• Nenhum resultado encontrado

25 Para uma discussão interessada sobre os impasses e dilemas éticos aos quais os antropólogos são recorrentemente expostos e sobre a cada vez maior atualidade deste debate, ver Santos (1998), Laraia (1998) e

3.5 Lugares e diferentes personagens da etnografia

Além de Alice, Elvira e Anete, consegui contatar outras PLPs. Encontrei Cibele, Carla, Eneida, Odete, Edna, Eleonor, Mirtes e Anelise, mulheres que se formaram na turma do Partenon, algumas das quais estiveram, num momento ou outro, atuando no SIM. Contudo,

Entre Feministas eMulheristas 33

no momento em que eu estava em campo, por diferentes motivos elas estavam afastadas. Consegui visitar Cibele e Carla em suas casas, e conversar sobre o curso, o SIM e as suas vidas. As outras, encontrava eventualmente, seja em reuniões do OP, em festas ou eventos em que estive durante a pesquisa. Não consegui manter um contato mais sistemático com elas, já que muitas trabalhavam e não estavam muito ligadas à atuação como PLP.

Em uma reunião na ONG, onde estavam presentes as representantes de outras regiões, conheci outras PLPs. Falei sobre a minha pesquisa e elas prontamente se colocaram à disposição, caso fosse necessário. Fui convidada a participar de reuniões da Associação de Promotoras Legais Populares de Porto Alegre então em formação. Das quatro reuniões de que participei, apenas em uma estiveram presentes Alice e Anete. Elvira não compareceu a nenhuma. Além destas, não havia mais nenhuma PLP/Partenon. As reuniões tinham quórum baixo, comparecendo em média seis PLPs das micro-regiões Restinga, Leste e Grande Cruzeiro. Apesar de não se constituírem como o foco principal da etnografia, o acompanhamento destas reuniões foram importantes para que eu me munisse de mais elementos comparativos na análise da experiência de Anete, Alice e Elvira, estas sim, o foco central da pesquisa.

Assim, acompanhei sistematicamente Alice, Elvira e Anete, que tomaram para si a tarefa de levar adiante o SIM, colocando-o em funcionamento sob outra forma. Na sua forma original, o SIM funcionava um único dia da semana, num único local, de preferência no centro da micro-região onde foi feito o curso de PLPs. Tendo em vista a dificuldade em se encontrar um lugar central, consensual entre todas as PLPs do Partenon, o SIM passou a funcionar três vezes por semana, em três diferentes locais da região. O que de nada adiantou, pois as outras PLPs não voltaram a atuar no serviço, pelo menos no tempo em que durou esta pesquisa. Havia algo a mais nesta desmobilização, mas eu ainda não conseguia entender muito bem o que era. Ouvia coisas aqui e ali, acusações à falta de interesse de algumas colegas. Fui juntando informações para poder compreender o que se passava. Levantei ao longo da pesquisa a hipótese de que se tratava de um modelo de segmentação do grupo que já existia desde o primeiro dia de curso, e que continuou a pautar as relações das PLPs no SIM26. Voltarei a este assunto mais detalhadamente no capítulo II desta dissertação.

26Utilizo o conceito de segmentação tal qual proposto por Evans-Pritchard (1993), inspirada pelo uso que dele faz Pontes (1986) ao comparar ao caso Nuer de Evans-Pritchard a constituição de pequenos grupos e a relação de disputa entre eles em sua etnografia sobre o SOS-Mulher de São Paulo. Evans-Pritchard foija o conceito de

Entre Feministas eMulheristas 34

Os primeiros plantões foram momentos em que eu, Alice, Anete e Elvira organizávamos os materiais de divulgação do SIM: cartazes e panfletos a serem distribuídos pela região. Elas estavam sempre a atribuir-me tarefas, dividindo o trabalho a ser feito comigo. Preparado o material, passamos a fazer a divulgação. Visitamos escolas, delegacias de polícia, quartéis da Brigada Militar, Corpo de Bombeiros, Postos de Saúde, Empresas de Transporte Urbano, Câmara de Vereadores, Assembléia Legislativa e Associações de Moradores. Nesses momentos pude observar como essas mulheres agiam e interagiam em diferentes contextos. Fui, assim, constituindo um corpus de dados sobre elas: as suas atividades políticas e as suas concepções sobre o feminino e o político.

Acompanhei ao longo da pesquisa dez plantões do SIM: um em abril, cinco em maio, três em junho e um em julho. Creio que devido às constantes mudanças na organização e localidade do SIM/Partenon, agora funcionando em três diferentes lugares, e talvez à propaganda não muito eficaz, não havia muita procura aos serviços oferecidos pelas PLPs. Durante o tempo da pesquisa, tive oportunidade de assistir a apenas dois atendimentos feitos nos plantões. Tratava-se de casos de encaminhamentos de documentação (registro de nascimento), de reconhecimento de paternidade e pensão alimentícia. Assim, os espaços dos plantões serviam basicamente como um momento em que conversávamos sobre as mais variadas coisas: comentávamos as reuniões do dia anterior, elas contavam-me coisas sobre suas vidas, colocavam-me a par das fofocas e disputas entre as lideranças comunitárias locais, discutiam os problemas do Orçamento Participativo e do SIM.

Em meio a estes plantões, presenciei uma grande disputa entre dois diferentes grupos de lideranças comunitárias numa das vilas em que elas faziam plantão27. Nesta ocasião, as três PLPs foram envolvidas e chamadas a tomar uma posição, sem nem ao menos serem moradoras do local. Parecem ter assumido um papel de "autoridade" com legitimidade e reconhecimento para opinarem. A disputa travou-se em tomo do centro comunitário local e

segmentação a partir de suas análises do sistema político do povo nilota Nuer, a fim de explicar as disputas e fragmentações constituintes de um grupo político.

27 Neste dia de plantão, quando cheguei Elvira lia uma reportagem recortada de uma edição daquela semana d'0 Correio do Povo (um dos jornais gaúchos). Pergunto-lhe sobre o que lê e ela passa-me a reportagem. A matéria fala sobre uma invasão àquele espaço do centro comunitário onde elas faziam plantão. A invasão, segundo a reportagem, devia-se ao descontentamento de um grupo de moradores locais com a atuação de "Seu Fulano" e "Seu Sicrano" na gerência do centro comunitário. Em conseqüência disto, fala-se na possibilidade de afastamento destas duas figuras do centro comunitário. Pergunto o que significa aquilo e Elvira passa a relatar com detalhes o ocorrido. "Seu Sicrano" entra na sala e num tom de levante brada para nós: Sábado, vai ter um

reunião aqui. As 13 e 30. E nós não temo pedindo, temo convocando vocês. Por que nós queremo apoio, por que essa turma de agitador vem aí e nós temo que juntá a nossa turma! Passam então a discutir sobre o ocorrido.

Entre Feministas e Mulheristas 35

acabou envolvendo - além dos líderes locais- alguns vereadores do PSB, PDT e PT, os médicos do posto de saúde, o delegado de polícia, o major da Brigada e a Secretaria Estadual de Saúde. Não acompanhei o desfecho do conflito, fiquei apenas com as versões do trio. Tratava-se, na realidade, de uma disputa local entre diferentes grupos políticos concorrentes que queriam dominar o centro comunitário. Este fato isolado parece-me interessante por ilustrar uma situação em que as três PLPs parecem ocupar um lugar de prestígio por terem sido chamadas a opinar e intermediar na tal querela. Ele sugere o lugar simbólico de destaque destas mulheres, pelo menos naquele momento.

Com o passar do tempo, e com o estabelecimento de uma relação de confiança entre as informantes e eu, tive acesso ao livro-ata do SIM, cujos registros remontam à sua fundação, em 1997. Anete aconselhou-me a fotocopiá-lo, para que eu ficasse por dentro de toda a história do serviço. Assim o fiz. Trata-se de um material riquíssimo, seja pelos dados que traz - situando o período em que acompanhei o SIM dentro de uma lógica cíclica marcada por fortes tensões entre o grupo, o que retomarei mais adiante - seja pelo significado atribuído a este livro, o que se pode notar pela natureza dos registros feitos, mais uma vez levando a pensar no contato entre diferentes universos simbólicos e no movimento de apropriação e ressignificação e valores daí advindos. Ou seja, elas apropriavam-se daquele livro-ata, entendendo-o como um documento de alto valor, que informa sobre o seu trabalho.

Contudo, os registros, antes de informarem prioritariamente sobre os atendimentos feitos e as ações empreendidas por elas nos casos, como seria de supor, trazem descrições detalhadas sobre o lanche que comeram no dia, os problemas enfrentados por elas na falta de recursos para o transporte diário para as suas diversas atividades, sobre os problemas domésticos que tinham, entre outras peculiaridades. Registravam, assim, o que dentro de seu universo de valores lhes parecia mais fundamental. É uma versão "nativa" de um diário de campo. Ao meu ver, este elemento é extremamente significativo, posto que corrobora a importância de que se reveste a escrita para este grupo de mulheres, tomando mais plausível a minha hipótese acerca da circularidade de valores culturais e a sua apropriação e ressignificação pelas PLPs atuantes.

Outline

Documentos relacionados