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22 O conceito de circularidade aqui utilizado a partir da proposta de Ginzburg (1995) remete á idéia de que diferentes visões de mundo de cultura estão constantemente em contato, "um relacionamento circular feito de

3.3. O Livro como Dádiva

Uma das dificuldades que encontramos na pesquisa antropológica, principalmente na etnografia clássica, pautada fundamentalmente pela observação participante, é a de fazer os nossos informantes entenderem o que estamos fazendo ali, horas a fio junto a eles. Afinal de contas, onde está o gravador e o questionário? Não parece fazer muito sentido ficarmos horas conversando sobre coisas da vida cotidiana, da família, das fofocas da vizinhança24. Um elemento que importa salientar é que, de acordo com alguns autores, a cultura dos grupos populares urbanos é eminentemente oral, mesmo levando-se em conta a heterogeneidade inerente aos grupos sociais. Ainda assim, o caráter oral, marcado pelas narrativas e performances, é uma elemento constituidor do universo simbólico destes grupos que marca uma distinção em contraste com culturas letradas, altamente escolarizadas (cf. Bourdieu, 1979 e Willis, 1991). A primeira vista, nestes contextos a escrita a não parece ter muita relevância.

Devido a estes pressupostos, que carreguei comigo para a pesquisa, fiquei surpreendida ao ver que as minhas informantes propagandeavam aos quatro ventos que eu estava a escrever um livro sobre elas. A partir deste estranhamento, passei a questionar aqueles pressupostos, e buscar o significado da importância do livro para aquele grupo. Isto indicava uma pista a ser seguida, um indício sobre a circularidade de valores simbólicos culturais, sua apropriação e ressignificação. Passei, assim, a prestar mais atenção em outros signos da dita cultura letrada que apareciam ali. O que importa salientar é que o fato de eu estar a escrever um livro sobre elas teve influência na nossa relação.

A partir daí fui "adotada" por Alice, Elvira e Anete. Praticamente tomaram conta da minha pesquisa. Levavam-me a todas as reuniões de que participavam, apresentavam-me pessoas, indicavam-me algumas que consideravam fundamentais para a pesquisa e colocavam-me a par das últimas discussões que estavam acontecendo. Tudo isto por sua intermediação, como se pode notar em minhas anotações de campo na primeira reunião do Orçamento Participativo (OP) em que as acompanhei, em abril de 1999:

24 Na minha primeira experiência de pesquisa etnográfica, junto a prostitutas de rua no centro de Porto Alegre de agosto de 94 a março de 96, esta dificuldade era recorrente. A saída que encontrei foi dizer que eu era estudante da faculdade e que estava escrevendo um livro sobre a vida nas ruas do centro de Porto Alegre. Contudo, isto nunca se mostrou muito importante para estas informantes. Antes pelo contrário, já que costumavam brincar comigo ao enfatizar que esta era uma desculpa "esfarrapada", pois na realidade o meu verdadeiro interesse deveria ser no aprendizado do métier. Assim que, neste contexto, o uso da escrita do livro como justificativa para a pesquisa não era muito valorizado pelas informantes.

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Anete me colocou sentada em uma cadeira atrás de uma grande mesa que havia no espaçoso salão da igreja onde costumavam acontecer as reuniões da região. Logo em seguida, começou a trazer pessoas para me apresentar: Essa é uma amiga nossa, antropóloga, que tá fazendo uma pesquisa com as mulheres na política, dizia ela, praticamente mandando-me explicar minha pesquisa e agendar entrevistas. Eu não sabia muito bem como lidar com aquilo, e fui deixando os acontecimentos se desenvolverem. Antes de começar a reunião, eu estava conversando com um funcionário da prefeitura, encarregado regional do OP. Ele comentou: mais uma pesquisadora pra nós... Ao que retruquei: Espero que elas sejam bem vistasf Ele ri dizendo que sim, colocando-se à minha disposição. Anete, que estava por perto a escutar a nossa conversa, aproximou-se e entusiasmadamente disse, rindo e batendo com a mão em seu peito: - E essa, fui eu que trouxeí Essa eu tenho orgulho e bato no peito, fu i eu que trouxe/ Eu, meio sem jeito, sorri.

Logo em seguida, ela me trouxe um pedaço de papel, dizendo-me: escreve direitinho aí todo o teu nome, de onde tu vem, o que tu é, e sobre o que tu pesquisa. Escreve também que quem te trouxe foi as Promotoras Legais Populares do Partenon. Perguntei para o que seria, ela, como de costume, sem muita paciência para minhas perguntas, respondeu-me: E que é assim que funciona, todas as pessoas de fora tem que ser anunciada quando começa a reunião, pra todo mundo saber quem tu é! Fiz o que ela me pediu, entregando-lhe o papel. Ela pegou-o, conferiu o que escrevi e entregou-o ao coordenador da reunião.

Resolvi levantar-me e circular pelo ambiente para falar livremente com as pessoas, sem a intermediação de Anete e de Alice, que estavam sempre à minha volta. Quando me estava aproximando de um grupo de mulheres, Anete veio em minha direção e perguntou-me como eu estava indo. Brinquei com ela dizendo que estava aturdida com tantas novidades. Ela riu com ar de satisfação e, gesticulando com as mãos, disse-me. Ah, mas é assim mesmo. Aqui tu vai ter que trabalhar. Eu sei bem o que é uma tese. Tem que ir a fundo. Por isso que quanto mais gente tu conhecer melhor...”

Alguém a chamou e finalmente me vejo livre. Num pequeno grupo de mulheres que conversavam, reconheci uma que havia conhecido na reunião da associação de

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moradores da qual tinha participado por intermediação de Olívia. Aproximei-me dela para cumprimentá-la. Sorridente, ela me apresentou sua amiga, dizendo-lhe que eu estivera na última reunião da associação, e contou-lhe sobre minha pesquisa. Alice chegou rapidamente ao meu lado, colocou o braço em tomo do meu e disse-lhes: Ela veio com nós, nós é que convidamo ela/ Puxou-me para que eu me sentasse ao seu lado, pois a reunião iria começar. Pedi licença às duas e fui sentar-me com Alice.

O Conselheiro do Orçamento Participativo do Partenon (COP), responsável por coordenar a reunião, deu início aos trabalhos da noite, apresentando algumas pessoas. Logo em seguida lê o papel que Anete lhe entregou: Meus amigos, hoje temos aqui conosco um grupo de promotoras legais populares do Partenon (Anete me cutucou: O, agora é tu. Te levantaS) que trouxeram a pesquisadora Alinne Bonetti, mestranda da Universidade Federal de Santa Catarina que pesquisa sobre mulher e política. Seja bem vinda na nossa reunião e na nossa cidade!

Neste momento tive de me levantar, caso contrário Anete não me deixaria em paz. Senti meu rosto enrubescer quando todos se viraram e olharam para mim. Anete e Alice sorriam satisfeitas ao meu lado, rindo de meu visível constrangimento. (28/04/99)

Após esta "iniciação", tive uma certeza: aí estava a especificidade do meu campo. Não se tratava mais de estar em uma roda de mulheres, conversando despreocupadamente sobre coisas da vida, ou tomando café com bolachas na cozinha de uma informante e fofocando sobre as últimos acontecimentos da vila. Estava entrando em campo "minado". Era outra esfera, completamente nova para mim, fortemente marcada por disputas, tensões e negociações. Neste contexto, ser amiga de uma pesquisadora, ter uma antropóloga - por mais abstrata que pudesse ser esta categoria profissional para elas - interessada na sua atuação, acompanhando-as, parecia conferir-lhes um status diferenciado. Se por um lado não lhes parecia fazer muito sentido o meu interesse por coisas do tipo a maneira como conheceram o marido, quem lavava as roupas e limpava a casa ou ainda as minhas perguntas indiscretas sobre de onde saia o dinheiro que sustentava a casa, por outro pareciam ter a clara noção do que significava uma pesquisa e o alto valor simbólico que isto possui naquele meio. Coisas que eu, ingenuamente, não sabia e me foram mostradas por elas.

Um elemento que ajuda a relativizar esta aparentemente grande importância conferida à figura da pesquisadora e que também aponta uma resposta às "preocupações" da

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antropologia pós-modema acerca da autoridade do antropólogo (cf. Clifford e Marcus, 1986) é o fato de que as minhas informantes faziam questão de explicitar, ao mesmo tempo em que valorizavam minha presença, uma diferença entre nós. Creio tratar-se de uma explicitação do status social destacado e contextual de cada uma de nós, conformando uma hierarquia na qual elas detinham o status de maior valor. Estas explicitações foram recorrentes em todo o processo da pesquisa.

Ao chegar no plantão do SIM, encontrei-as conversando com um líder comunitário da região. Trata-se de uma figura de grande prestígio local, há anos ocupando este lugar de destaque. Cheguei silenciosamente e cumprimentei-os. Anete fez um muxoxo e não me deu muita atenção. O senhor logo perguntou quem sou. Anete explicou-lhe. a antropóloga... lembra? A gente tinha falado pro senhor. Alice rapidamente passou o braço em minha cintura e continuou a explicação: é nossa colega, antropóloga, que tá nos acompanhando para fazer pesquisa dela sobre mulher e políticas. Ela é assim, fez o curso de promotoras com a gente, ia em tudo que é aula, recebeu diploma e tudo, só que é meia promotora, por que ela não é liderança como nós, não trabalha na comunidade. Daí ela anda com nóis pra cima e pra baixo, só que as vezes ela não tem o fôlego da gente! (19/05/99)

Ou seja, elas enfatizavam que mesmo eu sendo pesquisadora, vinda da faculdade - de meios altamente letrados - em determinadas situações de nada me adiantava tanto estudo, como costumavam enfatizar. Eram elas as mulheres que detinham o saber mais importante ali: a experiência, a prática vivenciada dentro da "comunidade". E o mais fundamental, elas se utilizavam deste jogo de trocas que parece ter-se estabelecido, no qual elas me davam a "permissão" de estar junto a elas, acompanhando suas atividades, e eu retribuiria com o tal livro. Ou seja, nada adiantava eu estar escrevendo um livro, se elas não me tivessem aceito. Quando percebi que era esta a troca implicitamente estabelecida, tive que redobrar meus cuidados.

Encontrei-me, então, num limiar: se por um lado esta abertura de Anete, Alice e Elvira me era favorável, já que elas me levavam a todos os lugares e estavam sempre preocupadas em me ajudar, por outro lado não poderia deixar que a minha presença ficasse associada à delas, pois poderia acarretar indisposições e fechamentos da parte de possíveis adversários

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que me eram desconhecidos. Dali em diante, teria que ter muita cautela e extrema atenção, a fim de não sucumbir às disputas políticas que se apresentavam, em muitas das quais eu e o tal livro que estava a escrever eram recorrentemente utilizadas como uma arma de prestígio.

Definitivamente esta não foi uma tarefa tranqüila. Mesmo com todos os cuidados, os meus silêncios e atenções não me pouparam a conflitos com as três informantes. Anete e Alice, principalmente, são mulheres de personalidade forte, beligerantes e por vezes dominadoras. Estavam sempre a cobrar minha presença junto a elas. Quando não aparecia em alguma reunião ou quando eu lhes anunciava que estava à procura de outras PLPs, imediatamente "me lembravam" que a pesquisa era sobre elas: Não sei o que tu quer nessas reunião/ Pelo o que eu sei, e a Fulana (técnica da Themis) nos falou, tu tá pesquisando as promotora do Partenon e nessas reunião não tem nenhuma promotora do Partenon/ Pelo que eu entendi, nós é que temos o privilégio da pesquisa. Tu tem que ir onde a gente tá. Então, no meu entendimento, tu tem que ir na reunião de sistematização com nós e não na reunião da associação!

Infindáveis explicações se seguiam. Falava-lhes sobre a importância de ter vários contatos para a riqueza da pesquisa e de conhecer diferentes experiências. Sempre salientava o detalhe de que se tratava de uma pesquisa com as PLPs do Partenon, porque era a turma cuja formação eu havia acompanhado. Mas isto não me impedia de ter contato com outras PLPs. Esta negociação era recorrente e, aos poucos, no convívio com elas, fui aprendendo a lidar com os seus temperamentos explosivos.

Um outro elemento relacionado com a idéia da escrita do livro sobre elas que se tomou um desconforto imenso para mim e que se agudiza agora, na escrita da dissertação, é o uso dos seus nomes. Quando me dei conta do valor que estava sendo atribuído ao livro, rapidamente enfatizei, reiteradas vezes ao longo da pesquisa, as questões éticas que norteiam a natureza da etnografia. Explicava-lhes que por estas razões, éramos obrigados a proteger a identidade dos nossos informantes, o que se traduz neste contexto na troca dos nomes verdadeiros das pessoas envolvidas na pesquisa.

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