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O debate recente sobre reforma trabalhista e flexibilização

O mercado de trabalho e o padrão de regulação do trabalho no Brasil

5. O debate recente sobre reforma trabalhista e flexibilização

O governo Lula não tomou uma posição clara em relação à reforma trabalhista, deu sinalizações contraditórias, inclusive com manifestações desencontradas de importantes membros do governo sobre o tema. A discussão ganha evidência com a criação do Fórum Nacional do Trabalho (FNT), em 2003. No FNT, houve uma separação entre reforma sindical e trabalhista. A primeira foi priorizada, sendo objeto de um grande esforço e chegando a produzir um documento síntese (concretizado em uma PEC e um Projeto de Lei) sobre modelo de organização sindical, negociação coletiva e formas de solução dos conflitos. Mas, apesar do envolvimento das principais entidades sindicais de trabalhadores e empregadores, a reforma não prosperou. Os pretensos consensos ou pontos negociados no Fórum não resistiram às diversas mobilizações difusas das forças que se contrapunham à alteração da legislação sindical existente no país. Uma mobilização que juntou a estrutura sindical oficial, milhares de

sindicatos de base, parte expressiva das entidades empresariais, associações de profissionais da área do direito do trabalho e forças mais à esquerda do sindicalismo.178

Não é objeto do presente estudo fazer uma análise das conclusões do FNT, mas vale registrar duas questões. Primeiro: se o Fórum não conseguiu elaborar uma proposta crível de alteração do sistema de representação sindical e de negociação coletiva, ele possibilitou o desenvolvimento de atividades conjuntas entre as principais centrais sindicais do país, que se traduziu na tomada de posições e iniciativas conjuntas. Entre os pontos que merecem destaque está a defesa explícita da posição de não abrir mão de direitos trabalhistas nem aceitar a tese da flexibilização das relações de trabalho como solução para os problemas do mercado de trabalho brasileiro, apesar de as conclusões do Fórum Nacional não fecharem as portas para uma possível flexibilização da legislação trabalhista. Além disso, persistiram discursos públicos de importantes dirigentes que reforçam proposições flexibilizadoras, ou mesmo concordam em estabelecer alguma negociação (trade off) sobre a ampliação do poder sindical e da negociação coletiva em troca da redução da regulação vigente em lei. Como exemplo, pode-se citar a posição tímida de parte significativa do sindicalismo, de apoio ou omissão, sobre a lei das falências e a reforma da previdência social. Mesmo com as contradições, houve uma manifestação contra a retirada de direitos, o que se constituiu em um avanço, pois não era uma posição explícita das centrais. Mas essa posição não foi testada na prática, uma vez que o debate da reforma trabalhista no FNT não ocorreu nem se traduziu em propostas concretas para serem analisadas.

A segunda questão, relacionada diretamente com o nosso tema, foi o desenvolvimento conjunto, por parte das centrais, de jornadas anuais de defesa do salário mínimo, reivindicando a sua majoração e uma política de valorização permanente. As jornadas tiveram o efeito positivo de estabelecer mesas de negociação entre as centrais e o Governo Federal, o que viabilizou uma significativa majoração do seu valor e a definição de uma política de recomposição até 2011, como será analisado no Capítulo 4. Ou seja, criou-se uma agenda de mobilização em torno de um tema que indica uma contraposição à lógica de flexibilização. A mesma articulação conjunta está caminhando, em 2007, para a discussão do modelo de

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Para dimensionar as diferenças, conferir CESIT/SEBRAE, 2004, e Horn, 2006. O primeiro faz um mapeamento das divergências nos principais pontos negociados no FNT. O segundo analisa as proposições sistematizadas das conferencias estaduais, mostrando que o nível de dissenso é quase instransponível.

desenvolvimento do país, com a previsão de uma série de debates e marcha à Brasília. Com isso, não se está aqui fazendo uma avaliação do comportamento do sindicalismo nem de sua relação com o Governo Lula, pois esta é uma questão complexa que escapa ao escopo do presente trabalho. Está sendo destacado, no entanto, um aspecto que fez parte das tensões sociais latentes do período. Ao mesmo tempo, as centrais perderam espaço na sociedade e tiveram dificuldade para definir uma relação mais clara com o governo, especialmente a partir da nítida contradição entre algumas medidas pontuais e a lógica de uma política econômica ortodoxa e restritiva, feita para agradar o mercado financeiro, política que determinou os rumos do país.

Os sinais contraditórios ficam mais evidentes nas questões concretas que foram encaminhadas no primeiro mandato no tema das relações de trabalho. Por um lado, continuaram ocorrendo medidas pontuais de flexibilização, tais como a lei das falências,179 a reforma da previdência no setor público180 e o 1º emprego, que serão discutidas no Capítulo 2. Além disso, o Ministério do Trabalho, incluindo o sistema de fiscalização, continuou tendo parcos recursos para desenvolver sua atuação, dada a vigência de uma política de ajuste fiscal no primeiro governo Lula. Faz-se necessário também registrar o envio, ao Congresso Nacional, de um Projeto de Lei do Poder Executivo que previa uma redução do valor do FGTS para as empresas com faturamento anual de até R$ 36.000,00 (trinta e seis mil reais), em 2005. A questão fundamental é que há espaço político, nas falas do Presidente, para uma legislação diferenciada para as micro e pequenas empresas, reduzindo o Fundo de Garantia para 0,5% do salário. Essa proposta estabelece formalmente entre os trabalhadores uma diferenciação que já é acentuada no mercado de trabalho. Ela não está no supersimples, aprovado em 2006, que mantém, do ponto de vista do trabalho, a mesma regulamentação constante na lei original, de 1996, sobre fiscalização e documentação.181 As novidades flexibilizadoras são a legitimação

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A nova lei de falências (Lei 11.101/05) limitou a preferência dos créditos trabalhistas e os decorrentes de acidentes de trabalho a 150 salários-mínimos por credor, o que, hoje, equivaleria a R$ 52.500,00 (cinqüenta e dois mil e quinhentos reais).

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Os principais pontos da reforma da previdência foram: extinção do Regime Jurídico Único; restrições à acumulação de remunerações e aposentadorias especiais; instituição do teto dovalor de benefício e da previdência privada; e estabelecimento cumulativo de limite de idade, prazo de carência e tempo de contribuição.

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As principais questões previstas na área do trabalho são: dispensa de afixação de quadro de trabalho, anotação de férias, posse do livro de inspeção do trabalho, empregar e matricular aprendiz em cursos e comunicar a concessão de férias coletivas; acréscimo do § 3° ao art. 58 da CLT; previsão de uma “fiscalização orientadora"; e formação de consórcios para serviços de segurança e medicina do trabalho.

das comissões extrajudiciais de solução de conflitos individuais e a maior dificuldade na produção de provas para detectar a fraude trabalhista.

Por outro lado, o governo retirou o Projeto de Lei que previa a introdução de um sistema onde prevaleceria o negociado sobre o legislado, cancelou as alterações da licença maternidade,182 cancelou os subsídios nas contribuições sociais do contrato por prazo determinado e revogou a Portaria que estabelecia limites à fiscalização dos auditores fiscais das normas constantes nos convênios coletivos. Além disso, sob pressão, adotou uma política de valorização do salário mínimo.

Enfim, a questão trabalhista continua latente no debate nacional, pois há, entre os atores sociais, concepções muito distintas a respeito da reforma trabalhista, e este é um tema marcado pela controvérsia também no mundo acadêmico. A grande polêmica, que está no centro do debate no Brasil, é: reafirmação de um sistema de regulação pública do trabalho ou avanço rumo à flexibilização das relações de trabalho? De forma mais explicita, esse é o mesmo debate sobre a prevalência do negociado sobre o legislado, no qual se define uma hierarquia de regras, sendo privilegiada aquela acordada entre as partes em detrimento da legislação vigente. De um lado está a corrente que defende uma normatização das relações de trabalho realizada preferencialmente pelas partes nelas envolvidas, responsabilizando a excessiva regulação legal pela alta informalidade e elevado desemprego existentes no Brasil (PASTORE, 2005, ZYLBERTAJN, 2002a). É o princípio da autonomia das vontades coletivas interpretado de forma absoluta. Nessa visão, diante dos desafios de uma economia aberta e exposta à concorrência externa, a adoção de normas mais flexíveis poderia ser benéfica ao avanço da produtividade e da competitividade da empresa, já que a relação entre trabalhador e empregador deve ser marcada pela “parceria”. Os adeptos dessa compreensão também advogam a necessidade de haver regras compatíveis com a realidade das diferentes regiões, dos setores econômicos e por tamanho de empresa. Portanto, a desregulamentação das leis trabalhistas é considerada essencial para as empresas obterem maior produtividade e competitividade, contribuindo, conseqüentemente, na solução do problema do desemprego. Além disso, argumentam que o alto custo dos encargos sociais é um empecilho à

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Em 1999, o salário-maternidade devido às empregadas gestantes em licença-maternidade passou a ser pago diretamente pela Previdência Social (e não mais pelo empregador, que depois seria ressarcido pela Previdência), o que foi extremamente prejudicial às trabalhadoras, já que obrigava as gestantes e as mães com recém-nascidos, que gozavam da licença-maternidade, a enfrentarem as filas do INSS para o recebimento do benefício. Em 2003, o problema foi corrigido, voltando a legislação à forma anterior.

formalização.183 Com essa concepção, as principais entidades de representação dos empregadores, em diversas ocasiões e reiteradamente, têm manifestado a sua preferência por esse tipo de reforma trabalhista e dado menor importância para a reforma sindical. Na verdade, buscam-se formas de redução de custos por meio de uma flexibilização da legislação trabalhista.

A visão defendida na presente tese é a de que a proteção existente na legislação garante um patamar básico de civilidade à relação de emprego, que já é bastante flexível em relação a seus aspectos centrais, tais como na alocação do trabalho, nas formas de contratação e rompimento do vínculo de emprego, na definição das funções, na jornada e na remuneração do trabalho. A flexibilidade do mercado de trabalho, como discutido acima, pode ser observada na alta rotatividade da mão-de-obra, na facilidade em adequar a jornada às demandas da empresa e, especialmente, na utilização da hora-extra. Além disso, a remuneração, nos últimos 25 anos, tem variado conforme os ciclos econômicos (BALTAR, 2003a). A flexibilidade também ocorre pelo não cumprimento da legislação social por parte dos empregadores, já que o risco de punição é pequeno e administrável.

Além disso, a flexibilidade está expressa na informalidade e na heterogeneidade estrutural do mercado de trabalho. São problemas históricos, ligados à estruturação econômica do país, que se agravaram no contexto de crise e de estreitamento do mercado de trabalho, pois o nível de emprego advém da dinâmica econômica e da forma como é repartido o trabalho útil na sociedadee não da legislação do trabalho.

A questão da reforma encontra-se em aberto na sociedade brasileira. A lógica, determinada pelas mudanças mais estruturais de um capitalismo globalizado e financeirizado, tende a fragilizar a regulação pública e fortalecer soluções autônomas, com aumento do poder discricionário dos empregadores em determinar as condições de uso e remuneração do trabalho. Por isso, a flexibilização vai ocorrendo pela dinâmica do mercado de trabalho (flexibilização a frio184) com o avanço da terceirização, da sub-contratação, da informalidade,

do desrespeito aos direitos vigentes, dos programas de metas, da alta rotatividade e da re- interpretação das normas e legislação – processo desenvolvido em todos os setores e em todas as faixas de rendimento. Dois exemplos, para ilustrar: 1) os bancos estão transformando os

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Cf. Uma crítica a essa corrente pode ser vista em Santos (2006). O autor se contrapõe à tese de Pastore, mostrando que o custo do trabalho, em comparação com outros países, é baixo.

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seus funcionários em comissionados para burlar a jornada legal de 6 horas; 2) muitas empresas estão contratando diversos profissionais como pessoa jurídica (PJ) ou autônomo em vez de fazer o registro em carteira.

Enfim, tem-se uma situação de absoluta heterogeneidade que combina a sonegação de direitos com a emergência, nos setores mais modernos da economia, de um regime hegemônico despótico, nos termos de Burawoy (1990), em que os trabalhadores concordam com certas práticas de flexibilização a partir da coerção advinda do próprio estreitamento do mercado de trabalho. Nesse sentido, caso ocorra um crescimento no nível de emprego, as condições de aplicação dos direitos e de ampliação da regulação social e pública do trabalho mais facilmente poderão prosperar.

A discussão sobre o sistema de relações de trabalho, portanto, articula-se ao debate sobre o projeto de desenvolvimento e o próprio tipo de nação que se pretende construir no Brasil. A questão será encaminhada em uma ou outra perspectiva a partir do momento em que for resolvida a situação mais geral do país, pois o sistema de relações de trabalho é um subsistema da organização social e econômica.

Capítulo

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