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A PESQUISA PALEOGRÁFICA COMO OBJETO DE REFLEXÃO DA HISTÓRIA DOS SUJEITOS

No documento Paleografia e suas interfaces (páginas 126-129)

A história mostra que a escrita vai passando por metamorfoses, no tempo e no espaço, a fim de “responder as necessidades precisas de ordem material ou espiritual” e assim os papeis da escrita vão mudando, de acordo com as necessidades sociais. “É a razão pela qual em cada momento da história, no seio de cada cultura, a função específica do texto determina em grande parte sua resolução visual e escritural” (MANDEL, 2006, p. 65). Nesse contexto, a escrita, registrada em suportes variados, ocupa diversas funções que a vinculam aos seus produtores e leitores e as funções sociais e políticas por eles assumidas.

Partindo da materialidade da escrita e refletindo sobre os meios de produção, circulação e recepção dos textos (CHARTIER, 2002; 2007), não poderíamos deixar de tratar da contribuição dos estudos desenvolvidos pela ciência que trata da reconstrução da história da humanidade, por meio do desenvolvimento da escrita: a Paleografia.

A palavra Paleografia apresenta diversas acepções que enfatizam desde a sua etimologia do grego palaios “antigo” e graphien, “escrita”, até as definições apresentadas por diversos autores, em vários manuais, a exemplo de Prou (1910), Millares Carlo (1943), Battelli (1949) e Spina (1994), como arte, ciência ou técnica que trata da leitura, datação e decifração dos caracteres extrínsecos dos documentos escritos, em qualquer língua e época, em materiais como o papiro, o pergaminho, tecido ou papel, analisando as letras com que são escritos, com o fim de viabilizar a leitura e interpretação do texto. Acrescenta-se que a Paleografia estuda o desenvolvimento da escrita, além de outros problemas que envolvem o texto, entre os quais o problema das abreviaturas e das mudanças impressas pela transmissão textual.

Para Berwanger e Leal (1995, p. 12), a Paleografia “abrange a história da escrita, a evolução das letras, bem como os instrumentos para escrever”, tendo “por objeto o estudo das características extrínsecas dos documentos e livros manuscritos”. Nessa perspectiva, a Paleografia não só envolve a história do desenvolvimento da escrita, mas também o suporte da escrita ou a matéria, na qual se inscreve, enfim o conhecimento dos materiais e de todos os instrumentos para escrever como, entre outros, o estilete, o cálamo, a pena, e a tinta.

Para Acioli (1991, p. 6-7), as origens dos estudos paleográficos datam da Idade Média, “quando se organizavam verdadeiras coletâneas de abreviaturas”. No entanto, atribui-se ao período da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), entre protestantes e católicos, o aparecimento dos estudos paleográficos, na Alemanha, diante da necessidade dos juízes de atestarem, nos tribunais, a veracidade ou não de documentos, surgindo, portanto, a Paleografia “como veículo da perícia forense”, sendo inicialmente auxiliar da Justiça e não da História.

Mas, é com o monge beneditino francês Jean Mabillon (1632-1707), em fins do século XVII, que são fundadas as bases científicas da Paleografia, “como campo de conhecimento sistematizado” (CAMBRAIA, 2005, p. 23), com o seu trabalho De Rerum Diplomatica Libri

Sex (1681), sobre a classificação das escritas medievais. Posteriormente, em meados do século

XVIII, o trabalho de Mabillon foi revisto e complementado por outros monges beneditinos, no entanto, devido a sua relevância, a Paleografia “foi introduzida como cátedra, primeiramente na Alemanha, nas escolas de Filosofia e Letras, sobretudo nos cursos de História, Filosofia e Direito” (ACIOLI, 1991, p. 7).

Segundo Dias e Bivar (2005, p. 15), “no Brasil, a Paleografia foi praticada em meados do século XIX, especialmente quando do surgimento dos Institutos Históricos e Geográficos que motivaram o interesse dos intelectuais pela documentação histórica”. Assim, Dias e Bivar (2005, p. 18) também consideram “manuscritos brasileiros, para fins de análise, todos aqueles relacionados à América Portuguesa, quer oriundos dela quer oriundos da sede do Império Português, mas com conteúdo referente a esta Colônia”.

Berwanger e Leal (1995) asseguram que a Paleografia estabelece relação direta com as gerações passadas, auxiliando na compreensão das antigas instituições, seus costumes, literaturas, crenças, modos de ser, subsidiando as relações internacionais, pois serve nas questões de limites, fornecendo informações para elucidar divergências judiciais. Nesse viés, a Paleografia também é ciência imprescindível na leitura e interpretação dos documentos históricos. Se o documento nos informa sobre um fato, um acontecimento, é preciso atentar para a “existência de diversas concepções de história e a diversidade de fins” que indicam metodologias variadas na leitura de documentação histórica (ANDRADE, 2010, p. 12). Essa afirmativa leva-nos, para além de uma Paleografia de leitura, nos convidando a compreender os contextos de produção e circulação dos textos.

Andrade (2010), ao tratar manuscritos históricos, afirma

Gosto de lembrar de manuscrito como sal terrae que é derramado no folio pelo escrivão através de traços há muito refletidos como se fosse pela primeira vez. O pesquisador criterioso há de entrar no texto e decifrá-lo, como se navegasse sem nenhuma cartografia, como se reescrevesse o que já foi escrito, já que vai conhecendo uma história como se fosse pela primeira vez numa reinterpretação do há muito já vivido e interpretado. [...] A memória atualiza os fatos, ao revitalizar o passado que, no texto, se mantém e preserva. E no ambiente escriturário de uma época, o escrivão é levado a configurar personagens, motivos, ações, deveres, cenário, símbolos, etc. (ANDRADE, 2010, p. 21-22)

Por outro lado, é importante salientar que a interpretação dos documentos históricos depende do conhecimento paleográfico, por vezes diplomático do pesquisador. Vale lembrar que por vezes a Diplomática se confunde com a Paleografia (DIAS; BIVAR, 2005, p. 13). Na perspectiva inicial, a abordagem diplomática era responsável pelo estudo dos diplomas, “isto é no sentido moderno, o conjunto dos documentos de arquivo que possam constituir fontes históricas, a exemplo de cartas, atos, tratados, contratos, registros judiciais e outros documentos oficiais que nos legaram”, constituindo-se a Diplomática, junto com a Paleografia e a Filologia, ciências renovadoras na leitura e interpretação de documentos históricos, por analisar e avaliar várias questões relativas às fontes escritas. (BERWANGER; LEAL, 1995, p. 17)

Berwanger e Leal (1995, p. 17-18) dão destaque à relação etimológica entre diplomática e ciência dos diplomas, visto que “a palavra Diplomática deriva do latim diploma – originalmente um escrito dobrado em dois (diplous, “duplo”)”. Para tanto,

A Diplomática estuda:

a) as fases de transmissão de elaboração e modos de transmissão dos documentos (original ou cópia);

b) a organização e o funcionamento das chancelarias (serviço especial a quem era confiada a expedição dos atos dos soberanos);

c) o estudo dos estatutos dos Notários que o redigiram;

d) os demais problemas que ajudam a julgar a legitimidade e credibilidade dos documentos.

No enfoque diplomático, o documento nos informa sobre um acontecimento, seja em papel, seja em qualquer outro suporte mole, a exemplo do pergaminho, e, portanto, os estudos diplomáticos objetivam a análise de documentos que registram acontecimentos e cenas sociais e políticas, de caráter jurídico ou não. A avaliação da veracidade do texto, por parte da Diplomática, será realizada por meio de aspectos internos como a língua do texto, de sua forma e das mudanças impressas pelo tempo. (ACIOLI, 1994)

Ademais, além da Paleografia e da Diplomática, a escrita mobiliza o encontro de outras áreas, com vistas a viabilizar novos caminhos para o estudo das práticas de leitura e escrita dos documentos, entre as quais (BERWANGER E LEAL, 1995, p. 15-16): a Papirologia, no estudo dos papiros; a Codicologia, no estudo dos códices medievais, normalmente em pergaminhos; a Epigrafia, com o estudo das inscrições em suportes duros, não brandos, como pedra, mármore, osso, madeira, metais; a Numimástica, com o estudo das moedas e medalhas; a Sigilografia, que estuda o registro escrito nos sinetes, selos e lacres; a História; e a Filologia.

Atualmente, as práticas de pesquisa paleográfica têm sido compreendidas como a ciência da escrita, resultante das atividades humanas e da nossa expressão social e cultural, estudando, nesse sentido, os seus registros gráficos em geral, a finalidade ideológica e os modos de escrever e suas inscrições em variados suportes, tipos caligráficos e materiais, nos diversos momentos da história. Nesse caminho da escrita, articulando com Petrucci (2003) e outros paleográfos italianos, a Paleografia segue em seu contexto analítico, propondo um método de abordagem global, no qual se reinvidincam estudos de variados testemunhos escritos. Nessa busca, por uma Paleografia social e política, ou melhor, por uma nova história das práticas de produção e uso da cultura escrita, é necessário atentar-se aos contextos sócio-culturais, as formas e condições de produção do texto, os usos sociais da escrita de forma mais ampla e reflexiva, visto que os textos registram variados modos de confrontos pelos diversos segmentos sociais.

Dessa forma, concebemos que

Para além de modo de mobilização da linguagem, a escrita é uma nova linguagem, muda certamente, mas, segundo a expressão de L. Febvre, “centuplicada”, que disciplina o pensamento e, ao transcrevê-lo, o organiza. [...] A escrita faz de tal modo parte de nossa civilização que poderia servir de definição dela própria. [...] Vivemos os séculos da civilização escrita. Todas as nossas sociedades baseiam-se no escrito. [...] E, sobretudo, não existe história que não se funde sobre textos. (HIGOUNET, 2003, p. 10)

Conforme Petrucci (2003), para interpretar e estabelecer a cronologia do documento, é preciso pensar quando o documento foi produzido, onde foi produzido e quais as técnicas utilizadas na execução dos tipos caligráficos, com a finalidade de reavaliar os fragmentos escritos do passado e eliminar os possíveis equívocos de leitura, que podem ser inseridas pela transmissão textual. Assim, Petrucci (2003) ainda vai além desses interrogantes e propõe uma pesquisa dinâmica, com novas fontes de pesquisa da história da escrita, por uma história das maneiras de escrever, das condições de produção e difusão do testemunho, mas também dos modos de ler e da função que a socidade atribui à escrita. Nessa linha do contemporâneo,

La Paleografía deja de ser el estudio descontextualizado de los tipos de escritura y pasa a definirse en virtud de la consideración del hecho escrito como un producto sociocultural cuyo estudio e interpretación provee de un conocimiento más rico del

pasado y el presente. Esto lleva a interesarse por cualquier manifestación escrita – documentos, libros, inscripciones, filacterias, grafitos, etc-, al margen de la época histórica o del soporte material. (SAÉZ SÁNCHEZ; CASTILLO GÓMEZ, 1999, p. 27, grifo nosso)82

Mandel (2006), ao tratar da escrita pública, também destaca, historicamente, a função do uso da escrita para fins políticos e publicitários:

Encontramos estas escritas, ainda hoje, em alguns países governados pela força, utilizada na divulgação de slogans políticos oficiais, textos de sacralização ou de mitificação do poder local. Estas escritas do poder estatal contrastam mais fortemente com os regimes mais liberais, de circulação livre das ideias [...] que de uma parte se manifesta sob a forma de propaganda de persuasão, seguindo o método da publicidade, e de outra parte, sob a forma anárquica e espontânea dos grafites, assimiláveis pelo contra-poder. Estas escritas de textos políticos recobrem fartamente os muros de nossas cidades. (MANDEL, 2006, p. 67)

Portanto, de acordo com a nova Paleografia, a ciência da escrita precisa estudar a totalidade das “textualidades”, que a humanidade tem produzido, entre as quais as inscrições funerárias, os panfletos de campanhas publicitárias, as correspondências, as tatuagens, as contas de gastos dos comércios, os livros e outros tipos de escritos, que serão resgatados dos contextos dos cotidianos sociais e dos processos e práticas de uso na confecção desses registros, pois há desigualdade no acesso e na manipulação dos textos em todos os setores das sociedades. (PETRUCCI, 2003; SAÉZ SANCHEZ e CASTILLO GÓMEZ, 1999)

OS PERCURSOS DA ESCRITA E A SOBREVIVÊNCIA DOS DOCUMENTOS

No documento Paleografia e suas interfaces (páginas 126-129)

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