• Nenhum resultado encontrado

NÍVEIS DE EXECUÇÃO GRÁFICA NO BRASIL QUINHENTISTA: UMA ANÁLISE DA MORFOLOGIA DAS ASSINATURAS DEIXADAS NOS LIVROS DA

No documento Paleografia e suas interfaces (páginas 45-47)

INQUISIÇÃO8

Ana Sartori Instituto de Letras Universidade Federal da Bahia INTRODUÇÃO

No século XVI, em Portugal, atuava, ligado à Igreja Romana e ao rei de Portugal, o representante máximo da hierarquia administrativa da Inquisição portuguesa: o Inquisidor- Geral, assessorado pelo Conselho Geral. Funcionavam, como órgãos subalternos da Inquisição, presos diretamente ao Inquisidor Geral e seu Conselho, os Tribunais de Lisboa, Évora, Coimbra, Porto, Lamego, Tomar e Goa. Siqueira considera que, entre eles, a peça mais importante da máquina inquisitorial portuguesa foi o Tribunal de Lisboa, “liana de mil ramificações”, que estendeu sua área de atuação primeiro às províncias da Extremadura e parte da Beira, depois a todas as conquistas da África até o Cabo da Boa Esperança, em seguida à ilha de Madeira, a todas as outras Ilhas portuguesas, e finalmente ao Brasil (SIQUEIRA, p. 115- 116; p. 125).

A Mesa dos Tribunais funcionava, em sua sede, de maneira contínua, abrindo suas portas diariamente. Funcionava ainda uma justiça itinerante, levada periodicamente por visitadores nomeados, por determinação do Conselho Geral do Santo Ofício, através de inspeções aos diversos pontos do território sob a jurisdição de cada tribunal. Essa justiça itinerante, ligada ao Tribunal de Lisboa, veio pela primeira vez ao Brasil no final do século XVI, quando foram visitadas as capitanias do Nordeste.

O visitador mandado pelo Santo Ofício, Heitor Furtado de Mendoça, chegou à Bahia em junho de 1591, aí residindo por dois anos, e partiu então para as Capitanias de Pernambuco, de Itamaracá e da Paraíba, de onde retornou, em 1595, a Pernambuco e daí a Portugal. Nas quatro Capitanias em que residiu, o visitador mandou fixar, nas portas das principais igrejas existentes, um Édito de Fé, que determinava que todos denunciassem e manifestassem tudo o que soubessem “de uista e de ouujda que qualquer pessoa tenha fejto, djtto, e cometido cõtra nossa santa fee catholica, e cõtra o que tem cree, e Insina a santa Madre Igreja de Roma” (Quarto Livro das Denunciações, fol. 7v-8r). Era ainda publicado um Édito da Graça, que concedia um período em que os indivíduos poderiam confessar suas culpas, demonstrando arrependimento, e não recebendo punição por elas.

O visitador estava acompanhado pelo notário do Santo Ofício para esta visitação ao Brasil, Manuel Francisco, que tinha como missão registrar tudo o que se passava nos depoimentos de pessoas residentes ou estantes nas referidas capitanias, perante a mesa do Tribunal. Após ter sido registrada em livro a denúncia ou a confissão feita, o notário solicitava à testemunha que assinasse o depoimento transcrito, como forma de confirmar e validar o registro. Nem todos, porém, seriam capazes de deixar sua assinatura, já que nem todos os que depunham sabiam assinar. Alguns punham, no lugar do nome, uma cruz. Outros, nem mesmo isso faziam; pediam ao notário para que por eles assinasse, declarando não saber assinar.

Impulsionados pela obrigação de cumprir o édito de fé publicado, apresentaram-se à Mesa do Tribunal da Inquisição sediada nas Capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba

8 "O texto apresentado parte de reflexões realizadas durante a minha tese de doutoramento, já publicadas parcialmente no volume 22, número 2 da revista Caligrama (SARTORI, Ana. Níveis de execução gráfica e alfabetismo no Brasil quinhentista. Caligrama, Belo Horizonte, v. 22, n. 2, p. 61-81, 2017. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/caligrama/article/view/11912/10964.)"

348 indivíduos, para denunciar crimes contra a fé católica ou confessar as próprias culpas, aproveitando o tempo da graça, no qual todos os pecados confessados seriam perdoados. Às casas da morada do senhor visitador, compareceram pessoas de diversos estratos da população: homens, mulheres, brancos, mamelucos, mulatos, índios, negros, senhores de engenho, lavradores, artesãos, mercadores, padres, feitores, escravos, soldados, criados, cristãos-novos, cristãos-velhos, portugueses, brasileiros, africanos...

Os diferentes estratos da população que iam depor possuíam certamente diferentes graus de letramento, de acesso às práticas de leitura e de escrita. No início de cada depoimento, eram registrados diversos dados pessoais (como naturalidade, idade, filiação, ocupação/profissão, local de residência), a partir dos quais se pode traçar o perfil social dos depoentes. Alguma informação sobre o nível de alfabetismo dos indivíduos é possível ser depreendida no momento final do depoimento, quando se fazia necessária a assinatura do documento. Nesse momento, aqueles que tinham pouco ou nenhum acesso à prática da escrita não assinavam seu depoimento, ou faziam, em lugar da assinatura, uma cruz ou outro sinal não alfabético. Os que sabiam assinar o nome demonstravam, através do traçado de sua assinatura, níveis diferenciados de execução gráfica. Essa simples informação a respeito das testemunhas – se sabiam ou não assinar –, aliada à possibilidade de análise da qualidade das assinaturas executadas, faz dos livros produzidos durante a visitação do Tribunal da Inquisição ao Brasil uma rica e rara fonte que pode descortinar muito a respeito da difusão social da escrita nesse momento da nossa história.

Como seria a distribuição da escrita em nossa sociedade, ao longo dos cinco séculos de história do Brasil? Ana Maria Galvão (2010), em um estudo que toma como base um levantamento feito da produção registrada no banco de teses da CAPES ligada ao campo da história da cultura escrita no Brasil, afirma:

[...] não temos (ou pelo menos não localizamos), no caso brasileiro, uma produção, tal como ocorre na Europa ou nos Estados Unidos, que permita situar, em escala societal, a presença da alfabetização e do letramento ao longo desses cinco séculos de história do país. No levantamento realizado, não foi localizado nenhum estudo que pudesse ser classificado estritamente como pertencente a essa linha de investigação. Portanto, no país não há um mapeamento da distribuição social da alfabetização anterior ao primeiro censo demográfico, que foi realizado em 1872. Não sabemos, por exemplo, quem eram e onde estavam aqueles que sabiam ler e escrever. (GALVÃO, 2010, p. 241-2).

Um dos objetivos que os estudos da história da cultura escrita têm perseguido é o de analisar, a nível de uma sociedade, como se encontram difundidas as práticas de leitura e escrita9. Se, até pouco tempo atrás, os estudos de história da escrita tinham como objetivo unicamente classificar e medir o sistema da escrita enquanto instrumento de comunicação, sem tratar de qualquer implicação da escrita com as sociedades que a empregaram ao longo do tempo, ligando-se a uma concepção de escrita em termos mais mecânicos e gráficos, como signo descontextualizado, o que se observa atualmente no campo da história da cultura escrita, para Castillo Gómez (2003), é um projeto que transcende a visão da escrita enquanto mero

9Castillo Gómez (2003, p.97) afirma que o reconhecimento e o uso do termo ‘história da cultura escrita’ estão circunscritos, praticamente, à segunda metade da década de 1990. Considera, por outro lado, que não seria possível estabelecer um momento de fundação da disciplina, e que suas origens seriam muito mais antigas, ligadas às trajetórias de dois campos: a história da escrita e a história do livro e da leitura, as quais convergiram, posteriormente, para a história da cultura escrita. A história do alfabetismo, entendido como difusão social da escrita, insere-se também nesse campo que se delineia, da história da cultura escrita. Em alguns estudos, é utilizado o termo ‘alfabetização’ ao invés de ‘alfabetismo’. Aqui, opta-se pelo termo ‘alfabetismo’, uma vez que esse não parece tão atrelado às práticas de leitura e escrita adquiridas apenas através do ensino escolarizado.

sistema gráfico, procurando abordar as distintas funções da escrita e suas consequentes práticas materiais, sempre em referência às respectivas sociedades históricas e tendo em conta que em cada momento a sociedade esteve formada por alfabetizados e analfabetos (CASTILLO GÓMEZ, 2003, p. 95-96).

É o paleógrafo Armando Petrucci quem inaugura, em 1962, estudos que renovam o método paleográfico, traçando coordenadas para a saída do isolamento erudito em que estava imersa a paleografia, incorporando às quatro questões fundamentais da paleografia tradicional, que tratam da produção dos testemunhos escritos – o que, quando, onde e como – duas novas perguntas: quem escreve e por que se escreve, as quais teriam resultado em uma mudança substancial da interpretação paleográfica dos produtos escritos, na avaliação de Castillo Gómez e Sáez (1994, p. 153). Petrucci (1999) considera que toda investigação que almeje estudar as relações entre cultura escrita e sociedade deve ter em conta dois elementos: a difusão social da escrita, entendida como a capacidade de escrever e ler; e a função que a escrita em si mesma assume no âmbito de cada sociedade, e que cada tipo ou produto gráfico assume, em um ambiente cultural concreto que o produz e o emprega. O paleógrafo põe os estudos do alfabetismo no cerne da relação entre cultura escrita e sociedade; enquanto a função que a escrita assume está ligada à questão do por que se escreve, lançada pelo autor, a difusão social da escrita, enquanto capacidade de ler e escrever, liga-se diretamente ao quem escreve, já que as sociedades que possuem escrita se encontram formadas por analfabetos e alfabetizados.

Se os estudos da história da cultura escrita no mundo ocidental possuem já uma larga tradição, o que é bastante visível em abordagens como a de Chartier (1991), que apresenta um panorama dos estudos sobre a difusão da escrita em países europeus e nos Estados Unidos, que se debruçam sobre o intervalo do século XVI ao XVIII, a respeito do Brasil, pode-se dizer que há ainda muito ou quase tudo por se fazer, o que é notável no levantamento das pesquisas no

No documento Paleografia e suas interfaces (páginas 45-47)

Documentos relacionados