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UMA ANÁLISE DA MORFOLOGIA DAS ASSINATURAS DEIXADAS NOS LIVROS DA INQUISIÇÃO

No documento Paleografia e suas interfaces (páginas 50-60)

A análise aqui apresentada tem como corpus as assinaturas recolhidas em três dos nove livros produzidos na primeira visita da Inquisição ao Brasil, os quais foram redigidos nas Capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba: o Quarto Livro das Denunciações (1593- 1595), o Terceiro Livro das Confissões (1594-1495), e a segunda parte do Terceiro Livro das

Denunciações (1594-1595). Embora o foco dessa análise seja um estudo qualitativo das

assinaturas, faz-se relevante apresentar alguns dos dados gerais encontrados na análise quantitativa realizada através do cômputo das assinaturas.

Dos 348 indivíduos que compareceram à mesa do Tribunal para testemunhar, tendo seu depoimento registrado nos livros produzidos nas capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, 263 (76%) foram capazes de deixar seu nome escrito de próprio punho e 85 (24%) não o foram. Dos que não deixaram sua assinatura, 63 declararam não saber assinar, pedindo ao notário que por eles o fizesse, e 22 fizeram, no lugar de sua assinatura, o desenho de uma cruz ou de outro sinal não alfabético.

Observa-se, para além de uma porcentagem geral de assinantes bastante elevada, uma clara distinção entre a participação de depoentes do sexo masculino e do sexo feminino: a porcentagem de mulheres assinantes é inversa à dos homens; enquanto 92% dos homens assinam seu testemunho, 93% das mulheres não o fazem.

Quanto aos níveis de alfabetismo distribuídos entre os diversos estratos sociais, da elite colonial em direção ao povo, em linhas gerais, observa-se um decréscimo da capacidade de assinar. Observa-se, por outro lado, que não há uma grande disparidade entre os percentuais de assinantes entre integrantes da mais alta elite colonial – os senhores de engenho, que tiveram 86% de assinantes – e trabalhadores de pequenos ofícios, integrantes do povo, 79% deles assinantes. Apenas o grupo dos escravos, além de estar pouco representado nas fontes inquisitoriais, demonstrou um resultado diferente, como seria de se esperar, tendo-se em vista a situação social em que se encontravam no Brasil quinhentista: foram apenas dois os escravos presentes, nenhum deles assinante. O corpus analisado é representativo, basicamente, de uma sociedade branca, composta por portugueses e brasileiros, e seus filhos brancos e mamelucos – estes últimos, sim, apresentando percentuais de assinantes idênticos aos dos indivíduos brancos. A análise da morfologia das assinaturas e dos sinais não alfabéticos presentes nos documentos tem como inspiração o já citado estudo de Petrucci (1978), sobre os registros de escrita deixados no caderno de contas de Maddalena. Porém, tendo-se em vista ser a natureza do objeto aqui analisado – as assinaturas e os sinais não alfabéticos – diferente daquele analisado por Petrucci, constituído por registros mais extensos de escrita, a classificação utilizada por esse autor não é aqui adotada. Em primeiro lugar, não será feita uma classificação dos tipos de escrita, uma vez que, nas assinaturas, os dados de escrita são reduzidos, não sendo possível tirar deles informações suficientes para caracterizar o tipo de escrita utilizado. Sem a categorização do tipo de escrita utilizado, não é viável também utilizar a nomenclatura dos três níveis de execução de Petrucci, já que a classificação dos níveis em puro, usual e elementar de execução relaciona o nível de execução ao sistema de escrita utilizado, quando trata de um nível ‘puro’ como um registro gráfico com pouca interferência de outros modelos de escrita, ou ainda quando o nível ‘elementar’ ou ‘elementar de base’ é geralmente referido como ‘elementar de

base mercantil’ ou ‘elementar de base itálica’. Assim, optou-se pela utilização de uma

nomenclatura mais neutra, desvinculada de relação com o sistema de escrita.

Embora não seja possível uma transposição direta da classificação de Petrucci, ainda se pôde tirar proveito da sua descrição dos níveis de escrita, utilizando-se alguns elementos de sua análise, os quais, acrescidos de outros elementos, auxiliaram a compor uma caracterização de dois grandes níveis de execução gráfica. Fez-se necessário fundir os níveis médio e alto, uma

vez que, nas assinaturas, os dados de escrita são reduzidos para uma diferenciação segura desses dois níveis de execução; vê-se ainda que algumas características típicas de um ou outro nível de execução podem se confundir na escrita das assinaturas. Seria de se esperar, por exemplo, que, em um nível alto de execução gráfica, se encontrasse um traçado cuidadoso, com uma letra bela e legível; porém, sabe-se que há indivíduos bastante letrados que executam suas assinaturas de forma apressada e pouco cuidadosa, executando letras às vezes mal traçadas e também ilegíveis. Dessa forma, ficou assim estabelecida a classificação dos níveis de execução das assinaturas presentes nos livros da Inquisição: a) nível médio ou alto de execução gráfica; b) nível baixo de execução gráfica.

Entre os 264 indivíduos assinantes do corpus, 83% executaram em um nível médio ou alto suas assinaturas e apenas 17% apresentaram um nível baixo de execução gráfica.

ASSINATURAS COM NÍVEL MÉDIO OU ALTO DE EXECUÇÃO GRÁFICA

Os depoentes com um nível médio ou alto de execução gráfica das suas assinaturas apresentam segurança e destreza ao segurar a pena, o que é notável pelo traçado regular, pelo bom alinhamento das letras, pela abundância de ornamentação na escrita, sendo utilizadas serifas e laçadas ligadas ou não às letras, e outros ornamentos, como cruzes, traços com pontos, sublinhados e outros traços. Vê-se ainda um uso adequado de elementos auxiliares, como sinais diacríticos e abreviaturas. É o que se observa nos exemplos a seguir:11

Assinatura de João Batista, padre

(QUARTO..., f.265-v) Assinatura de Mateus de Freitas d’Azevedo, alcaide-mor da Capitania de Pernambuco

(QUARTO..., f.37v)

Assinatura de Bernardo Gil, senhor de engenho (QUARTO..., f.115r)

Assinatura de Gaspar Manuel, clérigo (QUARTO..., f.12r)

Assinatura de Andrés Pedro, mercador (QUARTO..., f.148v)

Assinatura de Jorge Barbosa Coutinho, jurista (QUARTO..., f.35r)

11 A análise das assinaturas e sinais não alfabéticos foi realizada a partir das edições fac-similares dos livros da Inquisição, disponíveis no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde se encontram depositados os originais dos referidos livros (cf. QUARTO..., 1593-1595; TERCEIRO..., 1594-1595; TERCEIRO..., 1591-1595). Nas imagens aqui utilizadas, retiradas dos dois primeiros livros citados, serão informados apenas a primeira palavra do título e o número da folha do manuscrito em que as assinaturas se encontram, para maior limpeza do texto.

Assinatura de Pero Cabral, clérigo (QUARTO..., f.19v)

Assinatura de Cosme de Araújo (ocupação não declarada)

(QUARTO..., f. 24v)

Vê-se, através de algumas assinaturas, que a destreza no uso da pena não é sinônimo de legibilidade: em alguns registros, nota-se uma mais forte personalização ou uma excessiva cursividade, o que pode ocasionar letras mal feitas. É o que se observa, por exemplo, nas assinaturas de Andrés Pedro e Cosme de Araújo, já ilustradas.

Com relação ao perfil social dos assinantes, observa-se que a relação entre o sexo dos assinantes e o nível de execução gráfica mostrou-se radicalmente desigual. Entre os homens, 84% dos assinantes revelaram um nível médio ou alto de execução; entre as mulheres assinantes, nenhuma apresentou um bom nível de execução.

Avaliando-se os diversos estratos sócio-ocupacionais representados no corpus, observa- se que ficaram acima da média geral (83%) de assinantes com nível médio ou alto de execução gráfica: o clero, com 90% de assinantes com nível alto de execução; os burocratas, com 94%; os lavradores, com 95%; os mercadores, os liberais e os senhores de engenho, todos os três com 100% de assinantes com nível médio/alto de execução; e ainda o único homem do mar assinante. Entre os que ficaram abaixo da média, destacam-se, por apresentarem os mais baixos níveis de execução: os assalariados, com 71% de boas assinaturas; os artesãos, com 64%; os pequenos ofícios, com 59%.

ASSINATURAS COM NÍVEL BAIXO DE EXECUÇÃO GRÁFICA

Os registros classificados entre um nível baixo de execução gráfica apresentam, de maneira geral, escritas bastante inábeis e hesitantes, letras traçadas com dificuldade, módulo geralmente maior que o normal, irregularidade no traçado. Por outro lado, entre os depoentes que apresentaram um nível baixo de execução, veem-se claramente gradações na capacidade de escrever o nome. Alguns revelam grande dificuldade para desenhar algumas poucas letras, cujo traçado não raro finda por ser irreconhecível. Pode-se avaliar que esse tipo de assinante não saberia de fato escrever. Vejam-se, a seguir, alguns exemplos assim avaliados:

Assinatura de Bastião Pires D’Abrigueira, carreiro

(QUARTO..., f.120v)

Assinatura de Francisco Pires, carpinteiro (QUARTO..., f.70v)

Assinatura de Gonçalo Ferreira, lavrador de mandioca

(QUARTO..., f.79)

Assinatura de João Fernandes, sapateiro (QUARTO..., f.217v)

Assinatura de Pero João, carreiro (QUARTO..., f.233r)

Assinatura de Afonso Rodrigues, aprendiz de ferreiro (QUARTO..., f.253v)

Outras testemunhas com um nível baixo de execução gráfica não parecem apresentar tanta dificuldade ao segurar a pena. Revelam mais segurança no traçado, uma escrita mais corrente, geralmente também com mais letras, mesmo que a abreviatura de nomes seja ainda marca bastante presente. Em tais assinaturas, já se encontram ornamentos, embora de apresentação bastante tímida: veem-se raras laçadas e traços mais frequentes, acima, abaixo ou dos lados do nome, sendo a posição preferida abaixo dos nomes, como um sublinhado. Por vezes, os traços compõem uma cercadura quadrada ou arredondada para o nome.

Assinatura de Manuel Dias, Sapateiro Assinatura de Antônio Fernandes, aprendiz de oleiro (QUARTO..., f.232v).

Assinatura de Manuel de Leão, vaqueiro e esteireiro (TERCEIRO..., f.11r).

Assinatura de Manuel Franco, trabalhador de enxada e foice (TERCEIRO...,

f.79r).

Assinatura de Salvador Jorge (ocupação não declarada) (QUARTO..., f.91v).

Assinatura de Antônio Gonçalves, purgador de açúcar (QUARTO..., f.113v).

Entre os depoentes que apresentaram assinaturas com um nível baixo de execução gráfica, destaca-se a presença de três estratos sócio-ocupacionais: assalariados, artesãos e pequenos ofícios, que apresentaram um percentual de assinantes com um nível baixo de execução mais baixo que a média geral de assinantes. O grupo dos assalariados que não executaram bem suas assinaturas é formado por dois feitores, dois purgadores de açúcar, um mestre de açúcar e um mareante. No grupo dos artesãos que não assinaram bem, figuram quatro sapateiros, um carpinteiro, um oleiro, um aprendiz de oleiro e um aprendiz de ferreiro. Entre os trabalhadores de pequenos ofícios, não fizeram boas assinaturas: três carreiros, um vinhateiro, um pescador, um pedreiro, um trabalhador de enxada e foice, um indivíduo que servia de soldada e um vaqueiro.

As cinco mulheres do corpus que assinaram o seu nome executaram, todas, assinaturas classificadas em um nível baixo de execução gráfica; quatro dessas apresentaram assinaturas tão mal traçadas que se pode inferir que não saberiam de fato escrever: Maria de Heredo, mameluca, casada com o alcaide-mor da Capitania de Pernambuco; Caterina Fernandes,

mameluca, casada com um escrivão; Maria Lopes, viúva de homem da governança, dono de engenho; e Maria de Faria, portuguesa, que declarou viver, com seu marido, por sua indústria.

Assinatura de Maria de

Heredo (QUARTO..., f.22r). Assinatura de Caterina Fernandes (QUARTO..., f.246v).

Assinatura de Maria Lopes (QUARTO..., f.84v).

Assinatura de Maria de Faria (QUARTO..., f.70r).

A quinta e última mulher assinante é a que consegue executar com maior destreza seu nome, ainda que sua assinatura seja classificada como pertencente a um nível baixo de execução, por possuir um traçado um pouco hesitante, letras mal alinhadas e algumas letras mal traçadas (especialmente o ‘d’ e o primeiro ‘n’), além de não deixar registrado o seu sobrenome. Trata-se de Joana d’Albuquerque, mameluca, filha de Jerônimo d’Albuquerque, senhor de terras, homem da governança, que estava entre os homens mais importantes da Capitania de Pernambuco.

Assinatura de Joana d’Albuquerque (QUARTO..., f.133r).

A análise da morfologia das assinaturas femininas confirma o que já se havia constatado através da análise quantitativa de mulheres assinantes: um acesso extremamente restrito às práticas de escrita entre as mulheres, as quais, nas raras circunstâncias em que revelaram algum acesso ao letramento, mostraram um nível muito baixo de execução gráfica, o que seria provavelmente reforçado pela falta de prática do conhecimento de escrita adquirido.

A CRUZ E OUTROS SINAIS NÃO ALFABÉTICOS

Entre as testemunhas que não sabiam assinar o próprio nome, o sinal não alfabético mais empregado foi a cruz: das 22 testemunhas que fizeram um sinal não alfabético em lugar do nome, 19 utilizaram a cruz.

Cruz de Diogo Gonçalves, dono de engenho (QUARTO..., f.28v).

Cruz de Rodrigo Sequeira, soldado (QUARTO..., f.43r).

Cruz de Francisco Domingues, carpinteiro (QUARTO..., f.258v)

Cruz de Antônio da Concepção, escravo (QUARTO..., f. 81r).

A cruz é um sinal bastante encontrado até mesmo entre aqueles que assinam o próprio nome, pondo-a preferivelmente sobre o nome, ao centro, mas também ocorrendo com frequência ao lado do nome; elas podem aparecer soltas da assinatura ou ligadas a esta através de laçadas. Notem-se, por exemplo, as assinaturas de Bernardo Gil, Gaspar Manuel, Cosme de Araújo e Manuel de Leão, ilustradas anteriormente.12

Quanto às três testemunhas que fizeram um sinal não alfabético diferente da cruz, encontram-se dois vaqueiros: o português Luís Gomes, de 60 anos, e o italiano Francisco Cortes, de 40 anos de idade; além deles, também desenhou um sinal não alfabético João Paris, espanhol de 30 anos, bombardeiro no Forte do Cabedelo, na Barra da Paraíba. Os sinais desenhados por esses depoentes parecem signos motivados, semelhantes àqueles analisados por Ribeiro da Silva (1986) de documentos portugueses do século XVI e XVII da região do Porto, que lembravam, muitas vezes, elementos do ofício dos assinantes, como a tesoura, no caso do alfaiate, o machado, no caso do lenhador, o esquadro, no caso do carpinteiro, o ferro, no caso do ferreiro e a lavoura, no caso do lavrador.

Fig. 3 - Sinais não alfabéticos encontrados em documentos portugueses

Fonte: RIBEIRO DA SILVA, 1986, p. 116.

Os sinais utilizados por Luís Gomes e Francisco Cortes podem ser, ao que parece, relacionados à sua profissão de vaqueiro, pois guardam semelhança com a imagem de um curral. O desenho do bombardeiro João de Paris estará provavelmente representando a imagem de um forte, também relacionada a seu ofício.

12 Fraenkel (2015), em um estudo da história das assinaturas, comenta que a referência a Deus era uma das instâncias convocadas para a validação do documento escrito, na Idade Média. A referência a Deus se expressava através de invocações diretas, como “In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti”, ou por marcas menos diretas, como as cruzes ou os chrismons. Para Fraenkel, o uso da cruz nas assinaturas, encontrada junto aos nomes dos letrados ou ainda sozinha, utilizada por indivíduos analfabetos, no lugar das assinaturas, era um sinal que estaria representando simbolicamente a função de um “nome coletivo”, conferido pelo cristianismo: “não somos todos filhos de Deus?” (FRAENKEL, 2015, tradução nossa).

Cruz de Domingos Lopes, feitor (QUARTO..., f. 99r).

Cruz de Pero Mendes, pescador (QUARTO..., f. 210v).

Fig. 4 - sinais não alfabéticos Sinal de Luís Gomes, vaqueiro (QUARTO..., f.143r.) Sinal de Francisco Cortes, vaqueiro (TERCEIRO..., f.17v.)

Sinal de João de Paris, bombardeiro (TERCEIRO..., f.105v.)

Das 22 testemunhas masculinas que não foram capazes de assinar seu nome para validar seu depoimento, 21 fizeram uma cruz ou outro sinal não alfabético no lugar da assinatura; apenas um se declarou cego e, portanto, incapaz de assinar, pedindo ao notário que por ele assinasse. Nesse aspecto, o comportamento das testemunhas femininas não assinantes mais uma vez difere do comportamento masculino: enquanto os homens incapazes de escrever seu nome faziam, em lugar da assinatura alfabética, a cruz ou outro sinal, as mulheres declaravam ao notário não saber assinar e solicitavam que ele assinasse em seu lugar; dentre as 63 mulheres não assinantes dos dados, apenas uma fez a cruz no lugar do nome.

Ribeiro da Silva, em sua análise dos níveis de alfabetismo na cidade do Porto, que teve como fonte livros de atas da Câmara de finais do século XVI a meados do século XVII, também verificou que apenas os homens utilizaram assinaturas não alfabéticas, como a cruz. Ribeiro da Silva considera que “o saber ler e escrever constituía aos olhos da ‘opinião pública’ da época uma qualificação social importante que quem possuía não deixava de exibir” (RIBEIRO DA SILVA, 1986, p. 113). Conclui, assim, que, quando alguém assinava “de cruz”, era porque não sabia de fato assinar pelo alfabeto, nem também sabia escrever. Por outro lado, pode-se dizer também que quem usava a cruz não se via forçado a se classificar declaradamente como não assinante, tendo que pedir ao notário para que por ele assinasse. Provavelmente, era isso que levava os homens a lançarem mão de uma assinatura não alfabética.

A atitude presente apenas entre as mulheres de pedir ao notário para por elas assinar, que se opõe ao posicionamento observado entre os homens, que preferiam assinar de cruz, aponta para uma realidade já conhecida: diferentemente do que ocorria entre os homens, saber assinar e saber escrever não era algo que se esperava das mulheres no século XVI. Entre as mulheres, era absolutamente “natural” que não soubessem assinar. É possível, inclusive, que a atitude das mulheres, perante a mesa do Tribunal, fosse não de um comportamento ativo, propriamente rogando ao notário que por elas assinasse, e, sim, uma atitude passiva, confirmando a informação já esperada e provavelmente também sugerida pelo notário de que ele deveria assinar por elas.

Os dados recolhidos por Marquilhas (2000, p. 116) nos depoimentos inquisitoriais portugueses do século XVII a fazem considerar o comportamento de homens e mulheres que não sabiam escrever um verdadeiro “ritual signatário”: enquanto os homens, quando não sabiam assinar, assinavam de cruz (apenas com raras exceções), as mulheres nunca assinavam só “de cruz”: ainda que fizessem a cruz, o notário assinava ao lado desta. É também elucidativo o texto de uma das comissões escritas pelos inquisidores, que possuía instruções aos funcionários do Santo Ofício, em que se encontra dito: “[...] não sabendo alguma das testemunhas assinar, assinara por ella a seu rogo o escrivão desta diligencia, sendo mulheres” (ANTT, Inquisição de Évora, liv. 233, Cadernos do Promotor, fls. 75r-77r apud MARQUILHAS, 2000, p. 116, grifo nosso).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe aqui retomar as considerações feitas por Petrucci (1978), a respeito dos resultados obtidos em seu estudo: a difusão das práticas de escrita entre os diferentes estratos populacionais que revelam os dados, em diferenciados níveis de execução, apontam, provavelmente, para variadas formas de acesso à cultura escrita, o que, para Petrucci, torna evidente que o ensino da escrita ocorria em modos e formas diversas segundo as circunstâncias, os níveis culturais e sociais dos indivíduos – o que parece ainda mais claro quando se observa que, na Roma quinhentista, não haveria uma organização escolar elementar homogênea e generalizada.

Uma avaliação semelhante pode ser feita sobre o Brasil do século XVI. O ensino escolarizado das primeiras letras, difundido pelas ordens religiosas presentes no Brasil colonial, possuía um alcance restrito. Pode-se observar, por exemplo, que em todo o território das Capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba havia apenas, ao final do século XVI, um único colégio jesuíta, situado na Capitania de Pernambuco, o qual, segundo as informações do parde José de Anchieta, possuía apenas uma turma de primeiras letras, que ensinava a ler, escrever e contar, e atendia até 40 rapazes, filhos de portugueses (ANCHIETA, [1554-1594] 1933).

A difusão das práticas de leitura e escrita entre homens livres da sociedade brasileira quinhentista que o grande número de indivíduos assinantes nas fontes do Tribunal da Inquisição parece estar indicando é sinal de que o ensino da leitura e da escrita não estaria apenas restrito aos muros dos colégios jesuítas. A própria história social comprova essa ideia. Freyre, por exemplo, afirma que “até meados do século XIX, quando vieram as primeiras estradas de ferro, o costume nos engenhos foi fazerem os meninos estudos em casa, com o capelão ou com mestre particular” (FREYRE, 1989, p. 412).

A existência de professores particulares é também atestada nos testemunhos prestados ao Tribunal da Inquisição. Nos livros que registram os depoimentos realizados nas Capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, durante a primeira visita da Inquisição ao Brasil, tem-se a notícia de três mestres de meninos: Bento Teixeira, Fernão Rodrigues da Paz e Antônio de Brito. Trata-se de mestres leigos, não vinculados à Companhia de Jesus ou outra ordem religiosa. Os dois primeiros eram inclusive cristãos-novos, e Bento Teixeira, mestre de ensinar moços latim, ler e escrever e aritmética, a quem é atribuída a autoria da famosa Prosopopeia, chegou a ser preso pela Santa Inquisição, após ter sido citado em inúmeros depoimentos

No documento Paleografia e suas interfaces (páginas 50-60)

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