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OS ESCRITOS E OS SUJEITOS NA DRAMATURGIA BAIANA

No documento Paleografia e suas interfaces (páginas 152-159)

Buscamos explorar, a partir dos materiais selecionados, elementos que nos possibilitassem caracterizar os escritos e os sujeitos nos processos de produção e transmissão do texto teatral, pelo viés da crítica filológica, entendida por nós como “[...] uma prática interpretativa que objetiva a leitura dos textos a partir das coordenadas e diretrizes histórico- culturais que os tornaram possíveis” (BORGES; SOUZA, 2012, p. 58). Demos destaque para a ação dos diferentes sujeitos históricos na trama textual, os agentes sociais e culturais que atuaram na produção, circulação e recepção de um texto, pondo em evidência a dinamicidade e a progressiva transformação do texto no âmbito de uma tradição. “Os textos não existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais forem) de que são os veículos”, assevera Chartier (2002, p. 61-62). A materialidade escrita traz diversas formas de inscrição da linguagem, devendo os estudiosos ficar atentos a elas, proporcionando, em suas análises, diferentes textos e leituras.

Os textos eram modificados no momento da datilografia, através de ajustes, correções de ordem gramatical ou de lapsos resultantes do ato de datilografar; e, em momento posterior, utilizando-se da caneta (tintas nas cores azul, preta, vermelha) ou do lápis, rasuras de toda a

ordem: acréscimos, supressão, substituição, deslocamento, adiamento. Espaços vazios são deixados em branco para posterior preenchimento. Há também o recorte de passagem do texto colado no espaço deixado em branco (figs. 11 e 12). Anotações que remetem para o diálogo entre dramaturgo, diretor e atores. Tais informações permitem conhecer certas práticas de determinado escritor em seu processo de escrita do texto e da cena. Algumas imagens de manuscritos de Cândido ou O otimismo, original de Voltaire, adaptado para o teatro por Cleise Mendes, em 1980, dirigido por Deolindo Checcucci, que teve atuando no papel principal, Armindo Bião (fig. 13), ilustram o que dissemos (figs. 11, 12, 13).

Fig. 11 - Datiloscrito com emendas e anotações e trecho colado (cópia) à f. 4

Fonte: MENDES, 1980, f. 4; folha avulsa.

No verso do recorte colado à folha 4 da figura acima, registra-se parte do texto, uma citação, que remete para Maquiavel, Séc. XVI, manuscrita (fig. 12).

Fig. 12 - Texto datilografado e colado com citação manuscrita no verso

Fonte: MENDES, 1980, f. 4

Uma folha avulsa, escrita no anverso e verso, traz uma lista de aspectos a observar na encenação da peça.

Fig. 13 - Manuscrito entre as várias versões de Cândido ou O otimismo

Fonte: MENDES, 1980, folha avulsa, anverso.

Os textos teatrais censurados testemunham o gesto de escrever um texto para ser encenado e/ou lido e também a ação censória. Vamos aqui tomar os testemunhos88 que resultam

88 São 6 os testemunhos da referida peça: (1) [19--](TVV) (Teatro Vila Velha); (2) 1972frag(AN-DCP) (Arquivo Nacional – Divisão de Censura de Diversões Públicas); (3) 1972(EXB) (Espaço Xisto Bahia); (4)1972(TVV) (Teatro Vila Velha); (5) 1975(TVV) (Teatro Vila Velha); (6)1975/[1983]((AN-DCDP) (Arquivo Nacional – Divisão de Censura

do trabalho de João Augusto na preparação do texto da peça Quincas Berro d’Água, uma adaptação da novela de Jorge Amado: o [197-](TVV), um datiloscrito com modificações autógrafas, um texto em processo, 1972(TVV), que parece passar a limpo o texto anterior, aquele do testemunho 1972(EXB), e 1972frag(AN-DCDP), constituído apenas das folhas que trazem os cortes, para observarmos os vários textos que se encenam a cada movimento, produzindo novos sentidos. Tomemos para confronto um trecho dos referidos testemunhos89 para entender a movência textual que evidencia o processo de produção do texto teatral.

Quadro 1 - Confronto sinóptico entre os testemunhos

[19--](TVV) 1972(TVV) 1972frag(AN-DCDP)

VIVIANA – (entrando) Hoje não se come nessa casa. Se não fosse VIVIANA – por vocês... despedia ela! (para dentro) Essa Sinhá burra! ↑Nigrinha! (para

Clara) Ouví cada bronca da

Doralice! Só porque disse que tava com fome. “Dora, o pirão não sai?” ↑# Foi a água! Já se viu

isso?

([19--], f. 23, l. 36; f. 24, l. 1-4)

VIVIANA – (entrando) Hoje não se come nessa casa. Se não fosse por voces despedia ela. (para dentro) Sinhá burra! Nigrinha! (para Creusa) Ouví cada bronca da Doralice. Só porque disse que tava com fome. “Dora, o pirão não sai?” Tava chorando. Foi a água. Já se viu? Ousada! (1972, f. [24], l. 23-28).

VIVIANA – (entrando) Hoje não se come nessa casa. Se não fosse por vocês despedia ela. (para dentro) Sinhá burra! Nigrinha! (para Creuza) Ouví cada bronca de Doralice. Só porque disse que tava com fome. “Dora, o pirão não sai?” Tava chorando. Foi a água. Já se viu? Ousada! (1972, f, 25, l. 6-10)

João Augusto realiza várias modificações no texto do testemunho [197-](TVV), predominantemente a lápis, que se registram nos textos dos demais testemunhos. O testemunho 1972(TVV) passa a limpo o texto do 1972EXB, trazendo mudanças no texto que podem ser encontradas no texto do testemunho 1972frag(AN-DCDP), passado a limpo para encaminhamento ao Serviço de Censura. Nesse percurso de transformação, os acréscimos de “Sinhá” e de “Nigrinha!” estão nos demais testemunhos. Em 1972(TVV), foram acrescentados “Tava chorando.” e “Ousada!”, e foi suprimido “isso” na pergunta “Já se viu isso?”. Há ainda uma mudança de nome das personagens, Clara, prostituta, por Creusa (Creuza), “empregada no puteiro de Viviana” (l972, f. 4, l. 9, TVV).

No entanto, para além de João Augusto que deixou marcas na materialidade dos testemunhos da peça teatral, outras mãos também deixaram suas marcas, como os técnicos da Censura Federal e os atores, Ary Barata e Nilda Spencer. Vejamos a seguir:

de Diversões Públicas). As cópias (c) de 1972 e 1975 que se encontram na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) são1972(ETUFBAc) e 1975(ETUFBAc).

89 Na transcrição dos excertos para confronto sinóptico (Quadros 1 e 2), fizemos usos dos seguintes operadores críticos: abc (supressão), ↑ (acréscimo na entrelinha superior), [ ] (reconstituição de letras) e do registro em itálico para indicar as modificações manuscritas. Para dar destaque as modificações textuais entre os testemunhos, usamos o recurso negrito. Para indicar os cortes dos censores, foram utilizados os parênteses angulares <corte>.

Quadro 2 - Intervenções autorais e de outros agentes no texto dos testemunhos

Registros de intervenção Agentes de intervenção

Observações

sala de estar na casa de Vanda em Itapagipe. Realismo ↑crítico

seletivo: só o indispensável em cena.

([19--], f. 4, l. 3-4, TVV)

sala de estar na casa de Vanda, em Itapagipe. O cenário pode ser

um realismo crítico (seletivo).

(1972, f. [6], l. 7-8, TVV, cópia na ETUFBA)

João Augusto (realiza

modificações no texto, a lápis, que são levadas para o texto passado a limpo)

SANTEIRO – Pois é, a senhora sabe: tá na hora ↑época das festas de Xangô. A Lurdes foi lá, encontrou a porta aberta.

([19--], f. 4, l. 3-4, TVV)

SANTEIRO – Pois é, a senhora sabe: tá na época das festas de Xangô. A Lurdes foi lá, encontrou a porta aberta. A porta do quarto do Quincas tava sempre aberta. Dizem até que...

(1972, f.[7], l. 10-12, TVV, cópia na ETUFBA)

CENA X – A grande noite XI – O reencontro

XII – O Saveiro

(1972, f. 2, l. [12-13], EXB)

CENA X – A grande noite CENA XI – O reencontro CENA XII – O Saveiro

(1972, f. [2], l. 12-13, TVV, cópia na ETUFBA)

Arivaldo Barata (o texto traz

anotações em tinta azul e, sobretudo, a lápis relativas a acréscimos e ao registro dos nomes dos atores e personagens correspondentes).

Mudança de cena (arrumar a cena) / (já está arrumada)

Harildo Santeiro – Olhe, doutor, não se preocupe. [...] (1975, f. 1, l. 23; 26, TVV, cópia na ETUFBA)

Nilda Spencer (anotações manuscritas referentes às marcas cênicas, nomes de atores que fariam as personagens, entre outros, e emendas, a tinta e a lápis)

SANTEIRO – Não há quem ↑não goste dele lá no Tabuão.

(1975, f. 2, l. 1, TVV, cópia na ETUFBA)

SANTEIRO – Não há quem goste dele lá no Tabuão.

(1975, f. 1, l. 36, AN-DCDP)

VOZ – Olhe, sabem de uma coisa? (pausa longa) <Vão pra merda!> Jararacas!

(1972, f.20, l. 14-15, DCDP-AN)

VOZ – <(para Marocas) Olá saco de peidos.>

(1972, f. 21, l. 7, DCDP-AN)

QUINCAS – Sabem de uma coisa – Vão prá merda! Jararacas! (1975, f.10, l. 30, AN- DCDP)

QUINCAS – Olá, saco de peidos. Mina bufa!

(1975, f. 11, l. 7, AN-DCDP)

Censores (realizam cortes somente no texto de 1972)

Vimos, pois, que os testemunhos do texto teatral Quincas Berro d’ Água põem em evidência as mãos de vários sujeitos (autor/diretor, atores, censores) que se constroem nas práticas de escrita e disseminação do texto e da cena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da diversidade de testemunhos da dramaturgia baiana apresentados, entendemos que a investigação dessa cena teatral, no período da ditadura militar, dá a conhecer os modos de fazer e de escrever teatro na Bahia nesse tempo, tema ausente na maioria das publicações especializadas. Considerando que o espetáculo teatral não se restringe ao texto, o estudo das marcas deixadas pelos sujeitos nos scripts durante o processo de construção e revisão do texto, levantamento da cena e de censura, materializam aspectos pertinentes à ação no palco e permitem-nos compreender a dinâmica presente da elaboração texto à construção do espetáculo.

Por sua vez, consideramos que a diversidade de suportes materiais e técnicas de escrita e reprodução dos testemunhos também apontam para um cotidiano teatral heterogêneo, atravessado pelas questões de seu tempo. Nele se incluem o teatro amador e o teatro profissional, temáticas voltadas para o público adulto e infantil, bem como adaptações de clássicos e textos que criticam a realidade social local.

A partir dessa leitura, é possível também vislumbrar o papel de cada um desses sujeitos, compreendendo a circulação desses textos, os modos como foram apropriados pelos dramaturgos, atores, diretores e espectadores, bem como pelos órgãos oficiais de censura. Nesse sentido, a perspectiva Filológica, ao aliar-se à Manuscritologia e à Paleografia na investigação dos sujeitos que intervieram na construção do texto, do suporte material e instrumentos de escrita, possibilita que outras esferas do espetáculo sejam visíveis aos olhos daqueles que não vivenciaram o referido período, divisor de águas da história do teatro baiano.

REFERÊNCIAS

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BORGES, Rosa; SOUZA, Arivaldo Sacramento de. Filologia e edição de texto In: BORGES, R.; SOUZA, A. S. de; MATOS, E. S. D. de; ALMEIDA, I. S. de. Edição de texto e crítica

filológica. Salvador: Quarteto, 2012. p. 15-59.

CEIA, Carlos. Paleografia. In: E-Dicionário de Termos Literários (EDTL). Carlos Ceia (Coord.), 2010. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt>. Acesso em 15 mar. 2014. CHARTIER, Roger. Do palco à página. Tradução Bruno Fleiter. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

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DUARTE, Luiz Fagundes. Manuscritologia. In: ______. Glossário de Crítica textual. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1997. Disponível em:

<http://www2.fcsh.unl.pt/invest/glossario/glossario.htm#v>. Acesso em: 04 ago. 2016. FAGUNDES, Coriolano de Loiola Cabral. Censura e liberdade de expressão. São Paulo: Editora e Distribuidora do Autor Ltda., 1975.

GRÉSILLON, Almuth. O manuscrito moderno: objeto material, objeto cultural, objeto de conhecimento. In:______. Elementos de crítica genética: ler manuscritos modernos. Porto Alegre: UFRGS, 2007 [1994], p. 51-146.

GROSSMANN, Judith. Simun, o vento. Salvador, 1971.

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MENDES, Cleise. Cândido ou otimismo. Salvador, 1980. MENDES, Cleise. Noivas. Salvador, 1986.

PENNA, Jurema. O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus ou das

crianças. Salvador, [197-].

PENNA, Jurema. O bonequeiro Vitalino ou Nada é impossível aos olhos de Deus ou das

crianças. Salvador, 1977

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crianças. Salvador, [1991].

ROSA, Gideon. O avião que venceu o mar. Salvador, 1980.

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