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Os quatro desejos

No documento História e Historiografia (páginas 61-71)

Como sabemos, os primeiros fabliaux surgiram no século XII e os últimos datam da primeira parte do século XIV. Segundo Macedo (1999), esse gênero literário tipicamente urbano, costu- 5 Nota referenciada por Duby em Idade Média, Idade dos homens: Regular Pastoralis. III, 27, PL

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meiramente, criticava, por meio de fábulas, os costumes, a moral, e por vezes a sociedade como um todo. Orbitava a persona feminina características ridículas e sorrateiras “subjacente ao arsenal de críticas ao sexo feminino residia uma profunda condenação do casamento. A instituição do matrimônio indissolúvel, criação da Igreja para a no- breza foi atacado por outros grupos sociais” (MACEDO, 1999, p. 57). Na literatura, a crítica às mulheres não se deu apenas por intermédio dos fabliaux. Macedo (1999) cita a obra Roman de la Rose como sendo pioneira nesse estilo de ataque misógino. Ele aponta ainda que esse tipo de representação feminina pode estar relacionada a uma postura de insatisfação das mulheres em relação ao casamento. “O ‘machocen- trismo’ dos contos, poemas e sátiras não poderia ser a resposta dos homens ao inconformismo feminino?” (MACEDO, 1999, p. 58).

Particularmente, acreditamos que sim.

Se alinharmos essa hipótese aos influentes conceitos de represen- tação elaborados por Roger Chartier (2002, p. 165) que concebem a representação como um “tornar presente uma ausência, mas também exibir sua própria presença enquanto imagem e, assim, construir aque- le que a olha como sujeito que olha”, podemos associar os fabliaux a um discurso que constrói uma visão da mulher e do casamento a partir de um ponto de vista masculino. Tal produção discursiva, de forma algu- ma, deve ser vista como neutra como salienta Chartier (1990, p. 17):

As percepções do social não são, de forma alguma, discur- sos neutros: produzem estratégias e práticas que tendem a

impor uma autoridade à custa de outros, por elas menos- prezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso, esta investigação sobre as representações supõe- -nas como estando sempre colocadas num campo de con-

corrências e de competições cujos desafios se enunciam em

A invenção da mulher medieval e a representação do feminino no fabliau Os quatro desejos de São Martinho Partindo das reflexões sobre representação, podemos concebê-la como uma espécie de síntese narrativa, produto de embates, fruto das tensões sociais e disputas de poder. Tem por finalidade a domi- nação, persegue o poder hegemônico. A própria existência da repre- sentação nesses moldes pode evidenciar justamente a insatisfação feminina diante das restrições que lhe eram impostas. Os ideais cris- tãos de casamento que aprisionavam as mulheres em uma espécie de eterna condição vassala; a imposição de uma união indissolúvel; as determinações de castração do corpo; a negação da sexualidade; di- ficilmente, abarcariam todos os anseios femininos. Acreditamos que estavam na contramão dos seus desejos. O próprio discurso que visa dominar o sujeito, impondo-lhe um molde de existência, gera tam- bém as condições necessárias para o sujeito resistir e subvertê-lo. E, se tornar, inclusive, o ser não desejável pela ordem discursiva.

Defendemos a hipótese que as mulheres medievais, não todas é claro, quando em contato com os dispositivos de dominação não se tornaram corpos dóceis. Pelo contrário, buscavam minar esses dis- positivos e discursos. Foi nesse cenário de disputas que os homens do medievo se utilizaram de poderosos arsenais discursivos e simbó- licos na construção de diversas personas femininas. Tanto o discurso religioso quanto o dito herético forjaram representações femininas que serviram aos interesses masculinos.

Resta-nos, por fim, uma análise pormenorizada do fabliaux Os

quatro desejos de São Martinho, sob o lume das reflexões teóricas e

históricas discutidas em nossa abordagem.

A obra inicia-se com a descrição da personagem principal. Um sim- ples camponês da região da Normandia que “tinha como amigo diário São Martinho, a quem invoca todos os dias para os trabalhos que fazia. Nunca ficou jubiloso nem triste sem chamar por São Martinho” (ANÔ- NIMA, 1995, p. 16). Essa breve descrição da persona do camponês deixa claro que esse indivíduo é um sujeito simples e extremamente religioso. Certa manhã, um evento extraordinário surpreende o camponês:

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Não desejando esquecer São Martinho, disse: — São Martinho, apresentai-vos!

E São Martinho se apresenta: — Bem sei, vilão, quanto me adoras, Pois não descansas nem laboras Sem a mim antes invocar. Quero tua fé recompensar. Põe de lado o tormento e o arado, Vai para casa sossegado,

Pois pretendo, podes saber, Quatro desejos te atender. Cada pedido, tem cuidado, Deverá ser bem formulado. Nenhum te será devolvido:

Depois de feito está perdido(ANÔNIMA, 1995, p. 16).

Após ouvir a boa nova, o camponês reverenciou o Santo e vol- tou para sua casa todo contente. Ora, ele tinha sido agraciado com quatro desejos. Tinha, sem dúvida, a sensação de que sua vida iria melhorar. Mas, ao retornar ao lar:

Agora ele vai ouvir um sermão. Sua mulher, que canta de galo da casa, diz:

— Mau dia para ti, meu camponês! É só o tempo ficar um pouco encoberto e já abandonas teu trabalho por nada? Inda falta muito para vésperas! Voltaste para engordar as bochechas? Acaso receais ter muito para plantar? De bom grado ficais sem trabalhar! É um grande desperdício pos- suir animais para a lavoura se não o fazeis trabalhar. La- butar nunca foi de vosso agrado. Agora mesmo partistes para o campo. Vosso dia terminou bem depressa! — Cala-te, irmã, e não fiques inquieta, pois agora sere- mos felizes. Acabaram-se todas as nossas preocupações e também nosso trabalho. Ficai sabendo que encontrei São Martinho e que ele me concedeu quatro pedidos. Inda não fiz nenhum; antes queria discutir a cousa contigo. Vamos fazer agora os quatro pedidos: terra, riqueza, ouro e prata! (ANÔNIMA, 1995, p. 17).

O primeiro diálogo entre o camponês e sua esposa possui ele- mentos importantes para nossa análise. A representação femini-

A invenção da mulher medieval e a representação do feminino no fabliau Os quatro desejos de São Martinho na da esposa demonstra uma personagem de viés autoritário. O autor busca evidenciar a existência de uma clara hierarquia nessa relação conjugal que, inclusive, subverte os ordenamentos sociais dominantes no período. Como salienta o fabliau, a mulher do camponês “canta de galo”. Fato que colocará o casal em uma des- ventura escatológica.

Abruptamente, a mulher do camponês muda de postura quando fica ciente dos quatro desejos que o esposo acabara de ganhar, vejamos:

Quando o ouviu, ela o beijou e logo adoçou as palavras: — Senhor, estas dizendo verdade?

— Sim, e vou te provar.

— Ai, mui doce amigo, em vós coloquei todo meu em- penho de vos amar, de vos servir. Deveis compensar-me por isso. Peço, por favor, que me cedais um dos desejos. Ficareis com os outros três para vós e terei agido bem para comigo.

Ao que ele respondeu:

— Cala-te, minha bela irmã! Não agirei assim, pois as mulheres tem pensamentos loucos. Talvez pedísseis qua- tro fuso de cânhamo, de lã ou mesmo de linho... São Mar- tinho disse-me para eu pensar bem e pedir cousas de que tenhamos precisão. Tenho receio de ceder-vos um pedi- do, pois poderíeis desejar algo que piorasse nosso caso. Não conheço vossos gostos. Se disserdes para me tomar um jumento, asno, urso, cabra ou cousa parecida, assim acontecerá e prontamente. Por essa razão não concordo. Ela porem apressou-se em responder:

— Senhor, pelas minhas duas mãos, prometo que conti- nuareis a ser um vilão. Por minha causa não tereis outra forma. Amo-vos mais que a qualquer outro homem. Ouvindo isso, ele concordou:

— Pois bem, então vos concedo o pedido, bela irmã. Por Deus, desejai algo de útil, que aproveite vos e a mim (ANÔNIMA, 1995, p. 17-18).

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Muitos dos aspectos que discutimos no decorrer do trabalho são marcantes nesse trecho. Na obra, o autor enaltece a mudança com- portamental da mulher. Rapidamente, a mulher que outrora se as- semelhava a uma tirana começa a agir de forma doce e carinhosa. Assim, o fabliau demonstra o poder da persuasão feminina, os en- cantos sedutores que os homens não são capazes de resistir. Os adje- tivos da persona de Eva começam a tomar forma nessa representação feminina. O medo da mulher é outro aspecto visível no diálogo. O camponês fala que “as mulheres tem pensamentos loucos” (ANÔNI- MA, 1995, p. 17). Motivo pelo qual se nega, a princípio, a conceder um dos pedidos à esposa. A desconfiança orbita a persona feminina. O camponês tem receio de ser transformado em uma besta, ou seja, tem receio que o desejo feminino ponha fim na sua condição pri- vilegiada de homem. O laço conjugal não foi capaz de romper com essa mentalidade de medo. Afinal, o que a mulher desejou? Algo que justificasse o temor do camponês? Vejamos:

Desejo, em nome de Deus, que fiqueis carregado de paus. Que do olho ao pé não vos reste nem rosto nem braço nem lado que não esteja plantado com paus. E que não caiam moles nem pendentes, mas que cada um tenha seu colhão. Que os paus estejam sempre tesos, como se fôsseis um homem cheio de chifres (ANÔNIMA, 1995, p. 18).

A realização do desejo feminino inicia uma série de desventu- ras na narrativa. O sagrado e o profano estão paradoxalmente en- trelaçados na obra. O elemento sagrado foi utilizado para obter a satisfação do desejo, ou seja, o sagrado foi subvertido ao ponto de saciar desejos profanos. Acreditamos que a narrativa tomou esse rumo justamente para evidenciar a existência do corpo e do dese- jo. O elemento sagrado como ferramenta para obtenção do desejo pode ser compreendido como uma resistência aos ideais ascéticos do ocidente cristão. Nesse aspecto, a obra se demonstra contrária ao status quo. Todavia, no que se refere à misoginia o fabliau rei- tera a ordem vigente. Uma vez que a mulher é um dos alvos dessa

A invenção da mulher medieval e a representação do feminino no fabliau Os quatro desejos de São Martinho literatura. O fato de a mulher ser o estopim da desgraça do casal demonstra isso. Pois bem, sigamos com o enredo do fabliau:

Quando se viu em tal situação, disse o vilão:

— Irmã, que pedido maldoso! Por que me fizeste esse mal? Preferia está morto a ter tantos paus me cobrindo o corpo. Homem algum nunca viu tantos.

— Senhor – responde ela -, bem vos disse que de nada me servia um único pau, sempre mais mole que um esfregão velho. Mas agora minha cona está rica de paus. Em qual- quer lugar onde entrardes, nunca precisareis pagar. Fiz me pedido com muita sabedoria e deveis está contente com ele. Vede que belo animal vos tornaste!

Disse o bom homem:

— que peso horrível! Agora que fizeste teu pedido, vou fazer o meu. Desejo que tenhas conas pelo corpo todo, assim como tenho paus (ANÔNIMA, 1995, p. 18-19).

A satisfação do desejo sexual foi a motivação que fez a mulher dese- jar um homem com aqueles atributos. Ela demonstrou-se infeliz com a antiga condição do marido, pois para ela “um único pau, sempre mais mole que um esfregão velho” não servia para nada. Ao contemplar a nova feição do marido ele exclamou “vede que belo animal vos tornas- te!”. Acreditamos que essa representação é fruto das mentalidades do período que corriqueiramente atribuíam às mulheres a qualidade de adúltera, traidora. Como demonstra Delumeau (2009), um dos grandes medos dos homens no ocidente medieval era ser traído por sua mulher.

Retornando à narrativa, o camponês faz o segundo pedido. Dese- jou que a esposa tivesse o corpo repleto de órgãos sexuais femininos. Todavia, ela não gostou da nova aparência e o convenceu a desfazer tudo. Assim, foi formulado o pedido: “que ela não tivesse mais cona, nem eu pau. Na mesma hora, a mulher ficou mui perplexa quando não encontrou seu próprio sexo. E o mesmo aconteceu com o bom homem” (ANÔNIMA, 1995, p. 19). Restava apenas um pedido e am- bos estavam sem os órgãos genitais. E agora, o que elas irão fazer? A mulher sugere uma solução:

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Agora – bradou -, é preciso fazer o único pedido que inda restava: que tenhais pau e que eu tenha cona. E de- pois disso seremos como éramos antes: não perderemos nada mas nada teremos. Então o bom homem fez o novo pedido. E assim, nada perdeu e nada ganhou, pois teve seu pau de volta mas desperdiçou seus quatro pedidos (ANÔNIMA, 1995, p. 19).

Notamos que há neste fabliau uma possível variação de um temor masculino antigo, presente em várias culturas ocidentais e orientais, que tem como elemento trágico a perda do falo. Aqui, não há uma “vagina dentada” que engole o símbolo da virilidade masculina, mas por outros meios a mulher despiu o homem de seus atributos viris, senão, vejamos os últimos versos da obra:

Por este fabliau podeis ver Que homem que deixa seu querer Para o da mulher dar valor

Passa vergonha e dissabor (ANÔNIMA, 1995, p. 20)

É notório que a obra reforça a importância da dominação mascu- lina. E, além disso, evidencia por meio do seu desfecho que a contem- plação do desejo feminino, inevitavelmente, gera dissabor ao homem.

Considerações finais

Defendemos a hipótese de que um robusto aparato discursivo e simbólico forjou uma aura de desconfiança em torno das mulheres. O medievo não inaugurou tal prática, mas o alimentou. A difusão des- sas narrativas nas mais diversas literaturas (nas ditas sagradas e nas consideradas profanas) é um exemplo da hegemonia desses discursos. Nas literaturas de cunho profano como os fabliaux, especialmente o que nos propomos a estudar, o feminino foi associado ao inferior, ao insano, à maldade e etc. A nosso ver, há um elo notável que uni o me- dievo, qual seja: a sua misoginia que teve no ocidente medieval sua pri- mavera. Por isso, não devemos, pois, imaginar que a parcialidade dos

A invenção da mulher medieval e a representação do feminino no fabliau Os quatro desejos de São Martinho discursos medievais analisados fosse verossimilhante àquela realida- de. Longe disso, a necessidade dos homens medievais de se afirmarem como senhores de seu tempo denuncia o temor diante do potencial feminino tão temido por eles. Muitas dessas mentalidades ainda estão vivas no tempo presente. É necessário, pois, olhos atentos.

Referências

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DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Compa- nhia das Letras, 2009.

DUBY, Georges; ARIÉS, Philipe. História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Com- panhia das Letras, 2009.

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LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Tradução: Mo- nica Stahel, Petrópoles, RJ: Vozes, 2016.

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LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Ida-

de Média. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

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A memória da África no Ensino

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