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O sistema de fiscalização e vigilância do trabalho

O mercado de trabalho e o padrão de regulação do trabalho no Brasil

4. Os anos 90: avanço da flexibilização e fragilização das instituições públicas

4.4 O sistema de fiscalização e vigilância do trabalho

O sistema público de inspeção e vigilância dos direitos trabalhistas inclui, além da Justiça do Trabalho e dos sindicatos, o Ministério do Trabalho e Emprego, no exercício de seu poder fiscalizador, assim como o Ministério Público do Trabalho, no manejo das ações civis públicas para defesa de interesses coletivos.

No Brasil, o descumprimento da legislação é uma forma concreta de flexibilização, como discutido acima. Não adianta ter uma legislação extensa e ampla se o nível de descumprimento é alto. “O sistema de regulação do trabalho de determinado país pode ser muito detalhado e rígido em termos formais, mas muito flexível na prática, simplesmente porque os empregadores podem escolher não cumprir o que a lei prescreve. Argumentamos que o Brasil é um desses casos” (CARDOSO e LANGE, 2005, p. 452).

O sistema brasileiro de inspeção do trabalho, como visto anteriormente, está de acordo com as normas internacionais. Nos anos 90, ocorrem dois movimentos simultâneos, que não são contraditórios com o contexto econômico e político do período. Por um lado, vale lembrar,

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a lógica foi de viabilizar mecanismos de fortalecimento da negociação direta e da solução privada dos conflitos trabalhistas. Nesse sentido, editou-se uma Portaria166que passou a desestimular a fiscalização dos convênios coletivos, pois, no lugar da multa ao empregador,

determina que as cláusulas conflitivas com a lei sejam objeto de comunicação ao Ministério Público do Trabalho, sob a justificativa de valorização da negociação coletiva. Na mesma perspectiva, inclusive com uma relativa autonomia de ação do auditor fiscal, a partir de 1999 foi instituída a possibilidade de “Mesa de Entendimento”, que, sob a direção do auditor, abre a possibilidade de prorrogação de prazo para cumprimento de itens que foram constatados em fiscalização, mediante concordância do sindicato dos empregados da categoria. As mesas podem, inclusive, ter um papel preventivo de problemas futuros. Além disso, há programas desenvolvidos nos estados que buscam trabalhar a prevenção das doenças e acidentes de um modo coletivo, como forma de otimizar a ação de fiscalização, estabelecendo negociações entre as entidades sindicais para medidas preventivas e prazos de implementação.167

Ao mesmo tempo, com mais intensidade nos primeiros anos da década de 1990, foi promovido um processo de sucateamento da estrutura de fiscalização, que já era historicamente insuficiente. O sucateamento pode ser observado, entre outros aspectos, na queda, em termos percentuais, do valor executado no orçamento para a fiscalização até 1999. Apesar de o valor disponibilizado ter aumentado um pouco, nos primeiros anos do século XXI, persistem inúmeras dificuldades materiais (equipamentos e diárias) para o exercício da fiscalização.

Iniciativas, ainda que tímidas, ocorrem, especialmente a partir de 1996, no sentido de recuperar o sistema de fiscalização, dentro de um esforço para melhorar a máquina arrecadatória, buscando-se viabilizar o incremento das finanças públicas, em um contexto de elevação brutal do endividamento do Estado. Nesse sentido, novos concursos aconteceram, após anos de redução no número de auditores fiscais do trabalho (inspetores) – mesmo assim, o número continua muito baixo até os dias atuais.168 A partir de 1999, estabeleceu-se uma carreira para auditor, unificada à da previdência e receita, sendo ainda introduzido um sistema

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Portaria 865/1995. Essa Portaria foi revogada pela Portaria 143/2004. 167

Por exemplo, no Estado de São Paulo, foram assinadas convenções sobre saúde e segurança do trabalho no setor químico, metalúrgico e construção civil.

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O número de auditores chegou a 2 mil, em 1995. Em 2006, está próximo de 3 mil, menos do que os 5 mil existentes nos anos 70.

de gratificação169 vinculada a resultado, que privilegia o volume de arrecadação do FGTS, o número de formalizações via ação fiscal e a quantidade de empregados fiscalizados, tendência que se exacerbou depois de 2003. Ou seja, os incentivos são para aumentar a arrecadação do Estado, por meio de depósitos do Fundo de Garantia ou pela elevação da formalização, que incrementa as contribuições sociais, especialmente à previdência social. Segundo documento do MTE (2004), citado por Cardoso e Lage (2005, p. 479), “a partir de 1996, as metas de arrecadação passaram a ser definidas pelo Ministério da Fazenda, no âmbito do plano de metas do governo federal, sendo parte do esforço fiscal da administração pública [...] Desde então, este passou a ser o foco central da inspeção do trabalho no Brasil”.

O incremento da fiscalização gera um movimento com resultados contraditórios, na perspectiva aqui analisada, pois eleva a formalização do vínculo de emprego, o que não deixa de jogar contra a lógica da flexibilização, garantindo, teoricamente, uma proteção maior ao empregado. Segundo os dados disponíveis no site do MTE, o número de trabalhadores formalizados por ação sindical praticamente triplicou entre 1996 e 2005 (foi de 268.558 para 746.272). Considerando o tamanho do mercado de trabalho e, particularmente, o número dos desligados e admitidos, segundo o CAGE/MTE, a quantidade não é tão grande, mas há um crescimento muito acima do proporcionado pela dinâmica do mercado de trabalho. A mensuração da contribuição da ação fiscal para a formalização, no entanto, é problemática. Por um lado, tem-se o efeito demonstração, ou seja, a visita dos auditores fiscais em um município ou segmento econômico pode levar muitos empresários a registrarem os empregados para escaparem da multa. Por outro lado, nada garante a permanência no emprego do formalizado pela ação do auditor fiscal.

Além disso, há uma terceira dimensão que não reforça a lógica da flexibilização, atendendo a pressões externas, especialmente da OIT. As principais iniciativas são: a reafirmação dos preceitos da OIT sobre fiscalização, inclusive aumentando a autonomia do auditor fiscal no exercício da função pública;170 e o Programa de Erradicação do Trabalho

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Assim, duas gratificações incidem sobre o salário básico: a Gratificação de Atividade Tributária – GAT,

correspondente a 30% do salário (ou 25% do maior salário básico); e a ratificação de Incremento da Fiscalização e da Arrecadação – GIFA, correspondente a 45% do maior salário básico de cada cargo (CARDOSO e LAGE, 2005).

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Infantil e do Trabalho Escravo,171 em convênio com a OIT. O combate ao trabalho infantil, análogo ao do trabalho escravo,172 é parte do projeto da OIT de trabalho decente.173 São programas que visam a eliminar essas duas vergonhas do cenário das ocupações brasileiras. Esses programas são uma resposta às denúncias e às pressões da comunidade internacional sobre o país.

Portanto, por pressão externa e por necessidade de ajuste fiscal, houve, depois de 1996, um pequeno avanço na estruturação do sistema de fiscalização, que traz algum resultado nos indicadores sobre formalização e combate ao trabalho infantil e escravo, assim como houve um aumento no valor de depósito do FGTS por ação fiscal. A elevação da formalização dos contratos nos anos recentes tem alguma relação com as mudanças no sistema de fiscalização. Diversos problemas estruturais continuam, no entanto, tais como o número insuficiente de auditores, fazendo com que o maior volume de trabalho ocorra no atendimento a denúncias, dadas as condições precárias de trabalho. Diferentemente de outras áreas de fiscalização, o auditor fiscal do trabalho lida com situações sociais muito complicadas, em que o trabalhador pode se encontrar em situação de desespero para resolver o seu problema, elevando o número de denúncias e exigindo um atendimento imediato. Certas situações não têm como ser deixadas para depois. O problema é o baixo número de auditores e as suas condições de trabalho, o que dificulta a realização de um trabalho mais planejado.174

Em síntese, a flexibilidade agrava-se também, no caso brasileiro, devido ao alto índice de descumprimento da legislação do trabalho. Considerando as autuações, a ordem de incidência em termos de direitos mais infringidos é: falta de depósito ou depósito incorreto do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS); falta de registro; salário; descumprimentos relativos ao descanso; e descumprimentos relativos à jornada, especialmente horas-extras (CESIT, 2004). Ao mesmo tempo, é possível perceber a importância da existência de um sistema de fiscalização capaz de garantir a vigilância da legislação.

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Introduzidos respectivamente em 1992 e 2003. 172

O combate ao trabalho escravo é feito por um grupo móvel, uma equipe formada por auditores de várias localidades que vai para áreas diferentes das de sua lotação; fator importante, principalmente devido ao problema de retaliação, como ocorreu no caso da morte dos auditores em Unaí/MG, em 2003.

173

Conceito discutido na introdução. 174

Há programas com planejamento que conseguem desenvolver as ações traçadas, tais como o destinado a deficientes físicos.