer objeto da natureza, da tecnologia ou de consumo pode tornar-se um signo. Neste caso, porém, ele irá adquirir uma significação que ultrapassa os limites da sua existência particular. O signo não é somente uma parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade, sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico e assim por diante. As categorias de avaliação ideológica (falso, verdadeiro, correto, justo, bom etc.) podem ser aplicadas a qualquer signo. [...] No interior do próprio campo dos signos, isto é, no interior da esfera ideológica, há profundas diferenças, pois fazem parte dela a imagem artística, o símbolo religioso, a fórmula científica, a norma jurídica e assim por diante. Cada campo da criação ideológica possui seu próprio modo de se orientar na realidade, e a refrata a seu modo. Cada campo possui sua função específica na unidade da vida social. Entretanto, o caráter sígnico é um traço comum a todos os fenômenos ideológicos (VOLÓCHINOV, 2017, p. 93-94).

Junto com o aparecimento do signo em diferentes contextos verbais existem valores e crenças que acompanham o andamento do fio da linguagem. São modos de conceber o mundo, próprios dos moldes da cultura e da história, inseridos nos variados tipos de expressão sígnicos que há na sociedade, que o autor chama de “ideologia”. Esse termo é cunhado no arcabouço teórico do círculo de Bakhtin como um conjunto de valores presentes na expressão social da linguagem, que designa um campo sistemático de ideias específico da comunicação humana.

Segundo Willians (2007, p. 212-217), existem três modos de conceber a ideologia veiculados nas ciências sociais e nos estudos culturais:

a) Ideologia como não ciência, visão defendida por Napoleão em contraposição à teoria materialista de Destutt De Tracy, primeiro teórico a utilizar o termo;

ahora el terreno del cuerpo, la materialidad no semiótica, donde para vencer hay que matar al que habla (DRUCAROFF, 1996, p. 52).

b) Ideologia como falsa consciência, perspectiva defendida por Marx e Engels, que se refere a um reflexo invertido da realidade, que gera a alienação;

c) Ideologia como condições econômicas de produção, nas quais há uma consciência das transformações sociais pelos homens.

Entendemos que a perspectiva do Círculo de Bakhtin, que visa elaborar uma ciência das ideologias, sobretudo, traduzida de forma explícita no pensamento de Volóchinov (2017), mantém um diálogo com segunda e a terceira concepções, travando um embate polêmico com a primeira, defendida em grande escala por marxistas na época de produção dos textos iniciais do Círculo. A questão da separação entre marxismo e ideologia, segundo Willians (2007, p. 216) é controversa dentro do próprio ambiente marxista.

Tratamos aqui por ideologia todo sistema de valores socialmente instaurado e que se traduz nas relações linguísticas, sociais e culturais que os sujeitos reproduzem no todo comunicativo da realidade histórica. Segundo Volochínov (2013, p. 138, grifos no original), a ideologia é “[...] o conjunto de reflexos e interpretações da realidade social e natural que se sucedem no cérebro do homem, fixados por meio de palavras, desenhos, esquemas ou outras formas sígnicas”.

Desse modo, a noção de ideologia colocada por Volochínov (2013) e reiterada em MFL (Marxismo e filosofia da linguagem) consiste em uma visão abrangente da influência cultural e histórica que a organização social exerce sobre os sujeitos sociais. Uma ideia compartilhada por um grupo social não pode tornar-se ideologia somente por ser posta em diálogo social, mas deve ser assimilada e simbolizada por uma comunidade, de modo a que haja a manutenção de um sistema de práticas culturais específicas.

Drucaroff (1996), ao trazer como a questão da ideologia é trabalhada no pensamento do Círculo de Bakhtin em meio às discussões sobre o conceito que ocorreram no conjunto da teoria marxista, mostra que o Círculo, no projeto de uma ciência concreta das ideologias, herda dois tipos de noção que veiculavam na época de produção dos intelectuais marxistas no início do século XX. De um lado, existiam os que defendiam a ideologia como falsa consciência, como reflexo falso da realidade que, reproduzida na linguagem, busca falsear a realidade, favorecendo, assim, a manutenção do discurso da ideologia dominante. Por outro viés, esse conceito era concebido, por alguns marxistas com os quais o Círculo travava um diálogo polêmico, como conceito referente a todo sistema de representação que não possui base científica. Há também a noção de ideologia como projeto social, que caracteriza uma

consciência da mudança de sua formulação alienante, elencada por Rossi-Landi (1985)41 como planejamento social. No entanto, não há um embate em grau elevado entre tal noção e a acepção do Círculo, devido a não haver uma negação entre a visão dos mestres russos sobre a possibilidade de reflexão que a ideologia propõe em termos de mudança da realidade social, embora tenha havido uma resistência do Círculo quanto a noção de ideologia como falsa consciência.

Apresentamos, aqui, a ideologia como a construto essencial que atravessa o discurso, trazendo a reflexão sobre o termo ideologia de Chauí (1984), que se reporta ao enfoque histórico e marxista da definição do termo, ao defender que a ideologia se trata de um modo de reprodução de ideias determinado pela sociedade:

[...] a ideologia não é sinônimo de subjetividade oposta à objetividade, que não é pré-conceito nem pré-noção, mas que é um “fato” social justamente porque é produzida pelas relações sociais, possui razões muito determinadas para surgir e se conservar, não sendo um amontoado de ideias falsas que prejudicam a ciência, mas uma certa maneira da produção das ideias pela sociedade, ou melhor, por formas históricas determinadas das relações sociais (CHAUÍ, 1984, p. 13).

Observamos que a ideologia opera como fato social42, a partir do momento em que se realiza na sociedade, devido ao entrecruzamento de mecanismos sociais determinados por fatores históricos, aparecendo, assim, como fator substancial mostrado no jogo de sentidos presentes nos discursos.

A ideologia, tal como é concebida por Bakhtin e o Círculo se refere às práticas histórico-sociais que, situadas nas relações econômicas e nos instrumentos de produção que se realizam na linguagem, nos signos e enunciados, possuem uma dada significação e atuam sobre um horizonte social. Conforme Ponzio (2008, p.112): “[...] A ideologia é a expressão das relações

41 Na esteira do pensamento do conceito de ideologia como sistema de valores, cabe também levar em conta a caracterização de ideologia do semioticista Rossi-Landi (1985), que ressignifica o marxismo na distinção entre falsa consciência e projeto social, a primeira significando a oculta apresentação dos valores da classe dominante que falseia os sistemas de representações de modo a auxiliar a manutenção das significações de prestígio social, e a segunda, que consiste em um retorno ao questionamento de como se constroem as forças produtivas que regem a produção material de sentidos.

42 A expressão “fato social” é utilizada por Durkheim (2007) e se refere aos moldes sociais que regem a vida humana tendo característica principal a coercitividade, a aceitação, e a convenção social acerca de um postulado que se materializa nas práticas sociais. A autora insere a palavra fato entre aspas para afirmar uma não projeção total com o conceito proposto pelo sociólogo (não homogeneidade da ideologia) e ao mesmo tempo refutar a ideia de que a ideologia está fora da ciência e se caracteriza por uma falsa consciência, visão defendida pelos marxistas russos, postura mecanicista que Drucaroff (1996) chamou de “positivismo marxista”.

histórico-materiais dos homens, mas “expressão” não significa somente interpretação ou representação, também significa organização, regulação dessas relações”.43

Os discursos políticos de um presidente ou chefe de Estado, já possuidor de um cargo de alto escalão em uma conjuntura republicana de um país, têm a possibilidade de dialogar, na prática da linguagem, com ideologias diversas. O signo no discurso político não é a concretização somente de um material fônico, mas consiste na mobilização de sentidos que são replicados na sociedade e na esfera política, instaurando interlocutores e valores sociais.

O lugar em que a ideologia se materializa - o signo - é parte essencial para a compreensão (ponimánie), pois conclama o aparecimento de outros signos que, ao possuírem a capacidade de se orientar para vários conjuntos de significações, assumem sentido na comunicação verbal:

[...] a compreensão de um signo ocorre na relação deste com outros signos já conhecidos, em outras palavras, a compreensão responde ao signo e o faz também com signos. Essa cadeia da criação e da compreensão ideológica, que vai de um signo a outro e depois para um novo signo, é única e ininterrupta: sempre passamos de um elo síignico, e, portanto, material, a outro elo também sígnico. Essa cadeia nunca se rompe nem assume uma existência interna imaterial e não encarnada no signo (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95).

Notamos que a relação entre um signo e outro constitui o cerne da compreensão, na medida em que ela se faz no interior do signo e na relação entre signos. Podemos situar um paralelo dessa concepção com outras reflexões do autor e de Bakhtin sobre a existência de um plano de linguagem que se choca com outro para formar um terceiro. Tomamos como exemplo a ideia de supra destinatário ou a própria relação dialógica entre o um e o outro que constitui uma terceira relação que se dá no plano da linguagem.

Os signos, ideologias, posições sociovalorativas e autores sociais são demonstrados no enunciado. O enunciado concreto faz parte da manifestação criativa que atua sobre a língua, como eixo de significação ampla, e não se reduz ao fator gramatical. Bakhtin (2016) mostra a diferença entre enunciados e signos linguísticos: estes estão situados no sistema da língua e podem configurar o objeto da linguística, enquanto aqueles constituem a relação do sujeito com a realidade dialógica da linguagem44.

43 Ressaltamos que a atribuição da autoria a Bakhtin de MFL, como foi defendida durante muito tempo por teóricos distintos não consiste no aspecto factual. A assinatura de Volóchinov para tal obra bem como a investigação sobre seus escritos permitem elencar que o pensamento de que aqui se atribui à Bakhtin é exposto na materialidade escrita posta por Volóchinov. A esse respeito consultar Brait (2016), Drucaroff (1996), Grillo (2017).

44 A palavra viskázivanie em língua russa pode ser traduzida por enunciado ou enunciação. Segundo Volóchinov (2017, p. 216), “o enunciado como tal é em sua completude um produto da interação social”. Para o estudo aprofundado do termo ver Brait e Melo (2016).

A palavra e o signo no enunciado político, com efeito, podem apontar para o fluxo político e econômico de um momento histórico, as forças produtivas na sociedade atual e do modo de interação entre os sujeitos sociais que ocorre na esfera política brasileira. Um signo sempre pode se orientar a diferentes realidades socioavaliativas. A análise dos enunciados do corpus, que realizaremos nesta pesquisa, concentrar-se-á nas palavras utilizadas nos discursos e como podem se tornar signos, e circunscrever uma figura política.