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2.3 A GESTÃO DAS ÁGUAS

2.3.3 Marcos internacionais e arcabouço legal

As decisões que envolvem a gestão das águas resultam em influência direta na vida e saúde das pessoas e de todos os ecossistemas. Por isso, o direito a água potável é direito fundamental e irrenunciável conforme estabelecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas em sua resolução 64/292 de 28 de julho de 2010 (ONU, 2010).

A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em 1972 em Estocolmo, pode ser considerada como evento pioneiro a reconhecer as questões ambientais e as ligadas aos recursos hídricos como transfronteiriços, ou seja, que ultrapassam as fronteiras nacionais. Esta conferência representou o primeiro instrumento de Direito Ambiental apontando vinte e seis princípios sobre questões que causavam danos ao ambiente e as orientações de como proceder para minimizá-los (RAUBER, 2005).

Foi somente após a Declaração de Estocolmo que as questões ambientais se tornaram objeto de preocupação mundial, passando a ser tema de negociação entre países (SETTI et al., 2000).

Na esfera internacional, as discussões referindo-se à necessidade de reforma e modernização da gestão dos recursos hídricos iniciaram em 1977 na Conferência das Nações Unidas sobre a Água, realizada em Mar del Plata, Argentina, quando destacou-se a preocupação com a necessidade de participação dos usuários no processo decisório, bem como, a preocupação com a capacitação do público para os problemas relacionados a água. Nesta conferência foi discutido o papel da água no processo de crescimento econômico e o seu plano de ação versou sobre o planejamento, a gestão, a capacitação e pesquisa e a cooperação regional e internacional (CALHMAN, 2008, p. 40).

Nesta Conferência foi formulado um plano de ações com algumas recomendações, entre elas a de que cada país deveria “[...] formular e analisar uma declaração geral de políticas em relação ao uso, à ordenação e a conservação da água, como marco de planejamento e execução de medidas concretas para a eficiente aplicação dos diversos planos setoriais” (ANA, 2002, p.12).

Em 1992, a Conferência Internacional sobre a Água e o Meio Ambiente: o Desenvolvimento na Perspectiva do Século XXI foi fundamentada na degradação do meio ambiente, no crescimento da população e da miséria em todos os continentes, de forma que a Declaração de Dublin demonstrou grande preocupação com a qualidade do desenvolvimento e com seus impactos no meio hídrico. Por isso focou-se nos instrumentos econômicos, na

proteção do meio ambiente e no processo participativo na tomada de decisão. Essa conferência foi preparatória para a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro em 1992, conhecida como Rio- 92 (CALHMAN, 2008).

Já na Rio 92 foi elaborado documento denominado Declaração do Rio para o Meio Ambiente, que estabelece o direito à participação nos processos decisórios:

A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios. Os Estados irão facilitar e estimular a conscientização e a participação popular, colocando as informações à disposição de todos. Será proporcionado o acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que se refere à compensação e reparação de danos (ONU, 1992, principio 10, grifo nosso).

Em 1996, o Egito, a França e o Canadá reuniram-se e instituíram formalmente o Conselho Mundial da Água cujo o objetivo é servir como uma plataforma internacional que promova a conscientização e melhoria dos recursos hídricas. Sua sede é na cidade de Marselha, na França.9

O Conselho Mundial promove a cada três anos o Fórum Mundial da Água. O primeiro fórum ocorreu em 1997, momento em que se iniciou uma conscientização global quanto aos problemas relacionados aos recursos hídricos e das soluções possíveis para resolvê-los. Desde então este fórum se reúne em diferentes locais, sendo que, em 2018 o mesmo ocorreu pela primeira vez no hemisfério sul (CALHMAN, 2008).

Na Tabela 2 apresenta-se a listagem dos Fóruns Mundiais da Água com datas e respectivas temáticas de debate.

9 WORLD WATER COUNCIL. Informações disponíveis em: <http://www.worldwatercouncil.org/en/history>. Acesso em: 15 jan. 2018.

Tabela 2 – Fórum Mundial da Água

Fórum Mundial Água

(FMA) Local Ano Temática

I FMA Marraquexe,

Marrocos 1997 Cenários da situação da Água em 2025 II FMA Haia, Países

Baixos 2000 Visão Global para o futuro

III FMA Kyoto, Japão 2003 Objetivos do Milênio estabelecidos pela Organização das Nações Unidas IV FMA Cidade do

México, México 2006

Governança, objetivos do milênio e proteção dos recursos hídricos

V FMA Istambul, Turquia 2009 Debate intergeracional das água VI FMA Marselha, França 2012 Tempo de soluções

VII FMA

Daegu e Gyeongbuk, na Coréia do Sul

2015 Água para o nosso futuro VIII FMA Brasília, Brasil 2018 Compartilhando a Água Fonte: Elaborado pela autora.

A governança e a gestão integrada dos recursos hídricos foram consideradas fundamentais para a solucionar a crise hídrica, em todos estes eventos promovidos pelo Conselho Mundial da Água.

Em 2002 ocorreu o Fórum Social Mundial na cidade de Porto Alegre, Brasil, onde foi elaborado o Manifesto da Água e o Contrato Mundial da Água, cujo enfoque antiglobalização foi ratificado pela Carta Pastoral da Água, redigida em 2003, na Bolívia. Estes documentos buscaram salientar que a água não deve ser considerada como mercadoria, mas como um patrimônio da humanidade, devendo ser direito fundamental de todo ser vivo, garantido como bem de domínio público, cujas políticas assegurarem equidade e participação (LAURA, 2004, p. 81).

Brzezinski (2012) alerta para essa mercantilização da água, apontando a necessidade de uma garantia de direito inerente à vida:

[...] no contexto atual de mercantilização da água doce, de desestatização e de escassez de recursos hídricos, o tema vem ganhando importância a ponto de ser necessário proclamar a existência de mais um direito humano, o direito humano à água (BRZEZINSKI, 2012, p. 61).

Ademais, em 2002 a Organização das Nações Unidas (ONU) promoveu, em Johanesburgo, África do Sul, a Conferência da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, denominada Rio+10. Este encontro teve por objetivo realizar um apanhado dos

resultados práticos, obtidos a partir dos acordos firmados entre os países que participaram da Rio-92 (DINIZ, 2002).

Em junho de 2012 ocorreu a Rio+20, no Rio de Janeiro, Brasil, marcando os vinte anos de realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92). O objetivo desta Conferência foi a renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável, por meio da avaliação do progresso e das falhas na implementação das decisões a nível mundial e do tratamento de temas novos e emergentes. Todavia, o evento foi considerado um fracasso pelos movimentos ambientalistas brasileiros, visto não ter promovido avanços quanto ao comprometimento dos líderes mundiais para a melhoria do ambiente.

Em que pese a tendência geral, o uso das águas depende de definições legais em cada país e entre os mesmos. O direito internacional no que diz respeito aos recursos hídricos, é tema delicado e se pauta pela inexistência de um poder central mundial, pela igualdade jurídica entre os Estados, a soberania dos Estados e o princípio da não intervenção.

A esse respeito, Accioly, Silva e Casella (2009) conceituam o direito internacional como:

[...] o conjunto de normas jurídicas que rege a comunidade internacional, determina direitos e obrigações dos sujeitos, especialmente nas relações mútuas dos Estados e, subsidiariamente, das demais pessoas internacionais, como determinadas organizações, bem como dos indivíduos (ACCIOLY; SILVA; CASELLA, 2009, p.12).

Podemos dizer que ainda se está em fase de maturação a gestão dos recursos hídricos frente às mudanças na seara mundial, o que ocorre devido às crescentes pressões acerca da degradação ambiental e o aumento da demanda para atender o consumo humano, bem como os desafios impostos pelas mudanças climáticas.

Conforme Movik (2011), o que tem motivado muitos países a reformarem suas legislações e sistemas de direitos de uso da água e o discurso para a Gestão Integrada dos Recursos Hídricos (GIRH), é o aumento da percepção de escassez de água, influenciando na reforma e promovendo a devolução do poder de decisão ao nível mais local possível: a bacia hidrográfica.

As decisões que envolvem a gestão das águas resultam em influência direta na vida e saúde das pessoas e de todos os ecossistemas. Por isso, o direito à água potável é direito fundamental, irrenunciável e estabelecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas em sua Resolução n. 64/292 de 28 de julho de 2010 (ONU, 2010).

Tendo em vista esta asserção, a União Europeia traçou diretrizes a serem observadas por todos Estados membros, conhecida como Diretiva Quadro da Água, estabelecida pela Lei nº 2000/60/CE da Comunidade Europeia, a qual tem como escopo estimular a gestão participativa, tendo como meta a melhoria do estado geral das massas de água. Em decorrência, diversos países da Europa têm alterado suas legislações, adequando-as à nova norma (UNIÃO EUROPEIA, 2000).

Em pesquisa complementar a esta tese, conduzida em Portugal, patrocinada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), realizada por meio de entrevista com servidores da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), observação de reunião, leitura do relatório de avaliação da participação pública da região hidrográfica do Tejo e Oeste (APA, 2016a; APA, 2016b), e entrevista com população da subbacia do rio Jamor (YOUNG; SERDOURA; CRUZ, 2018), buscou-se entender à forma de inserção da participação pública naquele país. Como resultado constatou-se que a participação e o acesso à informação ainda são restritos e em determinados momentos, sendo os documentos disponibilizados integralmente somente após finalizado o processo de elaboração e a particpação social permitida somente no período de consulta pública.

No projeto de revitalização do rio Jamor, embora não tenha uma participação pública efetiva, pode ser considerado pioneiro por realizar o trabalho conjunto entre três Câmaras Municipais, considerando o âmbito da bacia hidrográfica para o planejamento.

Embora a APA considere que a participação de todos os interessados ocorra na fase de consulta pública, promovida durante a elaboração/revisão dos PGRH - quando é garantida a disponibilização de alguns documentos provisórios, envio de contributos e presença nas sessões públicas de consulta-, as reuniões do Conselho de Região Hidrográfica, onde as decisões são discutidas, não são públicas.

Entretanto, a compatibilização do uso do solo é alcançada mediante diretriz legal que obriga a adequação do plano diretor municipal com os planos de água (YOUNG; SERDOURA, 2019, no prélo). Esse diagnóstico evidencia o despreparo da sociedade portuguesa para a participação pública e pouca vontade política para alterar esse cenário.

Assunto também polêmico dentro da gestão das águas é o compartilhamento do recurso entre países. Há necessidade de sistema de gestão efetivo, o qual consiga gerir os conflitos de forma satisfatória. Para isto, muitos países vêm adotando as formas participativas em organismos de bacia que atuem como parlamento das águas, em que as responsabilidades são compartilhadas entre governo e sociedade.

Quanto às águas transfronteiriças, Cahlman (2008) coloca que:

Bacias que incluem fronteiras políticas de dois ou mais países cobrem 45,3% da superfície da Terra, abrigam cerca de 40% da população mundial e representam aproximadamente 60% da vazão fluvial global. E o número está crescendo: em 1978, as Nações Unidas listaram 214 bacias compartilhadas [...] (CAHLMAN, 2008, p. 32).

A autora cita que, em 2003, de acordo com o United Nations Environment Programme (UNEP), existiam 263 bacias compartilhadas no mundo. E continua:

É importante observar que os modelos de gestão da água devem ser apropriados às condições ambientais, políticas e culturais da região, não devendo restringir-se à busca de maximização do valor econômico da água, especialmente em sociedades desiguais, com grandes segmentos de pobreza. Devem, antes, resultar de uma construção contínua e participativa (CAHLMAN, 2008, p. 32).

De acordo com Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL, 1998), a aplicação destas políticas não é uniforme em todos os países, mas é generalizada e constitui mudança na tendência da administração dos recursos hídricos.

Os governos estão buscando mudanças e têm esperanças de superarem as situações críticas, encontrando desafios em razão da carência de recursos financeiros e dificuldade na aquisição e manutenção de pessoal capacitado no setor público, bem como problemas educacionais e de serviços. Assim, o consenso da maioria dos países é sinalizar para uma visão holística,10 não admitindo seja a gestão das águas isolada da gestão ambiental (AGUAS PÚBLICAS DO ALENTEJO, ND).

A orientação é elucidada na Diretiva 2000/60/CE – Diretiva Quadro da Água, determinada pelo Parlamento Europeu e Conselho da União Europeia, que, em sua consideração número 53, diz: “Deve-se garantir a plena execução e aplicação da legislação ambiental sobre proteção das águas [...]” (UNIÃO EUROPEIA, 2000).

10 AGUAS PÚBLICAS DO ALENTEJO. Pelo Princípio n°1 da Conferência de Dublin: “A água é um recurso

finito e vulnerável, essencial para a manutenção da vida, do desenvolvimento e do meio ambiente; partindo-se do princípio que a água sustenta a vida, a gestão dos recursos hídricos requer uma abordagem holística, integrando o desenvolvimento econômico e social com a proteção dos ecossistemas naturais. A sua gestão efetiva integra o uso do solo com os usos da água no âmbito da bacia de drenagem ou do aquífero subterrâneo”. Fonte: Relatório da Conferência de Dublin, 1992. Disponível em: <http://www.agda.pt/declaracao-de- dublin.html>. Acesso em: 18 jun. 2017.