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masculino vs feminino/ natureza vs cultura: o género como estrutura simbólica universal

enquadramento teórico

Capítulo 2 Design Studies

E, mais à frente:

3.2 estudos sobre as mulheres, estudos de género e estudos feministas 1 uma questão de terminologia?

3.3.3 o conceito de género 1 sexo biológico e género

3.3.3.2 masculino vs feminino/ natureza vs cultura: o género como estrutura simbólica universal

Como ficou dito atrás, parte das divergências e disparidades teóricas que atravessam o movimento feminista desenrolam-se em torno da questão da assimetria sexual. As feministas divergem bastante no que respeita ao facto de a subordinação e exploração da mulher pelo homem constituir, ou não, um fenómeno pan-histórico, bem como na explicação das possíveis causas dessa subordinação. A análise antropológica, por exemplo, contempla o estudo do género segundo duas perspectivas distintas (se bem

que não mutuamente exclusivas): como construção simbólica e como relação social.91

87

Abbott e Wallace, op.cit., p.8.

88 Chris Weedon, op.cit., pp.72-74.

89

L. Segal, op.cit., p.42.

90 O Segundo Sexo, ed.cit., vol.2, p.13.

91

Como explicar que, por um lado, as categorias “homem” e “mulher” configurem uma variedade infinita de interpretações culturais diferentes, e que, por outro, o estatuto secundário e subalterno da mulher permaneça aparentemente universal? Sherry Ortner colocou esta questão num artigo célebre “Is female to male as nature is to culture?” 92 A sua tese é que a subordinação feminina constitui um facto realmente universal; este, porém, não é inerente às diferenças biológicas entre os sexos, mas antes se origina e articula ao nível dos sistemas simbólicos. Ortner sugere que todas as culturas estabelecem uma diferença, uma oposição básica entre sociedade humana e mundo da Natureza, associando simbolicamente as mulheres às forças e mistérios da natureza, e os homens às realizações da cultura. Tal como cultura aspira a

controlar e dominar a natureza, assim também as mulheres, em virtude da sua “proximidade” à natureza, experimentam o controle e opressão dos homens.

A primeira e principal razão porque a mulher é vista como próxima da natureza resulta da sua fisiologia e especificidade reprodutora. Os homens recorrem a meios artificiais e culturais de criação - tecnologia, símbolos – ao passo que a criatividade das

mulheres se realiza “naturalmente” através da experiência de dar à luz. “A mulher, diz Ortner, cria de forma natural, a partir do interior do seu próprio ser.”93 Mas a função reprodutora acaba ainda por limitá-la a determinados papéis sociais, igualmente percebidos como próximos da natureza, e.g. o cuidar dos bebés e crianças pequenas, esses seres pré-sociais. Este confinamento da mulher ao círculo familiar e doméstico proporciona um novo tipo de associação que identifica os homens com os aspectos públicos (e políticos) da vida social, e as mulheres com os aspectos doméstico- privados.

Como refere H. Moore,

“Ortner pone especial empeño en resaltar que ‘en realidad’ la mujer no está más cerca ni más lejos de la naturaleza que el hombre. Su objetivo consiste, pues, en descubrir el sistema de valores culturales en virtud del cual las mujeres parecen ‘más próximas a la naturaleza’.”94

Todavia, a universalidade da proposição de Ortner implicava a necessidade de apoiar a sua tese em categorias igualmente universais. Assim, o seu par de oposições natureza/cultura e mulher/homem, que foram objecto de inúmeras críticas. Argumentou-se, por exemplo, que “natureza” e “cultura” não são categorias

denotativas, isentas de valores; elas próprias constituem construções culturais que, utilizadas embora pela análise antropológica, pertencem, não obstante, a um contexto específico (o pensamento ocidental). Segundo os especialistas, a origem desta distinção, em antropologia, dever-se-ia a Lévi-Strauss, o qual, por sua vez, a teria ido buscar a Rousseau - em especial o conceito da cultura como culminação da natureza.

95

Aliás, a própria utilização de marcos analíticos adaptados a várias culturas - como

92 [1972], in M. Rosaldo e L. Lamphere (eds.), Woman, Culture and Society, Stanford, California: Stanford University

Press, 1974, pp.67-87.

93 Citada por Moore, op.cit., p.29. O argumento pode parecer essencialista, tendo aliás sido utilizado com esse sentido

por algumas feministas radicais e eco-feministas.

94 Moore, loc.cit.

95

Ibid., p.34. Uma das particularidades do simbolismo de género mais estudadas pelos especialistas para explicar o estatuto inferior da mulher, tem sido o conceito de contaminação, ou da mulher como agente contaminante, vd. as restrições e tabus de conduta depois do parto ou durante a menstruação. Para Julia Kristeva (Powers of Horror: An

Essay on Abjection, Nova Iorque: Columbia University Press, 1982) coisas que cruzam a fronteira entre o dentro e fora

do corpo, como lágrimas, fezes, fluido menstrual, perturbam a nossa sensação de identidade e são ditas ”abjectas”. Na fronteira entre o eu e o outro, gravidez e parto permanecem eventos misteriosos que os homens temem, manifestações de uma misteriosa mãe-natureza. O tema da repugnância pelos órgãos sexuais e excretórios da mulher, era já ref erido por Beauvoir (op.cit., vol 1, pp. 242 e ss.); em contrapartida, a universalidade da divisão doméstico/público, e a associação íntima entre mulher e espaço doméstico, defendia por Ortner, foi alvo de inúmeras críticas. A própria realidade biológica da maternidade não produz uma unidade mãe/filho, absolutamente universal e imutável. Philippe Ariès (A Criança e a Vida Familiar no Antigo Regime, Lisboa: Relógio D’Água, 1988) demonstrou que a infância, tal como a entendemos actualmente, é um fenómeno recente, e a imagem tradicional da mãe organizando os seus dias no lar, em torno das crianças, não pode sequer generalizar-se a todos os períodos da história ocidental. Elisabeth Badinter (O Amor Incerto: história do amor maternal do séc. XVII ao séc. XX, Lisboa: Relógio d’Água, s.d.) mostrou a que ponto

sucedia, de facto, no estruturalismo de Levi-Strauss, muito em voga nos anos 70 - tem sido fonte de controvérsia.96 E no entanto, a análise simbólica do género constituiu um ponto de partida importante para compreender o modo como as representações de masculino e feminino resultam de uma construção social e cultural que funciona em círculo: determinados aspectos da realidade social, e.g. a situação subordinada da mulher, contribuem para que lhe seja concedido um estatuto inferior nas

representações simbólico-culturais; estas, por sua vez, contribuem para o reforço e reprodução daquela mesma realidade social que lhes deu origem.

As autoras que mantêm que a subordinação da mulher não é universal 97 tendem a

encarar o problema a partir de uma perspectiva mais sociológica, i.e., baseiam-se mais numa observação do que as mulheres e os homens fazem, e menos numa análise da valoração simbólica atribuída a homens e mulheres numa dada sociedade. Ou seja, contemplam o género sobretudo como uma relação (daí falarem de “relações de género”). Assim, a antropóloga marxista Eleanor Leacock, por exemplo, que nega o carácter universal da subordinação feminina, ao atribuir-lhe uma origem histórica precisa.

A partir de material recolhido em sociedades de caçadores-colectores, Leacock corrobora a tese de Engels de que a subordinação das mulheres, o surgimento da família enquanto unidade económica autónoma, e o desenvolvimento da propriedade privada (e do Estado) estão interligados. Se nas sociedades ditas “primitivas” existia assimetria sexual e divisão de tarefas, não existia necessariamente maior valorização de um sexo sobre o outro. De facto, em certas sociedades "pré-classistas" como por exemplo as dos índios iroqueses, analisados por Leacock, a separação da vida social em esfera "doméstica" e "pública" não tinha razão de ser. Tratando-se de

comunidades pequenas onde a produção e administração da unidade doméstica fazem parte, simultaneamente, da vida "pública", económica e política, homens e mulheres ocupavam posições de idêntico prestígio e valor. 98

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