• Nenhum resultado encontrado

A regulação pela negociação coletiva

O mercado de trabalho e o padrão de regulação do trabalho no Brasil

3. Avanços e limites da regulação pública na década de

3.1 A regulação pela negociação coletiva

A negociação coletiva adquire alguma expressão somente na década de 80,94 quando há uma classe trabalhadora mais estruturada – fruto do processo de industrialização –, e o

94

A Constituição de 88 ampliou o espaço de solução de conflitos pela via negocial (art. 7, inciso XXVI, § 1º), como a forma mais coerente com a estruturação de um Estado Democrático de Direito. Também facultou às partes a possibilidade, se frustrada a negociação coletiva autônoma, de elegerem árbitros privados.

sindicato ressurge no contexto da luta pela redemocratização. Nesse período, o sindicato revela capacidade de romper com uma série de restrições ao desenvolvimento das negociações coletivas, tais como a efetivação do direito de greve, a burocratização dos procedimentos da negociação, a superação da negociação restrita ao período da data-base e a realização de algumas experiências de campanhas unificadas, desenvolvendo uma centralização das negociações em segmentos mais estruturados, tais como bancários, telefônicos, petroleiros, transporte ferroviário, entre outros, no âmbito nacional e em diversas categorias (metalúrgicos, químicos, professores, alimentação etc) no âmbito estadual.

A questão controvertida na análise do período é: as negociações coletivas têm importância na regulação do trabalho ou simplesmente reproduzem a legislação vigente? A hipótese é de que elas apresentam grande evolução na década de 80, tanto em relação aos conteúdos acordados como no processo e na abrangência das negociações.

A importância das negociações pode ser verificada pelo crescimento do número de contratos e de cláusulas constantes em cada convenção coletiva. O número de contratos coletivos, segundo Pochmann (2001), passa de 1000, na década de 70, para em torno de 40 mil, no final de década de 80. Ao mesmo tempo, o número de cláusulas médias por convenção coletiva eleva-se de 15 para em torno de 60, no levantamento em algumas categorias do Estado de São Paulo.95 É ponto pacífico que a prática da negociação se dissemina no país, com mais destaque nos setores com dinamismo econômico e sindical.

O crescimento do número de cláusulas nos instrumentos normativos e a ampliação dos temas negociados também revelam uma crescente importância das negociações coletivas na regulação do trabalho. Segundo um estudo de Horn (2003, p.14),96

[...] uma evidência mais robusta para a hipótese de fortalecimento do papel regulatório das negociações coletivas consistiria em um montante crescente de cláusulas que estipulasse normas que não fossem encontradas na legislação estatal. Em 1978, não mais do que duas cláusulas, em média, fixaram regras não encontradas na legislação. Isto é evidência do papel menor que as negociações

95

Marceneiros, bancários, construção civil, têxteis, condutores e papeleiros do Estado de São Paulo (Dieese, 2001).

96

As unidades de barganha pesquisadas: Alimentação (Porto Alegre), Panificação (Porto Alegre), Metalúrgicos (Canoas), Metalúrgicos (Novo Hamburgo), Metalúrgicos (São Leopoldo), Metalúrgicos (Porto Alegre), Metalúrgicos (Sapiranga), Químicos (Porto Alegre), Fertilizantes (Porto Alegre), Farmacêuticos (Porto Alegre), Gráficos (São Leopoldo), Artefatos de Couro (Novo Hamburgo), Calçados (Novo Hamburgo), Calçados (São Leopoldo), Calçados (Campo Bom), Calçados (Sapiranga), e Têxteis (Porto Alegre). No período 1978-95, estas unidades geraram 287 acordos coletivos no nível de setor de atividade.

coletivas desempenhavam na regulação da relação de emprego. Após crescer a uma taxa de 2,2 cláusulas por ano, entre 1978 e 1994, o número médio das cláusulas adicionais chegou a 36,8 cláusulas. Apenas em 1995, este indicador decresceu pela primeira vez desde 1978.

Essa multiplicação no número de cláusulas acarreta ainda um aumento na proporção de cláusulas adicionais97 no total das cláusulas substantivas98 dos acordos coletivos da amostra, praticamente dobrando de 37,1%, em 1978, para 66,8%, em 1995, sendo que 89,8% das cláusulas adicionais beneficiam os empregados.

O estudo mostra ainda que o ápice das cláusulas favoráveis aos trabalhadores ocorre em 1988.99 A partir de 1989, há, paulatinamente, um crescimento de cláusulas que beneficiam os empregadores,100 especialmente em relação aos seguintes temas: remuneração, jornada de trabalho, garantia no emprego e procedimentos para rescisão do contrato e condições de trabalho. Consideram-se cláusulas favoráveis ao empregador as que implicam uma ampliação do seu poder discricionário sobre a relação de emprego.

Também não é desprezível o número de cláusulas que simplesmente reproduzem a lei, como mostram inúmeros estudos. No período analisado, esse fenômeno resulta, em muitos casos, de uma estratégia sindical para garantir a efetividade da norma legal através da publicização, servindo, também, para viabilizar a cobrança de multas no caso de descumprimento da lei, através de sua “transformação em cláusula”. Há, no entanto, um substancial crescimento no número de cláusulas que, de fato, agregam alguma regulação em relação à legislação vigente.

Em relação ao conteúdo, o ponto central do conflito é a questão salarial, que, devido ao ambiente inflacionário, constitui-se no carro-chefe das negociações coletivas, fazendo com que os trabalhadores fiquem, constantemente, correndo atrás da recomposição de seu poder de compra em uma sociedade marcada por uma péssima distribuição de renda.

A luta contra a corrosão dos salários se dá tanto na tentativa de os trabalhadores interferirem na política salarial quanto na negociação direta com os empregadores. Em alguns

97

Cláusulas adicionais são as acrescidas ao contrato em cada ano. 98

Regras substantivas são as que estabelecem direitos e obrigações mútuas das partes na relação de emprego. 99

Uma proporção crescente de cláusulas adicionais beneficiando os empregados foi uma característica saliente desta expansão do escopo nas unidades de barganha da amostra, elevando-se de 18,7% do total das cláusulas (substantivas e não-substantivas), em 1978, a um pico de 52,2%, em 1988, antes de decrescer para 47,5%, em 1995.

100

“O número médio das cláusulas adicionais que beneficiam os empregadores cresceu de zero, em 1978, para 5,3 cláusulas em 1995, quando corresponderam a 14,5% do total de cláusulas adicionais” (Horn, 2003: 18).

setores, a partir da dinâmica de categorias mais organizadas, a pressão sobre o setor privado tem incidência na política pública de estipulação de um reajuste mínimo ao conjunto dos assalariados por um determinado período.

O movimento sindical, mesmo priorizando a luta salarial, não consegue reverter a tendência histórica de concentração da renda, mas, considerando o contexto econômico da década de 80, sem a sua presença a deterioração salarial teria sido muito mais expressiva (BALTAR, 1991).

Assim, com destaque para as três principais greves gerais ocorridas na década de 80 (1983, 1986 e 1989) e outras inúmeras manifestações, a luta sindical foi, em muitos momentos, diretamente contra a política salarial do Governo Federal,101

colocando em questão os diversos planos de estabilização da moeda e conseqüentemente a política econômica.

Além disso, uma série de outros temas fica no centro das negociações coletivas, tais como: 1) condições de trabalho, implicando uma melhoria no ambiente de trabalho, na saúde e na segurança do trabalho; 2) regulamentação da jornada de trabalho, destacando-se a valoração da hora-extraordinária e a redução da jornada;102 3) emprego, com garantia de estabilidade provisória a trabalhadores em situações especiais (alistamento militar, gestante, acidentado e pré-aposentadoria), indenização adicional aos demitidos e normas especiais para cumprimento do aviso prévio (períodos recessivos); 4) relações sindicais,1prevendo o acesso do sindicato aos locais de trabalho, através de quadro de avisos, de visitas, de campanha de sindicalização e de reuniões periódicas entre sindicato e empresas. Também começa a aparecer, de forma tímida, a possibilidade de organização dos trabalhadores no local de trabalho (delegados sindicais e comissão de fábrica); e 5) benefícios, sendo mais freqüentes o subsídio ao

101

Nesse período foram adotadas as seguintes medidas salariais: Lei nº 6.708, de 30/10/79; Lei nº 6.886, de 10/12/1980; Decreto-Lei nº 2.012, de 25/01/1983; Decreto-Lei nº 2.024, de 25/05/1983; Decreto-Lei nº 2.045, de 13/07/1983; Decreto-Lei nº 2.064, de 19/10/1983; Decreto-Lei nº 2.065, de 26/10/1983; Lei nº 7.238, 20/10/1984; Lei nº 7.450, de 23/12/1985; Decreto-Lei nº 2.283, de 27/02/1986; Decreto-Lei nº 2.335, de 12/06/1987; Decreto- Lei nº 2.425, de 07/04/1988; Lei nº 7.730, 30/01/1989; Lei nº 7.737, de 28/02/1989; Lei nº 7.777, de 19/06/1989; Lei nº 7.788, de 03/07/1989; Lei nº 8.030, de 12/04/1990; Medida Provisória nº 193, de 25/06/1990; Medida Provisória nº 199, de 26/07/1990; Lei nº 8.073, de 30/07/1990; Medida Provisória nº 211, de 24/08/1990; Medida Provisória nº 219, de 04/09/1990; Medida Provisória nº 234, de 26/09/1990; Medida Provisória nº 256, de 26/10/1990; Medida Provisória nº 273, de 28/11/1990; Medida Provisória nº 292, de 03/01/1991; Lei nº 8.178, de 01/03/1991; Lei nº 8.222, 05/09/1991; Lei nº 8.238, de 01/10/1991; Lei nº 8.276, de 19/12/1991; Lei nº 8.419, de 07/05/1992; Lei nº 8.542, de 23/12/1992; Lei nº 8.700, de 27/08/1993; Lei nº 8.716, de 11/10/1993; e Decreto nº 1.066, de 27/02/1994. Sobre o conteúdo das medidas, ver os estudos de Maria Hermínia Tavares de Almeida (1997) e de Márcio Pochmann (1995). Apud Oliveira, 2002.

102

Muitas categorias, antes mesmo da Constituição Federal de 1988, já tinham assegurado, via negociação coletiva, uma jornada menor de trabalho do que a prevalecente até então.

transporte e à alimentação, o auxílio funeral e o seguro de vida. A expansão dos dois primeiros é favorecida por incentivos fiscais. Também começa a proliferar, em algumas categorias, o convênio médico e odontológico.

Além dos temas evidenciados acima, estiveram no centro das preocupações do sindicalismo as demandas pelo respeito à legislação do trabalho e aos acordos coletivos e um conjunto de questões sociais, não exclusivamente sindicais, mas comandadas por elas, que vão desde os aumentos salariais até a noção, quase consensual no debate público, da necessidade de diminuição das desigualdades sociais através da ampliação de direitos sociais e da estruturação de políticas públicas (NORONHA, 1998).

Assim,

[..] aspectos do trabalho até então de domínio exclusivo da gestão capitalista, como controle disciplinar, ritmos de produção, regras de promoção, estabilidade, distribuição de horas extras, condições de higiene e segurança no trabalho etc., passaram a ser confrontados, pelo menos nos setores mais fortemente organizados, mediante a militância dos trabalhadores e a reivindicação crescente de espaços de intervenção diretamente barganhados.Conseqüência dessa militância é que os acordos coletivos ganham vida e novo sentido a partir da incorporação de reivindicações relacionadas aos interesses de maior penetração dos sindicatos nos locais de trabalho e a ampliação de seu poder de representação interna (COSTA, 2005, p.11).

Em relação ao processo e à abrangência das negociações, verifica-se um movimento contraditório entre o final dos anos 70 e início da década de 90. Por um lado, há uma enorme pulverização de organizações sindicais e, conseqüentemente, de negociações, pois grande parte delas ocorre por categoria profissional. Por outro lado, acontecem diversas experiências de articulação de campanhas conjuntas, tanto no mesmo segmento econômico (no âmbito estadual, por exemplo) como inter-categorias. Como exemplo, pode-se citar a centralização das negociações no setor bancário (nacional), metalúrgicos e químicos do Estado de São Paulo.

Com a consolidação das centrais sindicais, há o desenvolvimento de campanhas e lutas comuns em diversas categorias. A partir do final da década de 80, por exemplo, a CUT desenvolve campanhas salariais unificadas, que, em geral, estabelecem parâmetros e reivindicações comuns. Apesar de ter prevalecido a pulverização dos contratos e de a negociação ficar centrada no âmbito de cada categoria, há o desenvolvimento de muitas ações articuladas, com campanhas unificadas e até centralizadas que, no entanto, não resultam, na maioria dos casos, em contratos mais gerais.

No balanço da década de 80, é possível identificar nos setores mais estruturados e nas grandes empresas um avanço considerável das condições e do ambiente de trabalho, uma certa

ampliação do sistema de proteção a trabalhadores em situação especial e melhoria dos benefícios sociais. Nota-se também um avanço rumo à democratização das relações de trabalho, em que o sindicato procura criar as condições para o exercício de sua função de representação dos interesses coletivos.

Mesmo com os avanços apontados acima, muitos aspectos que caracterizam a flexibilidade do sistema de relações de trabalho brasileiro ainda permanecem em vigor, entre os quais é possível identificar: 1) a facilidade da empresa em despedir; 2) a liberdade de estender a jornada por meio das horas-extraordinárias; 3) a não regulamentação da alocação do trabalho; 4) a possibilidade da redução salarial com a conseqüente redução da jornada de trabalho, por meio de negociação coletiva; e 5) a não negociação do ritmo e intensidade de trabalho. Mas há um detalhe: essa possibilidade já existia antes de 88, desde que a empresa estivesse em dificuldades. Além disso, do ponto de vista das relações sindicais, pouco se avançou na regulamentação da organização dos trabalhadores no local de trabalho e na introdução de mecanismos contra a dispensa imotivada.

O avanço da regulação pública do trabalho, via negociação coletiva, não é linear nos diversos setores econômicos. Pela sua própria natureza, a negociação está mais presente em segmentos mais estruturados tanto do ponto de vista da economia como da dinâmica sindical. Na década de 80, em várias questões, as conquistas dos setores mais dinâmicos serviram de referência para os outros, facilitando a sua propagação e inclusive, às vezes, tornando-se legislação. O avanço da legislação trabalhista nos direitos individuais e coletivos, também, em muitos aspectos, universalizou regulamentações já existentes em algumas categorias, como por exemplo, a redução da jornada de trabalho para 44 horas semanais.

Apesar das limitações, o avanço das negociações e da legislação vai fazendo com que as condições de utilização do trabalho deixem, em algum grau e especialmente nos setores mais dinâmicos, de ser definidas e impostas unilateralmente pelo patronato, estabelecendo limites ao poder da empresa e, com isso, inicia-se um processo, ainda incipiente, de democratização das relações de trabalho em comparação ao que existia até então nos locais de trabalho. Muitas direções de empresas começaram a considerar o sindicato e as regras estabelecidas na negociação coletiva.103

103

3.3. Avanço da regulação social do trabalho pela ampliação da legislação e