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O casamento entre escravos em Belém do século

No documento História e Historiografia (páginas 37-41)

Ruan Souza dos Santos1

José Maia Bezerra Neto2

Introdução

No início do século XIX, a chegada dos africanos nas capitanias mudou em todos os aspectos o cenário da escravidão. No Grão-Pará, não foi diferente, já quepolíticas foram adotadas para incentivar o tráfico nesta capitania e promover a escravidão – como demonstra um decreto do início do século XIX3. Barbará Palha (2011) descre-

ve como os escravos que chegavam em Belém, foram testemunhas e atores em diversos processos políticos, econômicos e sociais.

Os escravos que chegaram a Belém e permaneceram nesta cidade, entre os anos de 1810 e 1850, visto que a cidade era também centro distribuidor da mão de obra escrava, fo- ram testemunhas e atores em diversos processos políticos,

1 Graduando no curso de História na Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: ruan. ufpa@hotmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2473659811568481.

2 Professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia (UFPA), pesquisador do CNPq.

3 PORTUGAL. [Decreto isentando de direitos os escravos transportados de Angola para o Pará]. Lisboa, Portugal: s.n., 1798?]. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/ div_obrasraras/or89_5_6n43.jpg. Acesso em: 7 dez. 2019.

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econômicos e sociais. Viram a cidade se agitar e florescer economicamente, a partir de 1810, com a importação e exportação de diversos produtos nacionais e estrangeiros. Mantiveram-se na expectativa de serem libertos por uma lei da abolição que não veio com a independência. Partici- param diretamente no movimento social da Cabanagem, entre 1835 e 1840, levantando como bandeira a liberdade, ainda que restrita, que também não veio. E ainda estiveram envolvidos pelas malhas do tráfico ilegal, assim caracteri- zado a partir das leis de 1815 e 1831, que o tornou parcial ou totalmente proibido (PALHA, 2011, p. 18).

Nesse cenário, estudos historiográficos foram desenvolvidos sobre o processo de escravidão no Grão-Pará, destinados a investigar o con- tingente de cativos africanos que chegavam em Belém, quantitativo que representava 35% da população na segunda metade do século XVIII (BEZERRA NETO, 2011). Segundo Vicente Salles (2015, p. 26), “Não se pode considerar desprezível a contribuição cultural africana na Ama- zônia. Essa contribuição se manifesta nos folguedos populares, na culi- nária, no vocabulário, enfim nos vários aspectos do folclore regional”.

A partir do levantamento e da leitura feita em trabalhos de pesqui- sadores como Palha (2011), Salles (2015) e Bezerra Neto (2011) e do amplo acervo de fontes cível, eclesiásticas, nota-se que estudar o pro- cesso de escravidão na sociedade paraense é necessário, especialmente algumas problemáticas desse processo, que podem ser estudadas com mais exaustão, partindo da percepção dos escravos como atores sociais.

É o caso dos matrimônios entre cativos negros, em uma perspec- tiva da subjetividade dos desejos – independente do poder senhorial e das normas eclesiásticas que foram oficializadas na segunda metade do século XIX (O APÓSTOLO, 1885), mas que já tinham um papel importante na decisão dos senhores ao permitir o casamento entre es- cravos (LOPES, 2013). A pesquisa parte dessa inquietação, com um recorte de 1800 a 1830 para estudar os escravos negros como perso- nagens históricos e que contraíram matrimônio na capital amazônica.

Sensibilidades na Amazônia Negra: O casamento entre escravos em Belém do século XIX

Para fazer a abordagem dessa temática é importante lembrar que o casamento na primeira metade do oitocentos constituía uma concepção de amparo do futuro da mulher, que precisava de um homem para controlar sua vida, tanto doméstica quanto educacional, como apontou Sousa (2011) em um estudo sobre as educandas em Belém, no século XIX.

O dote foi uma das medidas regulamentadas para preve- nir o futuro das meninas que tinham de sair ao completar 18 anos. Arranjar um marido e poder constituir uma fa- mília parecia ser o melhor caminho, pois a preocupação maior se encontrava na necessidade de arranjar alguém para ampará-las. Dessa forma, o casamento, dentro da concepção da época, representava a possibilidade de um futuro seguro (SOUSA, 2011, p. 230).

Na historiografia brasileira, as narrativas sobre casamentos entre escravos negros ganharam força a partir da década de 1990, com tra- balhos que foram além dos cenários obscuros que existem acerca da senzala e ao quadro de “promiscuidade”, imaginário que perdurou/ perdura por um longo período na sociedade, conforme aponta Sle- nes (1999) ao estudar a formação da família escrava no sudeste bra- sileiro no século XIX. “No Brasil, as representações da vida íntima na senzala permaneceram quase constantes, desde antes da abolição até a década de 1970. Constavam-se, em todo o período, sombrias cenas de promiscuidade sexual, uniões conjugais instáveis, filhos crescen- do sem a presença paterna” (SLENES, 1999, p. 29).

Por isso a necessidade de falar de casamento como um contrato não só como fomentador de alianças econômicas entre a elite branca monopolistas paraenses, mas também meio de trocas entre escravos que possuíam seus próprios desejos e identidades culturais. Por esse motivo, é possível constatar que o movimento nos cativeiros era duplo, primeiramente pelo fato dos laços de solidariedade permitirem aos es- cravos de se organizarem, estabelecendo configurações de parentescos

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com seus conterrâneos livre do controle senhoril. Por outro lado, os senhores semeavam a permissividade para evitar qualquer revolta or- ganizada dos cativos que se sentissem proibidos de manterem relações de vida na senzala e exercerem um poder de controle sem precisar da força física, segundo o que aponta Lopes (2013).

Um escravo com mulher e filho dificilmente se envolve- riam em desavenças, promoveriam ou compactuariam com rebeliões dentro do cativeiro. Impossível não pensar que os vastos campos abertos em que os escravos traba- lhavam, muitas vezes, até mesmo a cavalo não lhes fosse em demasia sedutor e propício a fugas. O casamento es- cravo significava, sem dúvida, para os senhores um ganho aceitável. A recompensa poderia vir, muitas vezes, em de- dicação e bons serviços prestados. Por outro lado, vere- mos que apesar de todas essas vantagens a resistência dos senhores em levar seus escravos para se casarem na igreja devia-se a elaboração de leis eclesiásticas contra a separa- ção de casais escravos e de seus filhos (LOPES, 2013, p. 2).

Este trabalho tem como objetivo principal observar o mundo sen- sorial não só pelo lado da fisiologia, mas também pela orientação cultural envolvida nas relações amorosas e matrimoniais estabele- cidas entre cativos, contribuindo para a desmistificação da senzala como um espaço de promiscuidade e meio social apenas de ganhos econômicos pelos senhores, isto é, pensar os membros da família es- crava como sujeitos históricos que possuíram, também, como forma de luta contra o sistema escravista – amor e sentidos.

O foco da discussão não é a igreja e o senhor de escravos como os agentes de controle dos desejos dos cativos em relação à formação de laços matrimoniais, mas verificar a perspectiva do desejo e sentidos nos casamentos dos cativos a partir de uma análise histórico antro- pológica. Mesmo que a família escrava tenha sido uma maneira dos senhores controlarem o medo dos cativos de perderem seus laços de parentesco, Slenes (1999) nos lembra que isto não foi o suficiente para tornar os escravos emocionalmente privados de desejar uma re- lação, através apenas dos sentimentos, e que fosse além da concepção do casamento escravo apenas como forma de resistência às medidas

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advindas da casa grande, medidas essas que acabavam por desmem- brar grandes núcleos familiares de cativos. Embora o movimento na senzala seja duplo em relação aos tipos de formação de laços de pa- rentesco, é preciso mostrar essa composição do cativeiro em sua sin- gularidade, por meio dos sentidos e da organização dos cativos, em uma abordagem ainda pouco explorada pela História da Escravidão.

O percurso metodológico para a realização deste trabalho inclui a pesquisa bibliográfica de autores que perpassam pela temática; lei- tura de inventários existentes no Centro de Memória da Amazônia (CMA), que são documentos necessários para identificar alguns dos casamentos e registros de matrimônio da paróquia Santa Anna, para analisar a origem de alguns escravos e fazer um cruzamento de fon- tes, tendo em vista que é possível encontrar informações que não podem ser identificadas em inventários. Esta pesquisa faz parte de um levantamento maior, ainda em andamento, por isso os resultados apresentados ainda são preliminares, mas permitiram responder a problemática levantada: a categoria comum de subalternos foi sufi- ciente para os cativos se casarem na Belém do século XIX?

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