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MÉTODOS PARA UMA ANÁLISE DA DIFUSÃO DA CULTURA ESCRITA NO BRASIL

No documento Paleografia e suas interfaces (páginas 47-50)

Galvão (2010, p. 242) considera que um dos principais motivos para a ausência de estudos sobre o alfabetismo nos primeiros séculos de história do Brasil é que, para a maior parte do país, não existem acervos organizados que permitam reconstruir séries de registros paroquiais, por exemplo, que seriam fundamentais para se realizar uma história demográfica e quantitativa. Porém, se os registros paroquiais não foram, pelo menos até agora, localizados, há uma série de fontes depositadas em arquivos portugueses, como é o caso da documentação do Tribunal da Inquisição, que se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa.

Com o objetivo de trazer contribuições a esse campo de estudos ainda tão lacunar, pesquisadores do Programa Hisculte – História da Cultura Escrita no Brasil, recentemente criado, têm atuado em alguns campos ligados à história da cultura escrita no Brasil. Vinculados ao Campo 1 – “Medição de níveis de alfabetismo na história do Brasil”, foram publicados, em 2012 e 2013, dois estudos de Lobo e Oliveira, que se debruçaram sobre um estudo do alfabetismo na Bahia do século XVI, tendo como fonte os livros da primeira Visitação da Inquisição ao Brasil. Em Gandra (2016), encontra-se um estudo sobre o alfabetismo nas Capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, também no século XVI; e em Lobo, Sartori e Soares (2016), é abordado o alfabetismo na Bahia no século XVII – todos estudos que tomam como fonte os livros das visitas da Inquisição no Brasil.

MÉTODOS PARA UMA ANÁLISE DA DIFUSÃO DA CULTURA ESCRITA NO BRASIL

O estudo do alfabetismo no período pré-censitário, para se constituir como dado sociológico e demográfico, capaz de ser mensurável, precisa apresentar-se como resultado da soma de múltiplos alfabetismos individuais. A afirmativa é de Langeli, que considera que o

objeto do historiador do alfabetismo deve se constituir em “séries homogêneas e continuadas de indicadores das habilidades individuais” (LANGELI, 1996, p. 93, tradução nossa).

Associado geralmente às séries de dados indicadores das habilidades de escrita, o método quantitativo de análise tem como objetivo atribuir percentuais e valores numéricos aos dados encontrados, contrastando, na história do alfabetismo, indivíduos capazes e incapazes de escrever ou simplesmente assinar. Dentro dos estudos do alfabetismo que se utilizam do método quantitativo para avaliar a difusão social da escrita – “quais e quantos são os que escrevem” (LANGELI, 1996, p.90, tradução nossa) –, as séries de assinaturas consolidaram-se como dados largamente utilizados, por serem essas quase que exclusivamente capazes de fornecer, ao longo de séculos, grandes quantidades de dados, socialmente diversificados, para grande parte do mundo ocidental.10

Com relação aos limites dos estudos quantitativos do alfabetismo, é necessário pontuar que as fontes com séries de assinaturas possuem um limite cronológico, uma vez que as assinaturas autógrafas passaram a ser usadas apenas na Época Moderna. Quanto aos estudos do alfabetismo em períodos anteriores aos das séries de assinaturas, Langeli avalia que para as épocas pré-estatísticas o alfabetismo não é de nenhum modo um objeto incognoscível: “Não é mensurável em termos absolutos, mas se pode valorar seu sentido e sua qualidade mediante instrumentos interpretativos necessariamente distintos dos estatísticos, mas não por isso mais pobres ou superficiais” (LANGELI, 1996, p. 97, tradução nossa).

A respeito do período anterior à Época Moderna, quando não se encontram dados como as assinaturas, capazes de fornecer uma amostra “universal” ou representativa de forma global da sociedade, Langeli comenta que justamente para esse período se encontra uma boa quantidade de textos autógrafos com uma maior extensão e articulação, que seriam fontes ideais para uma análise qualitativa, permitindo “que os escreventes possam se denominar autores de um texto e não executores de uma mera sequência de signos” (LANGELI, 1996, p. 99, tradução nossa). O autor ressalta que a visão bipartida do alfabetismo, fruto da análise com base em dados numéricos, não basta para se compreender o fenômeno, e que os limites entre analfabetismo e alfabetismo não são tão rígidos a ponto de se permitirem divisões muito inflexíveis. Uma análise qualitativa do alfabetismo não exclui o estudo das assinaturas, mas é preciso, segundo Langeli (1996), tratar da melhor forma possível os testemunhos gráficos produzidos, tendo-se em vista o caráter de inscrições estandardizadas e simplificadas que têm as assinaturas.

Em uma linha de análise qualitativa, que se complementa a uma quantificação dos dados abordados, destaca-se um estudo de Petrucci (1978), que se debruça sobre um livreto de contas da dona de uma venda no bairro de Trastevere, em Roma, chamada Maddalena, que era analfabeta. O livreto possui uma lista de registros produzidos de 1523 a 1537, nos quais constam pagamentos realizados por Maddalena ou seu sobrinho Pietro para saldar os débitos deixados pelo seu falecido marido; débitos contraídos e saldados por Maddalena ou Pietro para comprar itens para a venda; empréstimos, etc. Os registros eram escritos no livreto pelos credores e devedores de Maddalena, ou por seus dependentes ou representantes; há ainda alguns escritos por Pietro.

As 102 mãos que deixaram seu registro no livro foram agrupadas por Petrucci em dois tipos de escrita: a cancelleresca itálica, ou italiana de chancelaria, “a escrita dos cultos e dos

10Ainda que seja largamente empregado, o recurso da medição da difusão social da escrita através da quantificação das assinaturas é usado com ressalvas, uma vez que a habilidade de assinar o nome não mede necessariamente a capacidade de ler e/ou de escrever de um indivíduo. A questão já foi amplamente abordada por estudiosos da cultura escrita; se os estudos ainda fazem uso das séries de assinaturas, não é por uma abordagem ingênua do problema, mas porque as assinaturas, ainda que não sejam dados ideais, são os dados possíveis de serem estudados; se não são tão fiéis ao nível de letramento que possui cada indivíduo, mostram-se mais representativas quando se trata de dados globais sobre a difusão do alfabetismo em uma sociedade.

ofícios públicos, daqueles que sabem o latim e dos eclesiásticos”, e a mercantesca, ou mercantil, “escrita dos negócios e dos mercados, mas também das vendas e das tabernas, em suma das camadas mais baixas da sociedade alfabetizada” (PETRUCCI, 1978, p. 167, tradução nossa). Foram identificados 62 casos de escrita no tipo da mercantil (61%) e 39 da italiana de chancelaria (38%). Houve ainda uma única ocorrência de um registro em um sistema de escrita que não era italiano, a escrita ‘bastarda’, utilizada provavelmente por um escrevente não italiano.

Petrucci observou, entre os escreventes na Roma quinhentista, a oposição de dois sistemas de escrita, o da italiana de chancelaria e o da mercantil, e a influência recíproca entre eles; uma escrita em latim, em italiana de chancelaria, apresenta-se, apenas entre os eclesiásticos; entre estes e também os homens das letras, predomina o uso da escrita itálica. Encontraram-se, não raro, artesãos, empregados dos palácios apostólicos e ainda funcionários de empresas comerciais e lojistas executarem assinaturas ou escrituras autógrafas, ainda que revelando níveis bastante variados de execução gráfica.

Entre seus escreventes, Petrucci distingue, em cada um dos sistemas de escrita, gradações da capacidade de execução gráfica, divididas em três níveis de escrita: ‘pura’, ‘usual’ e ‘elementar de base’. Esses níveis são associados a características da escrita, como: maior ou menor aderência ao sistema de escrita utilizado; letras escritas em módulo maior ou menor; bom ou mau uso do sistema abreviativo, dos símbolos monetários e de contas; abundância ou escassez de ligamentos entre as letras; traçado seguro ou hesitante etc.

Petrucci (1978) também relaciona o tipo de escrita e o nível de execução gráfica a um perfil social dos escreventes, os quais foram reunidos pelo autor em oito grupos, de acordo com sua profissão ou posição social. Observa-se, por exemplo, que o grupo de mais alto nível gráfico e ortográfico era composto por dois religiosos e o único notário presente. Os religiosos escreveram em uma elegante itálica pura e o notário em uma estilizada itálica usual; os três parecem conhecer e utilizar frequentemente o latim como língua escrita. Já os dois grupos que apresentaram um nível mais baixo de execução gráfica foram: um grupo de doze fornecedores e transportadores de mercadorias, onze deles utilizando a mercantil, oito em elementar de base, três em usual – todos escreveram textos breves e incorretos, do ponto de vista ortográfico e sintático; nenhum demonstrou conhecer o latim; apenas seis demonstraram conhecer símbolos técnicos para as moedas; e um grupo formado por quatro queijeiros – todos escreventes em elementar de base mercantil, demonstrando grande dificuldade no uso da escrita.

Diante dos resultados apresentados, que revelam uma difusão da escrita, em diferentes níveis de execução e sistemas de escrita, em diversificados estratos sociais, e dando por certa a inexistência de uma organização escolar elementar homogênea e generalizada na Roma da primeira metade do século XVI, Petrucci considera ser “evidente que o ensino da escrita ocorria, fora de qualquer legislação comum, em modos e formas diversas segundo as circunstâncias, dos níveis culturais e sociais dos indivíduos, das exigências econômicas de grupo ou ambiente” (PETRUCCI, 1978, p. 190-1, tradução nossa). Para as classes média e baixa da sociedade, considera que haveria o acesso a escolas urbanas comuns, com professores elementares privados de qualquer sanção oficial ou função pública. Sobre tais escolas, Petrucci afirma que se sabe muito pouco, além de estarem localizadas em Roma, serem muito escassas e mal organizadas. O autor pressupõe ainda outro tipo de ensino elementar centrado nas duas unidades fundamentais da sociedade urbana da época: o comércio e a família, sabendo-se que, nesses ambientes, o membro mais velho ou mais capaz poderia dar aos outros, sobretudo aos meninos, lições de leitura, de escrita e de contas, ambiente em que se poderia verificar o aprendizado em qualquer tipo de escrita e a qualquer nível, mas seria certamente “no ambiente doméstico ou da pequena loja artesã que se realizava o ensino daquela elementar de base de tipo mercantil que se vê na escrita dos mais humildes semialfabetizados da época” (PETRUCCI, 1978, p. 192, tradução nossa).

UMA ANÁLISE DA MORFOLOGIA DAS ASSINATURAS DEIXADAS NOS LIVROS

No documento Paleografia e suas interfaces (páginas 47-50)

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