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Em 1998, a pedido da entidade, organizei um número dos Cadernos Themis Direitos Humanos e Acesso à Justiça, sobre a experiência do curso de formação de Promotoras Legais Populares Para tanto, empreendi uma

CAPÍTULO II DO CURSO DE PLPs À FORMAÇÃO DO SIM

35 Em 1998, a pedido da entidade, organizei um número dos Cadernos Themis Direitos Humanos e Acesso à Justiça, sobre a experiência do curso de formação de Promotoras Legais Populares Para tanto, empreendi uma

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o cunho ideológico feminista de base está presente em todos eles, bem como a marca definidora do tipo de militância a que se propõe a entidade.

O meu objetivo aqui é, portanto, analisar os conteúdos trabalhados no curso do Partenon e ressaltar o enfoque ideológico feminista que trazem, pautado pelo viés da luta pelos Direitos Humanos das Mulheres. Com isto procuro demonstrar o tipo de formação feminista que as PLPs receberam, e as tensões que surgem entre este tipo de ideologia, pautada por um ideário individualista moderno (cf. Franchetto et al, 1981), e a lógica norteadora da visão de mundo das mulheres que participavam do curso, por seu lado marcadas por valores que se situam mais próximos de um ideário holista, daquilo que Duarte (1988) define como "ethos relacionai". Estas particularidades dar-nos-ão uma base para a compreensão das peculiaridades que pautam a atuação das PLPs pesquisadas e, assim, auxiliarão a explicitar a lógica norteadora de suas concepções de participação política. Para introduzir esta discussão, resgato uma situação que presenciei numa das primeiras aulas do curso, na qual já aparece uma certa tensão entre as diferentes visões de mundo dos dois grupos em contato:

Os temas referentes aos Direitos Humanos e aos Direitos Humanos das Mulheres foram os primeiros temas a serem tratados nas aulas do curso de PLPs/Partenon. Nesta aula, a professora da equipe da Themis propôs um exercício junto às alunas, a fim de que elas construíssem a noção de Direitos Humanos e, partindo desta, chegassem aos Direitos Humanos das Mulheres. Após discutirem as definições construídas pelas alunas, a professora feminista passou a enfatizar a especificidade dos direitos femininos, que seriam direitos atinentes somente às mulheres, como por exemplo os referentes à maternidade, contrastando-os com a generalidade dos Direitos das Pessoas.

Para demonstrar a importância dos Direitos Humanos das Mulheres, a professora evocou relatos de mulheres africanas e do leste europeu, da Bósnia por exemplo, as quais vivem situações de guerra em seus países. Trata-se de relatos que a professora tinha ouvido na Conferência de Pequim, China, da qual participou.

já feitos, comparando e analisando os diferentes materiais. Além disto, entrevistei as fundadoras e técnicas da entidade a fim de compor a publicação tendo em vista abarcar a evolução da metodologia aplicada pela entidade nos diferentes cursos, bem como mostrar a maneira como ela está condicionada pelo aprendizado da entidade

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Visivelmente emocionada ao mencionar os casos, ela colocava em perspectiva o que são os Direitos Humanos e o papel da ONU naquelas situações. A turma parecia meio dispersa frente aos relatos; ouvia-se um rumor de conversas na sala. A professora, aumentando o seu tom de voz, insistia nos relatos a fim de sensibilizar a turma para a especificidade da situação da mulher naqueles contextos, que ao seu ver revelavam uma suposta desigualdade de gênero, enfatizando: as mulheres são os seres humanos que mais sofrem numa situação de guerra e também na paz, mas são as que seguram a barra, as que mais resistem, formando redes de solidariedade. Associou a isto a razão de ser do curso de PLPs: o curso já é uma forma de resistência ao formar uma rede de mulheres! Só dessa forma as coisas se modificam. São as redes femininas de ajuda que irão realmente mudar!

Ao meio da fala da professora, a maioria da turma já estava dispersa, novamente conversando entre si. As poucas que prestavam atenção ao seu discurso, passaram a perguntar como era a China. Logo em seguida foi feito um intervalo durante o qual as mulheres se espalharam pela sala em pequenos grupos, fumando, tomando cafezinho e comendo os biscoitos levados pela equipe da ONG. Neste meio- tempo, conversei com a professora, que num misto de decepção e indignação comentou comigo: estas mulheres são muitos frias! Nunca tinha visto um grupo tão frio assim. Quando eu falei nas mulheres da Bósnia, tive me segurar pra não chorar e elas nem se importaram! Para a "consolar" disse-lhe que possivelmente o que a emocionaria, poderia não ser o mesmo que emocionaria as mulheres. Mencionei-lhe questões caras à antropologia tais como a alteridade, o colocar-se no lugar do outro, as diferenças de códigos e valores culturais. Ela, ainda meio desanimada, acabou por concordar. (08/05/96)

Já nesta primeira situação podemos notar a presença de alguns elementos norteadores da ideologia feminista da ONG Themis, aos quais parecem entrar em dissonância com a lógica cultural das mulheres do curso. As fundadoras da ONG Themis, "feministas históricas"36 (cf, Grossi, 1998a), possuem uma trajetória na militância feminista que passa

com sua experiência empírica, junto às diferentes realidades das mulheres da periferia de Porto Alegre. Para maiores detalhes, ver Bonetti (1998).

36 Grossi define as "feministas históricas" como "aquelas que participaram das mobilizações do período conhecido como a 'primeira década da mulher', entre 1975 e 1985, engajadas no movimento feminista 'autônomo'

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fundamentalmente pela militância de esquerda e pela prática de conscientização das mulheres de periferia, como já havia mencionado. A própria construção da especificidade dos direitos femininos, a partir dos direitos humanos das mulheres, aponta para a iniciativa de despertar nas participantes do curso de PLPs a conscientização de uma identidade comum a todas as mulheres.

Os exemplos utilizados pela professora, oriundos da sua participação na Conferência Mundial de Mulheres em Pequim, a sua emoção ao se lembrar deles e o seu discurso acerca das redes de solidariedade feminina, bem como o fato de centrar aí os objetivos do curso de PLPs, tudo isto evidencia a especificidade de um ideal de relacionamento entre mulheres, o qual Fox-Genovese (1992) denomina de "irmandade de mulheres (sisterhood)". Este ideal baseia-se numa "crença em diferentes concepções de justiça, política e moralidade, a partir de uma essência feminina que valoriza a vida, as relações pessoais, a moral, a reciprocidade e a comunidade" (Fox-Genovese, 1992:32). Este suposto relacionamento entre mulheres, que é baseado fundamentalmente na solidariedade, no afeto, na ajuda-mútua e no companheirismo, revela uma crença feminista na peculiaridade de uma prática política no feminino, a qual também se fundamenta nestes critérios, como bem identificou Pontes (1986) ao analisar a prática feminista no SOS-Mulher de São Paulo na década de 8037.

O espanto da professora diante da maneira “fria” como as participantes do curso reagiram aos seus depoimentos sobre as dificuldades das mulheres em situação de guerra vem a corroborar a sua crença num ideal de solidariedade tipicamente feminina. Aqui, a categoria frieza parece estar em flagrante confronto com a afetividade, a quase intrínseca emotividade feminina. Creio que a espontaneidade da reação da professora se deve muito a uma surpresa face a algo absolutamente inesperado, uma atitude que não fazia parte das suas expectativas,

há mais de 15 anos e que estão hoje na meia-idade. Estas mulheres, que no período da sua adesão ao feminismo, no final dos anos 70, miütavam nas suas horas vagas em diferentes grupos feministas sem receber nenhuma remuneração, se tomaram progressivamente assalariadas da causa das mulheres. Este assalariamento deu-se de diferentes formas: tanto pela profissionalização de alguns antigos grupos autônomos que se transformaram em reconhecidas Organizações Não-Govemamentais, quanto pela criação de espaços feministas em diferentes instituições, como no serviço público e na universidade." (Grossi, 1998a:5). Muito embora as fundadoras da ONG Themis não sejam propriamente mulheres de "meia idade", elas enquadram-se nesta definição, por estarem no movimento durante a primeira década da mulher, e também por se terem profissionalizado, estando atualmente vinculadas a uma instituição.

37 Pontes empreendeu uma etnografia junto ao SOS-Mulher de São Paulo na década de 80, um grupo feminista

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