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Primeira Geração de Intelectuais: Discutindo questões raciais na sociedade

1.2. Relações raciais no Brasil

1.2.4 Política de Imigração (1890-1930): Negociando libertos, imigrantes e patrões

1.2.4.2 Primeira Geração de Intelectuais: Discutindo questões raciais na sociedade

A ideia de miscigenação como um aspecto positivo das relações raciais brasileiras foi plenamente desenvolvida por Gilberto Freyre anos de 1930 e parte dessa perspectiva foi defendida pelos brasilianistas dos Estados Unidos inclusive Donald Pierson, Marvin Harris, Charles Wagley e Carl Degler, até os anos de 1960, e, no caso de Degler, até 1972). ( TELLES 2003, p.19)

Gilberto Freire (1900 – 1987) declarou, de forma expressa, ser um seguidor da vertente teórica de Franz Boas, com o qual teve aulas na Universidade de Columbia. Observar-se que, no prefácio da primeira edição de sua obra intitulada “Casa Grande & Senzala” (1993), Freyre

64 (1992, pp.52/53) assevera que a distinção conceitual boasiana entre a raça e cultura está relacionado “aos efeitos de relações puramente genéticas e os de influência sociais, de herança cultural e do meio”. Tal orientação seria a diretriz adotada por Freyre em seu ensaio. Em contrapartida, de acordo com Hofbauer (2006, p.245)

A obra do pensador revela, porém, que não conseguia (ou não queria) ser fiel à sua “promessa epistemológica”. Mais de uma vez Freyre (IB. 1992, p.109, 189, 253) recorre a conceitos como “raça chamadas superiores” e “raças chamadas inferiores”, ou ainda, “raças atrasadas”. Em Sobrados e Mucambos (1936), este autor apresenta inclusive uma definição de raça que não faz jus às ideias de seu professor em Columbia, seja por falta de precisão científica, seja por não ter se convencido das palavras de Boas a respeito de raça.

E complementa que

Freyre (1951, [1936], III, p.1080, 1081) afirma – não sem antes rechaçar explicitamente qualquer noção de determinismo (étnico, geográfico, econômico) –

que a raça, o meio físico e as técnicas de produção devem ser entendidos como “forças que condicionam o desenvolvimento humano, sem o determinarem de modo

rígido e uniforme. E adianta: “A raça dará as predisposições; condicionará as especializações de cultura humana. Mas essas especializações desenvolve-as o ambiente total - o ambiente social mais do que o puramente físico – peculiar à região ou à classe a que pertença o indivíduo” (grifo do autor). Não foi bem essa a mensagem teórica de Boas, que insistia na insignificância dos traços hereditários diante das “imposições culturais”.

Os termos, disseminados em toda a obra de Freyre, como “culturas adiantadas”, “povos atrasados” demonstra-nos que o autor transferia para a esfera da cultura a concepção hierárquica do mundo, fato considerado prosaico no discurso racial e no evolucionista do século XIX. Conforme Hofbauer (2006, p.246), Freyre “é mais uma vez impreciso: não explicita quais os critérios que fundamentavam a sua distinção classificatória entre culturas mais ou menos adiantadas e culturas mais ou menos atrasadas”. Contudo, em sua obra não deixa suscitar dúvidas de que o sistema de taxionomia hierarquizada era guiada pela ideia clássica do progresso – considerado como um fenômeno neutro/imparcial, desvinculado de contextos sócio-históricos e valores culturais peculiares.

Retomando a obra Casa grande & Senzala a qual visa explicitar a formação do povo brasileiro por meio de um gênero literário, repleto de ponderações pessoais e de frases de efeitos em relação a uma pesquisa, alicerçada em uma metodologia científica com o intuito de elaborar uma explicação coerente por meio de pressupostos teóricos, no momento, de análise dados empíricos. Tal inferência pode ser corroborada pelo de fato de que a obra torna-se grandiosa pelas qualidades literárias em detrimento da coerência na argumentação e conforme Maio (1997, pp.90;222/223) “ já nos anos 1950, autores como Costa Pinto e Guerreiros Ramos

65 consideravam a obra de Freyre “impressionista”, “pitoresca” e “anedótica”, e Pierson, no final dos anos de 1940, tinha chamado a atenção para diversas “generalizações” a respeito da sociedade brasileira devida à falta de rigor científico das análises no livro Casa grande & Senzala”.

Pontua-se que toda a análise da obra gira em torno do engenho o qual é concebido como um sistema econômico, político e social, em outras palavras, como diz Hofbauer (2006, p.247), “como uma célula indivisível e força integradora da sociedade brasileira”. E nessa célula, as relações não seriam pautadas em uma assimetria, uma vez que o caráter cristocêntrico dos portugueses, de acordo com Freyre (1961, p.73), “seria responsável pela ausência do sentimento ou da consciência da superioridade da raça”. Desta maneira, os pilares da instituições: igreja católica e da família patriarcal do engenho possibilitaram para que as relações entre as três raças apresentassem uma convivência harmoniosa. Segundo Hofbauer (2006, p.248), esse convívio desenhado por Gilberto Freyre “como uma espécie de projeto nação, no qual todas as culturas dão o “melhor de si”. E salienta que dessa forma Gilberto Freyre “destaca a contribuição do tabaco e das práticas higiênicas dos índios, cita as artes culinárias e a extroversão e vivacidade dos negros, enquanto a construção da economia e dos valores religiosos é atribuída a influência dos portugueses”.

Por meio desse percurso, pode-se depreender que Freyre não seguiu à risca a perspectiva teórica proposta por Franz Boas, visto que não abandonou a hierarquização racial e cultural para distinguir, de forma clara, entre âmbito biológico e o âmbito simbólico, por outro lado, a perspectiva boasiana possibilitou a Gilberto Freyre criar uma nova imagem que, segundo Hofbauer (IBIDEM, pp.249/250), constitui “ uma espécie de mito de origem de uma nova nação nos trópicos” e ressalta que “em Casa grande & Senzala, constrói os alicerces da ideia de que existe, de fato, uma “cultura brasileira”, produto de um amalgamento de diferentes ”raças/culturas”, que constituiria a essência de uma nova nação”

Outro antropólogo de destaque nessa discussão foi Arthur Ramos (1903-1949), cujo objetivo é sustentar que, no Brasil, “a mentalidade coletiva não está ainda preparada para compreender a verdadeira noção de causalidade”, visto que a mentalidade coletiva está impregnada “de elementos místicos pré-logicos” que, em sua grande parte, é oriundo de práticas mágicas. (RAMOS 1998, p.297) No entanto, ressalta que conceitos como pensamento pré- lógico referem-se ao âmbito tanto da sociologia quanto da psicologia e não possuem necessariamente relação como questões antropológico-raciais. Ramos (1998) vai buscar na psicanálise o método para elucidar e compreender a psique coletiva do brasileiro, o que, de

66 acordo com ele seria o passo imprescindível para superar os atrasados observados, ao pontuar que

É preciso conhecer essas modalidades do pensamento “primitivo”, para corrigi-lo, elevando-o a etapas mais adiantadas, o que só será conseguido por uma revolução educacional que aja em profundidade, uma revolução “vertical” e “intersticial” que desça aos degraus remotos do inconsciente coletivo e solte as amarras pré-lógicas a eu se acha acorrentado (RAMOS 1998, p.23).

De acordo com Hofbauer (2006, p.254), Ramos reconhece que “grande parte da população brasileira é dominada por um modo de pensar e de se relacionar com a realidade que se diferencia do modelo ocidental europeu”. E complementa que Ramos “não tem dúvida de que a verdadeira cultura, concebida como uma espécie de força civilizatória intrínseca à humanidade, conquistará também este pais”, já que Ramos (1998, p.296) postula que “só o trabalho lento da verdadeira cultura – cultura que destrua a ilusão mágica de nossa vida emocional – conseguirá a ascensão as etapas mais adiantadas, com a substituição dos elementos pré-lógicos em elementos mais racionais”.

É relevante ponderar que em sua obra cognominada de “Introdução à antropologia brasileira”, Ramos (1947, p.09) chama-nos a atenção ao fato de que a ideia de raça como dado biológico não está desvinculado do aspecto sócio-histórico, visto que assevera que a noção de raça” vem intimamente ligada a outras características não-hereditárias, ou sejam, linguísticas e culturais, para os fins de uma classificação dos grupos humanos”. E enfatiza “se substituirmos na obra de Nina Rodrigues, os termos biológicos de raça e mestiçagem pelas noções de cultura e aculturação, explica, as suas concepções adquirirão completa e perfeita atualidade”. Hofbauer (2006, pp.255/256) frisa que “a concepção de aculturação defendida pelo autor procura superar “determinismos biológicos”, mas continua ainda permeada e orientada pela ideia de imposição das forças civilizatórias”.

Ramos (1979, p.245), por meio de reflexões e definições de Herskovits, concebe três fenômenos de aculturação possível:

(a) aceitação que leva à assimilação unilateral dos padrões culturais de uma nova cultura;

(b) a adaptação que faz com que ambas as culturas, o original e a estranha, combinem- se intimamente: num mosaico cultural, num todo harmônico, com reconciliação de atitudes em conflito e

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(c) reação que se manifesta em “movimentos contra aculturativos”, cujo origem pode estar na opressão ou em resultados desconhecidos da aceitação dos traços culturais estranhos.

Segundo Ramos (1942, p.41), no Brasil, ocorre o predomínio da adaptação, o qual Ramos denomina sincretismo nas relações entre brancos e negros enquanto nos Estados Unidos é marcada pelo fenômeno da aceitação. E faz questão de enfatizar que “esse processo não trará como consequência biológica a arianização”. E ressalta que o tipo físico português apresenta diversas influências como o componente negro provindo dos mouros, logo, a própria cultura dos portugueses seriam caracterizadas, em virtude do contato com os vários povos como uma cultura híbrida que, segundo Ramos (1942, p.124), “incluiria influências mediterrâneas e africanas”, isto demonstraria uma “atitude liberal do Portugueses em faces dos povos de cor”. (RAMOS 1942, p.57).

Em um trabalho recente, Maria José dos Campos (2004, pp.203/205) destaca a

relevância de Ramos para a fundamentação do ideário da democracia racial, visto que “atribuiu o tratamento diferenciado das raças no Brasil à continuação do velho sistema

colonizador dos portugueses que teria possibilitado a mescla/mistura tanto no plano físico como no plano cultural e, portanto, conduzido à criação de uma nova cultura no Novo Mundo”. Hofbauer (2006, p.257) complementa que ao

Descrever o Brasil como uma sociedade sem grande preconceitos de classe e de casta e com ausência de preconceitos de raça, Ramos usaria o conceito “democracia racial” (isto é, antes de Gilberto Freyre), no fundo, para enaltecer e delimitar a experiência brasileira das formas de discriminação racial dos Estados Unidos e do “racismo alemão.

Para Ramos (1942, p.305), “não há barreiras de raça e de casta no Brasil” e também propugna que a inexistência de códigos negros, proibições de casamentos inter-raciais e de leis segregacionistas no Brasil fizera com que “a linha de cor [fosse] atenuada, quase inexistente”. (RAMOS 1942, p.184). Deve-se pontuar que Ramos participou de vários congressos afro- brasileiros (1934, 1937) e também assinou juntamente com outros cientistas: Freyre e Roquette- Pinto um manifesto contra o preconceito racial (1935). Tal documento alertava para o fato de que, de acordo com Skidmore (1989, p.225), “a transplantação de ideias racistas e, sobretudo, dos seus corolários políticos e sociais” formaria um risco em um país como o Brasil, “cuja formação étnica é acentuadamente heterogênea”. Segundo Hofbauer (2006, p.258)

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Temia-se que tais “perversões de ideias científicas” criassem no Brasil “perigos imprevisíveis, comprometendo a coesão nacional e ameaçando o futuro de nossa pátria”. É interessante notar que o combate às concepções raciais essencializadas, que nunca predominaram no país, ganharia força em um discurso que se propunha a vigiar a suposta harmonia nacional

Em 1939, o norte americano Donald Pierson assumiu o cargo de professor e coordenador do curso de pós-graduação da Escola Livre de Sociologia e Política em São Paulo e foi um dos primeiros cientistas sociais a estudar, de forma pormenorizada, a circunstância que se denominava de “situação racial” no Brasil, uma vez que a situação racial no Brasil era bastante díspar de outros países como Índia e Estados Unidos. Em suas reflexões, alicerçadas em dois anos de pesquisa na Bahia (1935–1937), o autor, ao analisar as relações raciais no Brasil, teve como base as relações raciais nos Estados Unidos. Por conseguinte, Pierson (1971 1942, pp.365/369) compreende que, apesar de que em todas as esferas sociais os “traços físicos caucasianos” desfrutem o prestígio, a sociedade do Estado baiano não era de casta, porque “os pretos, os mestiços e os brancos não constituem grupos ocupacionais endógamos”.

Pierson (IBIDEM, p.368) observa um grande número de termos populares “que a primeira vista parecem designar as diversas combinações raciais da população”. O autor depreende que esses termos não correspondem somente à aparência física do indivíduo, mas também a sua posição social, além disso, Pierson (IBIDEM) constata que os termos podem flutuar/variar tendo como parâmetro a pessoa que o emprega, o contexto social, o status da pessoa e relação que se estabelece entre dominado e dominador.

Pierson (IBIDEM) enfatiza que diferentemente dos Estados Unidos a “ascensão social de pessoas de cor” está atrelado a fatores como: competência pessoal, relações com família de prestígio e ao fenômeno do “apadrinhamento”. Dessa forma, Pierson (IBIDEM, pp. 182/188) assevera que o processo de ascensão social de pessoas de cor como um processo essencialmente individual e não grupal e detecta “em expressões como ‘limpar’ ou ‘melhorar a raça’, uma postura arraigada de branqueamento”. Além disso, apresenta-nos a valoração negativa do lexema negro e, por outro lado, percebe que o termo moreno como uma categoria positiva que aglutinava conotações de afeição e até de desejo sexual. Deve-se ressaltar que outros pesquisadores americanos como Hutchinson, Wagley, Azevedo e Degler chegaram à mesma conclusão de Pierson a respeito do termo moreno. E, por fim, por intermédio dos ditados populares tais como “ negro rico é um branco e um branco pobre é um negro” impeliram a Pierson (IBIDEM, p. 349) a concluir que “, no Brasil, “impera uma relativa falta de consciência de raça” e pondera que a situação racial baiana era “em contraste com tal situação ( Estados Unidos), as relações entre as raças têm sido íntimas e cordiais”, em virtude de que “ a ordem

69 moral dos engenhos baianos foi organizada, em grande parte numa base familiar e pessoal, continuou sem modificações de importância até a época atual” (PIERSON IBIDEM, p.357)

Hofbauer (2006, p.260) chama-nos a atenção ao fato de que Pierson tinha aquiescência de que os discursos raciais no Brasil apresentavam aspectos do fenômeno de branqueamento, no entanto, “Pierson ainda acreditava firmemente no desaparecimento biológico dos índios e dos negros no Brasil”. E argumenta que

Baseando-se em pesquisas que revelavam índices de fertilidade maiores entre os brancos e índices de mortalidade maiores entre os negros, ele descrevia o branqueamento do país como inevitável, não obstante o Brasil possuísse uma população negra mais numerosa que a dos Estados Unidos”.

Tal inferência e corroborada com o seguinte excerto de Pierson (1971, p.362)

Embora fossem provavelmente importados mais africanos para o Brasil que para os Estados Unidos ou qualquer outra região do Novo Mundo, eles e seus descendentes, como unidade racial, estão gradual, mais inevitavelmente, desaparecendo, tal como os ameríndios desta área antes deles, biologicamente absorvidos pela população predominantemente europeia. Os mestiços mais claros estão absorvendo os pretos e estão, por sua vez, sendo absorvidos de ascendência predominantemente europeia.

Esse excerto sublinha a intensidade de que a ideologia do branqueamento exerceu no início dos anos de 1940, mesmo sobre pesquisadores que estavam acostumados a investigar concepções primordialistas do Outro e estavam focados em distinguir raça e cultura. E, assim, pode-se depreender, de acordo com Telles (2003, p.20) que

Freyre e seus seguidores acreditavam que a desigualdade racial existente era um produto tanto da escravidão dos negros quanto de sua adesão a valores culturais tradicionais, prevendo o seu desaparecimento em pouco tempo. Para eles, as diferenças raciais eram fluidas e condicionadas pela classe social. Por outro lado, a discriminação era moderada e praticamente irrelevante. Especificamente, Harris concluiu que a discriminação por classe, e não por raça, determinava a hierarquia das relações raciais no Brasil, embora preconceitos raciais fossem exteriorizados com frequência.

Dando continuidade a essa linha de raciocínio, a primeira geração, segundo Telles (2003), enfatizou a sociabilidade e as relações raciais entre os indivíduos a qual denominamos de relações horizontais. Telles (2003, p.20) pondera que

Os acadêmicos norte-americanos, em particular, tendiam a seguir a ênfase de Gilberto Freyre nas relações horizontais, supostamente porque acreditavam que essas constituíam indicadores apropriados da adaptabilidade ou integração dos grupos minoritários na sociedade. Essa era a tradição dominante na sociologia norte- americana.

70 Pode-se depreender que esses pesquisadores supunham que a integração conduziria a uma assimilação onde os grupos dominantes e subordinados com o transcorrer do tempo, conforme Telles (2003, pp.20/21), “tornar-se-iam similares e as diferenças estruturais desapareceriam”, logo, acreditavam que as relações horizontais no Brasil eram harmoniosas e inclusivas em detrimento às dos Estados Unidos e, sendo assim, “previam um futuro otimista aos descendentes de escravos no Brasil. Esses acadêmicos acreditavam que qualquer hierarquia racial, conflito ou exploração no Brasil eram temporárias e não caracterizavam um problema importante”. No próximo subitem, abordar-se-á a segunda geração de intelectuais que discute a questão racial no país.

1.2.4.3 Segunda Geração de Intelectuais: Discutindo questões raciais na