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2.3. O estado da arte do capital social

2.3.1. O contributo de Pierre Bourdieu

A ideia de capital social na obra de Bourdieu emerge de um conjunto onde gravitam outras formas de capital (Baron, Field & Schuller, 2000): o capital cultural e o capital económico. A definição de capital social por Bourdieu aparece pela primeira vez num breve texto de 1980, intitulado “Le capital social – notes provisoires”:

Le capital social est l’ensemble des ressources actuelles ou potentielles qui sont liées à la possession d’un réseau durable de relations plus ou moins institutionnalisées d’interconnaissance et d’inter-reconnaissance; ou, en d’autres termes, à l’appartenance à un groupe, comme ensemble d’agents qui ne sont pas seulement dotés de propriétés communes (…) mais sont aussi unis par des liaisons permanentes et utiles (p.2).

Neste trilho de raciocínio e concedendo especial importância à durabilidade e à densidade dos laços entre as pessoas, o sociólogo atenta que o seu valor depende do número de ligações e do volume de capital (cultural e económico) que cada uma pode representar. Deste modo, o capital social é um princípio de aquisição de recursos sociais cujo retorno depende da capacidade que o indivíduo tem de mobilizar o capital de um grupo:

(…) différents individus obtiennent un rendement très inégal d’un capital (économique ou culturel) à peu près équivalent selon le degré auquel ils peuvent mobiliser par procuration le capital d’un groupe (famille, anciens élèves d’écoles d’ « élite », club sélect, noblesse, etc.) plus ou moins constitué comme tel et plus ou moins pourvu de capital (Bourdieu, 1980, p.1).

Esta ideia de capital social é reforçada com a existência de recursos reais ou potenciais ligados a uma rede de relações mais ou menos institucionalizadas, baseadas no reconhecimento mútuo. As associações voluntárias, os sindicatos e os partidos políticos são exemplos de incorporação de capital social, que Bourdieu (1986) vê como um recurso coletivo partilhado pelos seus respetivos membros. Assim, uma rede de relações é o resultado de investimentos feitos no sentido de reproduzir relações que podem ter utilidade, a curto ou a longo prazo: relações de vizinhança, de trabalho ou mesmo de parentesco, que implicam obrigações, sentimentos de reconhecimento, de respeito, ou garantias a nível institucional. O grupo ou rede proporciona aos seus membros um capital coletivo que lhes concede um crédito (Bourdieu, 1980).

O investigador francês acredita que o capital social é sobretudo um privilégio da burguesia/ classe alta, aludindo a profissões como os médicos e os advogados, que exploram o seu capital social (feito de ligações sociais, honorabilidade e respeitabilidade) para ganhar a confiança dos seus clientes da alta sociedade, ou mesmo para construir uma carreira política. Mas, segundo Field (2008), o facto de observar que apenas as elites são detentoras de capital social - que o utilizam como estratégia para assegurar a sua posição (social) - constitui uma das vulnerabilidades da sua teoria.

Por outro lado, embora o seu contributo para o desenvolvimento do conceito seja inegável, há quem o considere um pouco datado, talvez pelo facto de parte substancial da investigação incidir sobre a alta burguesia francesa, como alerta Field (2008): a perspetiva que Bourdieu apresenta da família, subserviente à figura paterna, o pouco

espaço concedido aos atores coletivos, e a visão meramente instrumental da vida associativa (apresentada como um meio para atingir um fim) são um reflexo dos tempos e do contexto social e económico em que o sociólogo viveu e realizou o seu trabalho de pesquisa.

Ligada ao conceito de capital social no pensamento de Bourdieu encontra-se a noção de capital cultural (1984), que tem enquadramento na sua visão do funcionamento da sociedade ocidental, fundamentalmente marcada por uma distribuição desigual de poder. Bourdieu (1986) quis desenvolver uma teoria da estratificação social, firmada na distinção entre os diferentes tipos de capital, ponderando a forma como estes podem ser combinados e convertidos: “(…) the convertibility of different types of capital is the basis of strategies aimed at ensuring the reproduction of capital (and the position occupied in social space)” (p.253). Partiu igualmente do pressuposto de que o trabalho realizado pela economia tinha sido, até então, insuficiente para explicar fenómenos sociais de caráter económico, com repercussões no modo como a sociedade opera e está organizada (Siissiainen, 2000).

Em Reproduction, Bourdieu & Passeron (1990) lançam a teoria de que a reprodução cultural promove a reprodução social das relações entre classes. Dos diferentes tipos de capital a que se faz alusão ao longo do livro - cultural, linguístico, escolástico e social - ressalta o capital cultural, aplicado para esclarecer a forma como os ‘juízos’ culturais da classe dominante são apresentados como universais, tornando legítima essa posição de superioridade.

Bourdieu realizou nos anos sessenta do século passado (em 1963 e mais tarde entre 1967-68) um survey através do qual tentou explicar a variação do gosto entre os diferentes segmentos sociais:

The survey sought to determine how the cultivated disposition and cultural competence that are revealed in the nature of cultural goods consumed, and in the way they are consumed, vary according to the category of agents and the area to which they applied, from the most legitimate areas such as painting or music, to the most ‘personal’ ones such as clothing, furniture or cookery, and within the legitimate domains, according to the markets – ‘academic’ and ‘non academic’ – in which they may be placed (Bourdieu, 1984, p.5).

Através do survey, como o próprio afirma em Distinction (1984), Bourdieu conseguiu estabelecer a ligação estreita entre práticas culturais, capital educacional (mensurável pelas qualificações académicas) e as origens sociais (medidas pela profissão do pai).

Analisando as diferenças entre as práticas culturais que observou na classe alta (burguesia), na classe média e no operariado, Bourdieu (1984) afirma que os seus gostos estão marcados pelos respetivos contextos socioeconómicos e educativos. Procurou demonstrar que a aparente placidez com que se aceita a noção de gosto como inata, na verdade oculta um processo complexo no qual a educação (ou o nível instrutivo) e a posição social desempenham um papel decisivo:

Whereas the ideology of charisma regards taste in legitimate culture as a gift of nature scientific observation shows that cultural needs are the product of upbriging and education: surveys establish that all cultural practices (museum visits, concert-going, reading, etc.), and preferences in literature, painting or music, are closely linked to educational level (measured by qualifications or length of schooling) and secondarily to social origin (p. xxv).

De facto, de todos os objetos à disposição dos consumidores, nenhum os classifica mais do que as obras de arte legítimas (peças de música, pintura, bailado) que permitem a elaboração de distinções “ad inifnitum”, de acordo com a sua divisão em géneros, períodos, estilos, autores, entre outros (Bourdieu & Passeron, 1990).

Está desafiada a conceção segundo a qual “os gostos não se discutem”: pelo contrário, diz o autor, para quem o gosto está intrinsecamente ligado às noções de capital cultural, económico e social. Por oposição a uma ideia até então incontestada, o investigador sustém que o gosto cultural é o resultado de um processo educativo que ocorre primeiro na família e depois na escola. Defende que estas duas instituições são responsáveis pela aquisição de competências e gostos culturais.

Ao abordar num outro estudo a problemática do desempenho escolar de crianças de classes sociais diferentes (Bourdieu & Passeron, 1990), concluiu-se que o legado de capital cultural pela família (traduzido num investimento ao nível da educação familiar, da transmissão de valores, do acesso a produtos culturais como livros, por exemplo) favorece sobretudo o desempenho escolar das crianças de classe média e alta, já que a educação formal dada pela Escola privilegia a transferência e aquisição dessa cultura.

Sobre o pensamento de Bourdieu acerca da noção de capital social é importante reter que é indissociável de outras ideias centrais da sua obra, em especial as de capital cultural e de reprodução social baseada na desigualdade de classes. Para Bourdieu a posse de capital social é sobretudo associada aos privilegiados (às classes altas) em combinação com o capital cultural. O facto de não ter equacionado a possibilidade de outras classes e grupos sociais terem capital social como facilitador das suas relações, faz com que esta resulte numa visão parcial da realidade social e numa aceção unidirecional deste conceito. Segundo este scociólogo, apenas os mais ricos e poderosos podem ter acesso a recursos por meio das suas ligações sociais e exercer poder contra os mais vulneráveis e socialmente pior posicionados na hierarquia social.

Não obstante, o seu trabalho neste domínio de saber integra até hoje o canône da literatura sobre o conceito de capital social, motivo pelo qual a sua referência é obrigatória.