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1.1 Memória e Identidade Social

1.1.2 Memória dos acontecimentos

O ponto de origem não é o suficiente para que a memória possa organizar as representações identitárias. É preciso ainda um eixo temporal, uma trajetória marcada por essas referências, que são os acontecimentos. Um tempo vazio de acontecimento, cuja maior ou menor densidade permite distinguir os “períodos” e as “épocas”, é um tempo vazio de lembranças. (GRIMALDI 1993, p.19)

Segundo Tiberghien (1997, p.62) , cada memória “é um museu de acontecimentos singulares aos quais está associado certo nível de evocabilidade ou de memorabilidade”. Tais acontecimentos são representados como uma rubrica/marco de uma trajetória singular ou coletiva que encontra sua lógica e sua coerência por intermédio dessa demarcação. Candau (2011, p.99) salienta que “a lembrança da experiência individual, resulta, assim, de um processo de seleção mnemônica e simbólica de certos fatos reais ou imaginários qualificados de acontecimentos – que presidem a organização cognitiva da experiência temporal”. E valora a relevância das lembranças da experiência individual asseverando que “são como átomos que compõem a identidade narrativa do sujeito e asseguram a estrutura dessa identidade”. Logo, por meio dessa fórmula genérica, pode-se dizer que os significantes da identidade pessoal estão mobilizados em função de três critérios: “eficácia memorial presumida, a natureza das interações intersubjetivas e o horizonte de espera no momento da rememoração”. (CANDAU 2011, p.99).

Além desses critérios, não se deve esquecer a questão da temporalidade que abarca duas categorias: o presente real e o tempo real, este é abstrato, indefinido, o tempo do instante, em outras palavras, “é o tempo interrompido, no sentido preciso de uma interrupção imaginária de fluxo do tempo”; aquele, tempo contínuo- constituído por heranças, por ganhos e por perdas – aglutinação de um passado que não é totalidade de um passado e de um futuro inscrito em uma perspectiva em espera. Assim, pode-se concluir que “o presente real é rico de uma memória de ação, ao passo que o tempo real encerra uma ação sem memória”. (CANDAU 2011, p.94) Ademais, a questão da temporalidade norteia nossas vidas desde o início com os marcos regulatórios: nascimento, vivacidade e declínio, tais marcos são diluídos na contemporaneidade na sociedade, influenciada pelas mídias digitais: redes sociais, cibermundo, videosfera – que potencializaram uma metamorfose radical em nossa experiência de temporalidade, que

36 conforme Chesneaux (1996, p.43), “é o momento em que invade a consciência, submetida a um tempo uniforme, indiferenciado banalizado”.

Candau (2011 ,p.93) cognomina a sociedade contemporânea de “cronófaga não porque ela devora o tempo, mas porque ela o escamoteia em suas características próprias que são a duração, o fluxo, a passagem”. Esse escamoteamento da cronologia dos fatos, das vivências impele-nos a retomar a questão da memória versus história no processo de construção e reconstrução da identidade social/cultural. Deve-se situar o coenunciador que tanto a história como a memória são representações do passado, contudo a primeira tem como foco a representação de forma exata e fidedigna; a segunda, não pretende a não ser a verossimilhança. Candau (2011, p.131) pondera se

A história objetiva esclarece da melhor forma possível aspectos do passado, a memória busca mais instaurá-lo, uma instauração imanente do ato de memorização. A história busca revelar as formas do passado, enquanto a memória as modela, um pouco como faz a tradição. A primeira tem como preocupação ordenar; a segunda é atravessada pela desordem da paixão, das emoções, dos afetos. A história pode vir a legitimar, mas a memória é fundadora. Ali onde a história se esforça em colocar o passado a distância, a memória busca fundir-se nele.

Em contrapartida, para Nora (1984:1992 apud CANDAU 2011, p.131) a memória é

A vida, levada pelos grupos vivos, em permanente evolução, múltipla e desmultiplicada, “aberta à dialética da lembrança e da amnésia, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível a longas latências e súbitas revitalizações”. Afetiva e mágica, enraizada no concreto, no gesto, na imagem e no objeto, a memória “compõe-se dos detalhes que a confortam: nutre-se de lembranças vagas, globais e flutuantes, particulares e simbólicas, sensíveis a todas as formas de transmissão, censura ou projeções”. Ela pode, portanto, integrar- se nas estratégias identitárias. A história, ao contrário, “vincula-se às continuidades temporais, às evoluções e à relação entre as coisas”. Ela pertence a todos e a ninguém e tem vocação ao universal. É uma operação intelectual e laicizante que leva à análise, ao discurso crítico, à explicação de causas e consequências. A história é sempre prosaica e, enquanto “a memória instala a lembrança do sagrado, a história busca distanciar-se do mesmo”.

Agrega-se o fato de que não somente a memória, em determinados aspectos, empresta alguns traços da história, como também o inverso é verídico, uma vez que ambas podem recompor o passado, tendo como base fragmentos escolhidos, tornar-se, segundo Candau (2011, p.132), “um jogo, objeto de embates e serve de estratégias militantes e identitárias”. Enfatizo que tais jogos, embates não recebem sentido do discurso, porém é inteiramente construído pelo discurso, o qual é permeado por relações de poder, por tensões que fomentam, no caso das memórias de acontecimentos do povo brasileiro, o simulacro de naturalização, de banalização das relações raciais particularmente no espaço midiático que, segundo Ramos (2002, p.08)

37 desempenha um papel fulcral na produção e manutenção do racismo e chama atenção de nosso coenunciador ao fato de que “ por meio da mídia de massas as representações raciais são atualizadas e reificadas”. E dessa forma “coisas” circulam mais ou menos comuns a toda a sociedade e com ideias mais ou menos sensatas”. Pode-se depreender que a banalização das relações raciais impossibilita os atores sociais compreender/observar, de forma crítica e acurada, as conjunturas de forte desigualdade hierárquica que engendra, de acordo com Guimarães (2004), uma combinação de discriminação com base nos estereótipos mais irracionais juntamente com as desigualdades sociais extremas que legitimam a rubrica característica ao nosso sistema de relações raciais que favorece a invisibilidade de sua própria natureza perversa. Guimarães (2004, p.13) assevera que “a discriminação em nosso país vem sempre acompanhada pela arbitrariedade e pela violência aos mais elementares direitos de cidadania”.

Tendo ciência desse postulado, pretende-se abordar, nos próximos subintes, por um viés histórico e antropológico, as relações raciais no Brasil, já que o elemento histórico e político é essencialmente positivo, se for apresentado por meio de um viés de positivação dos valores imputados de forma pejorativa aos negros. Pode-se exemplificar, neste contexto, com Lei 10.639/2003 que ao inserir no currículo oficial da rede e ensino a obrigatoriedade da temática: História e Cultura Afro-brasileira e africana, nos campos do saber: Educação Artística, Literatura e História do Brasil, retomando, assim, a discussão do papel do afro-brasileiro na formação da sociedade por viés valorativo e não depreciativo.

Por outro lado, se a discussão do papel do afro-brasileiro for tomada como um elemento exógeno/exótico, de acordo com Cardoso da Silva (2006), esconde as razões políticas do seu processo de significação com o propósito de apagar os sinais diacríticos da cultura negra: língua, território, cultura, impossibilitando a constituição de teias de significado e pertencimento, visto que para que haja qualquer laço pertencimento entre os grupos e mediações simbólicas, é preciso, segundo Certeau (1995, p.141), que as práticas sociais tenham significado para que aqueles que as realiza”.

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