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CAPÍTULO V- A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA COMO POSSIBILIDADE DE MUDANÇA DE STATUS SOCIAL

4. O Trabalho Voluntário

4.1. Locomoção e Alimentação: As Limitações Práticas

Os problemas relativos à alimentação e à locomoção diária das PLPs em atuação são tão presentes nas suas rotinas que aparecem recorrentemente no seus diálogos e, significativamente, tematizam grande parte dos registros no livro-ata do SIM. O fragmento abaixo, que retirei de uma das atas, sintetiza estas limitações. Uma das PLPs/Partenon atuantes, após listar todas as inúmeras atividades das quais elas participam - supostamente representando as PLPs -, registra:

para podet*os ir neste# totais C-itaà>s presCisamos de vale transporte, porçwe para Íazer os plantões

estamos indo apé e na volta pedindo carona Peta roa o« nos ônibtts estamos já Com os pés cKeios de cates de tanto andar apé e no Partenon estamos sendo solicitadas para participar em tado pe é -forum e reuniões Para -fazermos um bom trabalho presCisamos de ama ajuda de casto, vales transporte lanCHe por<|»e sem sastentaçào nâo é possivei andar e nem trabaiKar às poi/ticas sociais voltadas para muiKer. (0 6 /0 5 /9 9 )

Esta passagem é significativa, posto que encerra os dois limites fundamentais que o exercício voluntário da atividade de PLP implica: a alimentação e a locomoção. Estes dois temas, para além de serem uma forma estratégica de negociação para a obtenção de mais recursos financeiros para sua atividade, são dificuldades muito pragmáticas que estas mulheres enfrentam, as quais presenciei rotineiramente ao longo do trabalho de campo.

O tema da alimentação era uma preocupação constante entre as PLPs atuantes, aparecendo em diferentes situações. Inúmeras vezes íamos de manhã para os plantões e

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passávamos o dia inteiro sem comer. Nas primeiras vezes, como eu não estava acostumada com esta rotina de jejum que elas vivenciavam, chegava a sentir-me mal. Isto era motivo de piadas entre elas, que gostavam de alardear a minha "falta de experiência". Alice divertia-se ao contar para as mais diversas pessoas que eu ficava fraca de fome, enfatizando minha falta de costume de ficar sem comer como elas. Anete contava histórias da época em que trabalhava no Conselho Tutelar, quando numa ocasião, em que não tinha nenhum pila no bolso, chegou a desmaiar de fome. Além disto, eram constantes as brigas pela divisão igualitária das bananas que Elvira trazia do seu quintal e pelas laranjas que Anete trazia do quintal da casa da sua mãe; o controle da quantidade de biscoitos consumidos que por vezes eu levava para os plantões; o empréstimo de dinheiro de Alice para a compra de macarrão instantâneo para ser feito no local dos plantões, e a longa procura pelo carrinho de cachorro- quente de menor preço nas imediações.

A referência à alimentação é também um tema recorrente nos registros no livro-ata do SIM/Partenon. Em meio aos poucos registros dos atendimentos e das reclamações das PLPs à ONG Themis e às suas colegas, encontram-se inúmeros relatos cujo tema principal é a comida. Elementos inusitados em uma ata, tais como: Koje +eve re«r>/io to* o* méd/cw íaw+ar/í+a* aq«i f>a a»oc,açâo e comemoração de despedida de «ma médica pe +raba>Hava tom o gr«po, a e#+ava ó+íma (...) •frramw a barria da miséria"; descrições dos lanches que comeram ao longo dos plantões, reclamações da falta de dinheiro para comprar o que lanchar como por exemplo: "Koje é nxso •f0. pta^+io e nâo reCebemo# nada a+é o pla^+ào de Koje. A a tompanKejra Elvira é pe es+á trazei^do o no**o lai^-Ke e o ca-fé, iate e bolo.", são no entanto extremamente significativos.

Ao meu ver estes elementos, assim colocados, condensam diferentes elementos culturais ressignificados. Um primeiro eixo interpretativo acerca da constante referência à alimentação nos registros da ata pode ser atribuído à importância que a comida tem no universo simbólico dos grupos populares urbanos. Da Matta aponta que a "comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar- se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido com também aquele que ingere." (Da Matta, 1986:56). Neste sentido, muitos estudos junto às camadas populares urbanas salientam a problemática da alimentação como um dos eixos identitários deste grupo, traduzido na forma da dieta alimentar. A relação entre possibilidade de consumo e limitação material se presentifica, tornando-se um ponto crucial no universo simbólico destes grupos, uma preocupação que faz parte do cotidiano e marca a experiência de vida (cf. Zaluar, 1994).

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Ligado a esta importância crucial da comida está a ligação com um dos atributos do feminino neste universo simbólico. A recorrência do tema da alimentação entre as PLPs pode ser definido como um elemento que "fala" sobre uma concepção particular do feminino. Ou seja, pode-se atribuir esta constante referência como algo relacionado com os atributos que definem o papel da mulher na lógica do pacto de reciprocidade conjugal, na qual à mulher cabe os cuidados com a casa, incluindo-se a alimentação.

Um terceiro e último eixo interpretativo é quanto ao uso inusitado da ata. Este uso pode ser interpretado, dentro deste contexto, como uma forma de apropriação ressignificada do elemento material de uma lógica cultural letrada. Neste sentido atribuem ao registro escrito um alto valor, cristalizando a sua experiência vivenciada. Através desta cristalização as PLPs possuem elementos que podem ajudá-las na busca do reconhecimento que procuram. Ou seja, com isto podem ter provas escritas - "materiais" - que comprovem as dificuldades que enfrentam no seu cotidiano de PLP.

O outro grande elemento temático do cotidiano das PLPs atuantes é a locomoção. Este talvez muito mais problemático para a sua atuação. No momento em que se tem aumentado o campo de ação destas mulheres - que extrapola os limites da comunidade - instauram-se aí as dificuldades de transitar literalmente entre os espaços concretos do campo político. Desde o início da pesquisa presenciei discussões entre elas sobre as maneiras de conseguir utilizar o transporte urbano sem gastar dinheiro. Para fins dos plantões no SIM, as PLPs atuantes ganham da ONG Themis uma cota de vales-transporte. Estes vales-transporte devem ser utilizados para o deslocamento até o local dos plantões e para acompanharem as mulheres atendidas nas delegacias - quando tiverem de registrar queixas -, no IML - para exames nos casos de violência física-, entre outras coisas. Mas além disto, há ainda as inúmeras reuniões que estas mulheres participam nos mais diferentes locais da cidade, nas quais elas vão supostamente representando as PLPs. Desta forma, a cota fornecida pela Themis não é suficiente e, por isto, a locomoção toma-se um problema.

Presenciei incontáveis situações em que isto se configurou um problema de ordem muito prática. Num determinado dia, em que tínhamos de nos deslocar da casa de Alice até a reunião do OP, elas estavam com poucos vales-transporte e sem dinheiro e, portanto, tinham de arranjar alguma forma de economizar. Alice dá a idéia para Anete, de ambas passarem juntas na roleta do ônibus. Anete protesta, argumentado que tem vergonha, já que o cobrador

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poderia reclamar, lembrando ainda de que elas poderiam entalar na roleta. Alice convence Anete a passar com ela e, sob os protestos do cobrador, entalaram juntas na roleta.

Além desta estratégia para economizar os vales-transporte, as PLPs utilizam a estratégia de pedir carona. Num dos plantões, estranhando a falta de Elvira quando cheguei, perguntei a Anete e Alice onde ela estava. Alice respondeu-me que Elvira não tinha vindo porque não tinha passe de ônibus. Anete, intrometendo-se na conversa, argumentou que isto não era justificativa, pois elas duas, mesmo não tendo passe de ônibus, tinham ido trabalhar. Ela segue contando que haviam conseguido carona até a avenida principal da região com um caminhão que estava passando perto das suas casas. Entre sorrisos, Anete contabilizou a economia de um passagem de ônibus, já que ao invés de ter pego dois ônibus como de costume, pegou apenas um.

Esta estratégia da carona é também estendida aos próprios ônibus de transporte urbano. O diferencial é que neste contexto, o pedir carona significa ter o pagamento da passagem liberado pelo fiscal da empresa. Para isto elas precisam passar a lábia no fiscal a fim de conseguirem o seu intuito. O curioso nestas negociações é que sempre contavam com a minha presença. Ou seja, ao invés de pedirem a liberação do pagamento de apenas três passagens, elas pediam de quatro, o que invariavelmente deixava-me constrangida. Algumas vezes ignorei o pedido e paguei a minha própria passagem, fato que gerou conflito entre nós, resultando na acusação de que eu não tinha boca pra nada. Em outras palavras, com isto elas estavam dizendo que eu não sabia lutar pelos "meus direitos" por ser muito "envergonhada".

Contudo, estas são soluções paliativas que as PLPs atuantes encontram para driblarem as dificuldades de locomoção que têm na sua circulação diária pelos mais diferentes locais da cidade pelos quais transitam. A grande solução por elas discutida inúmeras vezes seria a obtenção do passe livre. O que significa terem livre acesso ao transporte coletivo urbano a qualquer momento. Para tanto, elas precisam ser reconhecidas ou como uma categoria profissional que utiliza muito o transporte urbano para fins do seu trabalho, ou como pessoas que não têm condições de pagar sua passagem. No sistema de transporte urbano de Porto Alegre alguns usuários possuem passagem livre, tais como trabalhadores ligados à Justiça, à Brigada Militar, idosos, além de outras pessoas cadastradas em instituições de assistência social da cidade77. Aqui a luta pelo reconhecimento do trabalho da PLP se intersecta com a

77 Durante os meses de junho e julho de 1999, os ônibus do transporte urbano de Porto Alegre circularam com

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