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O princípio da igualdade e o status da mulher no panorama jurídico mundial a partir da

CAPÍTULO 2 Direito Internacional dos Direitos Humanos e as críticas à atuação dos

2.2. O princípio da igualdade e o status da mulher no panorama jurídico mundial a partir da

Tanto os direitos individuais e coletivos como os direitos sociais, mencionados anteriormente, são concedidos, indistintamente, a homens e mulheres, pois ao lado do princípio da dignidade da pessoa humana coexiste o princípio da igualdade, onde todos são iguais perante a lei, sem qualquer tipo de distinção.

Raffaele De Giorgi97, ao discorrer sobre os Modelos jurídicos de igualdade e de eqüidade, aborda a questão da distição igualdade-desigualdade, afirmando que “[...] a igualdade é sempre tratada como um princípio relacional que pressupõe a diversidade daquilo que se compara”; destaca que na Idade Moderna observa-se: “[...]a generalização jurídica do princípio da igualdade e o fato de que se estabelece a expectativa, mas também a

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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001. p. 337-344.

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DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris , 1998. p. 113-116.

preocupação, de que as situações de desigualdade possam ser superadas e que a direção do futuro da sociedade possa ser orientado nesse sentido”.

Assim, da evolução do pensamento kantiano no sentido de que a igualdade deve ser o princípio supremo a orientar as decisões judiciais, tem-se, em conseqüência, que este princípio, segundo De Giorgi: “Garante a generalização e a individualização no sistema, ao mesmo tempo que possibilita a abertura externa e a clausura interna, o autocontrole e a alta sensibilidade nos confrontos com o ambiente”98

Todavia, a questão ganha contornos ainda mais complexos quando se verifica a possibilidade de tratamentos desiguais dentro do próprio sistema jurídico:

Na realidade, a constitucionalização do princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei, significa tão somente que tratamentos desiguais são possíveis, desde que suficientemente motivados. O princípio não exclui por completo a desigualdade de tratamento, mas a torna possível ao condicioná-la.99

Na Constituição Brasileira de 1988 o princípio da igualdade vem explicitado no artigo 5o, em especial no seu inciso I, que veda a discriminação por gênero, assim como ocorre nos instrumentos internacionais.

Assim, o direito à vida, à liberdade, à dignidade, à segurança pessoal, à proteção contra qualquer forma de discriminação, ao trabalho, à justa e satisfatória remuneração, a repouso e lazer, à saúde e à instrução, são igualmente garantidos a homens e mulheres.

Todavia, o que se tem observado, em todo o mundo, é que a discriminação de gênero é uma realidade para a qual não podemos fechar os olhos; é uma discriminação que tem atravessado os séculos e as fronteiras e encontra-se presente nos lares, nos locais de trabalho, nas vias públicas, nas consciências de homens e mulheres.

É essa cultura discriminatória que gera a violência de gênero intrafamiliar, com todas as suas mazelas; gera as diferenças remuneratórias onde os homens ganham mais que as

98

Ibid., p. 119.

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mulheres, apesar de executarem o mesmo trabalho, com igual eficiência; exige das mulheres um comportamento ético e moral distinto daquele que se exige dos homens, que tudo podem; fazem das mulheres escravas de uma cultura machista e opressora e, assim, conscientes disso, deixam de lutar pelos seus direitos, vivendo, muitas vezes, em condições indignas.

Esse triste panorama vem sofrendo mudanças, notadamente a partir da segunda metade do Século XX, quando então, em virtude da Segunda Guerra Mundial, milhares de homens faleceram e as mulheres, então, passaram a executar tarefas antes somente aos homens destinadas, trabalhando em fábricas, comércio, lavouras etc. Assim, fazendo parte da força produtiva e recebendo remuneração, embora muitas vezes inferior à dos homens, a mulher passou a enxergar novos horizontes, além das janelas de sua casa, onde se limitava às tarefas domésticas e à criação dos filhos.

Pouco a pouco, a necessidade de especialização da mão-de-obra levou a mulher a buscar maior grau de instrução, o que a fez dar passos mais largos no sentido de politizar-se e ser voz atuante nas tomadas de decisões, tanto dentro como fora de seu lar. Essas mudanças fizeram-se mais sensíveis no mundo ocidental, por ser este, àquela época, mais industrializado que o mundo oriental, onde predominavam as atividades primária e secundária da economia. Marida Cevoli, em seu artigo Bell: o advento pós-industrial, salienta que:

A maior relevância da presença feminina é explicada por Bell essencialmente pela referência à nova importância assumida pelo setor de serviços destinado por tradição à mão-de-obra feminina. Bell não analisa nem cita outras causas, mais propriamente culturais, para explicar o novo comportamento das mulheres nas disputas de trabalho. As suas preocupações são sobretudo dirigidas ao problema da representação desse novo componente da força de trabalho. As mulheres, sustenta o autor, se organizam com mais dificuldade que os homens porque dão menos importância à ação para a proteção do trabalho considerado secundário (em relação ao compromisso familiar, considerado primário), em meio período, ou que constitui apenas um complemento da vida familiar. 100

Partindo-se, então, de que o crescimento da economia não apenas propicia, mas exige a participação de mão-de-obra feminina, pode-se afirmar que o fenômeno da globalização

100

possui um papel de primordial importância para que o princípio da igualdade venha a se firmar cada vez mais.

Ocorre que o fenômeno da globalização, inicialmente ligado à economia, a ela não se limita, trazendo modificações em todos os campos da atividade humana; o transpôr de fronteiras para a integração econômica, a unificação de moedas, o intercâmbio de mão-de- obra entre os países, conduzem, inequivocamente, a um intercâmbio cultural intenso, onde tradições, línguas, religiões e modos de vida se entrelaçam.

O Direito, enquanto fenômeno cultural, também participa desse processo evolutivo; o intercâmbio econômico é, portanto, o veículo pelo qual as novas idéias de igualdade se propagam e se realizam, possibilitando às mulheres adotarem um novo status, protegidas por um direito internacionalmente reconhecido que objetiva proporcionar-lhes dignidade, segurança e bem-estar.

A garantia de igualdade de direitos entre homens e mulheres possui estreita correlação com a garantia de que seja propiciada às mulheres uma vida digna, plena de realizações como um ser humano integral, habilitando-as a exercerem as profissões que livremente escolherem, remunerando-as de forma que possam alcançar sua independência financeira e proporcionar, a si e a sua família, uma moradia digna, alimentação, vestuário, enfim, ao menos o mínimo necessário para viver dignamente. Dessa maneira, a mulher não se sentirá submissa ao homem, elevando assim sua auto-estima, o que a fará ser respeitada dentro e fora dos limites domésticos.

A possibilidade de aumentar seu grau de instrução a tornará conhecedora de seus direitos e deveres como cidadã, o que será transmitido aos seus filhos, que passarão a ver na figura materna a profissional que contribui para a força produtiva da nação, a educadora que lhes ensina como serem bons cidadãos, a provedora que lhes proporciona bem-estar, a amiga que os prepara para a vida.

Investir na igualdade entre homens e mulheres e implementar programas que favoreçam o desenvolvimento intelectual e profissional da mulher significa progresso e desenvolvimento para toda a nação.

Consciente disso, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), produziu uma Plataforma de Ação para que o processo de emancipação da mulher fosse acelerado, através da eliminação de “[...] todos os aspectos que impedem as mulheres de exercer um papel ativo em todos os domínios da vida pública e privada”101, baseando-se no princípio da repartição de poderes e responsabilidades entre homens e mulheres em toda parte, tanto nos locais de trabalho como nos lares, e nos planos nacional e internacional; realçou a necessidade de erradicação da pobreza, que atinge principalmente as mulheres e “[...] condenou veementemente a violência contra a mulher, como uma violação de seus direitos e por todos os seus efeitos negativos também no próprio desenvolvimento”102 e ressaltou que “[...] as políticas sobre desenvolvimento sustentável que não contarem com a participação de homens e mulheres deixarão de alcançar seus resultados a longo prazo”103. Essas metas integram o processo de formação da agenda internacional do século XXI.

Apesar disto, há que se ressaltar que em que pese todo o esforço para criar-se um ordenamento jurídico calcado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, o que vem ocorrendo na grande maioria dos países, notadamente no ocidente, ainda assim o que se percebe é a continuidade do comportamento violento dos homens contra as mulheres, sem que, muitas vezes, essas possam se socorrer da maneira como gostariam junto ao Poder Judiciário, deste não obtendo respostas satisfatórias ao problema enfrentando no cotidiano do recesso de seu lar.

101

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, v. 2. Porto Alegre: Antonio Fabris , 1999. p. 316.

102

Ibid, p. 317.

103

Juana Maria Gil Ruiz, Professora de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Granada, Espanha, discorre sobre a questão da violência doméstica, partindo do princípio de que as leis formuladas de forma neutra “se aplicam de acordo com uma perspectiva masculina e tomam como medida de referência os homens104”, conforme destaca a Professora Juana que no âmbito privado e íntimo, onde ocorre a violência de gênero, mantém-se uma legislação despótica e uma jurisdição extra-jurídica:

“Em la esfera de la domesticidad, toda intervención resulta perniciosa, pues pertence a um âmbito que deber permanecer em silencio, y que se rige por sus propias leyes; y la mujer, todavia, habita em él”. Isto se dá, segundo a Professora Juana, em razão de o homem – o pater familiae105” – figurar como juiz e patriarca, dirigindo mulher e filhos segundo a ordem estabelecida por ele mesmo.

Igualmente, Maria Alice Rodrigues afirma que:

A igualdade em sentido pleno nas relações entre homens e mulheres supõe não só a igualdade jurídica, mas também a igualdade de fato, ou seja, a igualdade de oportunidades para exercer os direitos e desenvolver as próprias aptidões e potencialidades. Para a concretização desse princípio, além da eliminação das discriminações de fato, tanto sociais, econômicas, como culturais e familiares, é preciso que sejam adotadas medidas em nível nacional que assegurem à magistratura e aos operadores do direito a plena consciência da importância de a mulher exercer os direitos reconhecidos nos instrumentos internacionais, nas constituições e na legislação de cada país.106

A respeito da natureza aberta da interpretação constitucional e em especial dos Direitos Fundamentais, Márcio Iorio Aranha107 destaca a estrutura diferenciada dos direitos fundamentais, tendo em vista o caráter aberto, polissêmico e indeterminado dessa mesma estrutura, o que exige, em razão da natureza principiológica dos direitos fundamentais, uma interpretação calcada em pautas axiológicas, que se revelam em casos concretos e que, afinal,

104

GIL RUIZ, Juana Maria. La violência jurídica em lo privado: um analisis desde la teoria critica publicado na

Revista Direitos & Deveres, n. 2, 1998, p. 29-65. 105

Ibid.

106

RODRIGUES, Maria Alice. A mulher no espaço privado: da incapacidade à igualdade de direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 42.

107

ARANHA, Márcio Iorio. Interpretação constitucional e as garantias institucionais dos direitos

confere a esses direitos densidade conceitual. O ponto nodal da questão acerca da efetiva aplicação dos princípios constitucionais cinge-se à subjetividade com que essa pauta axiológica é tingida quando o juiz interpreta a lei, aplicando-a ao caso concreto, levando para as suas decisões seus valores, preconceitos e estereótipos, o que é facilmente identificável nos casos que envolver questões raciais ou de gênero.

Celso Ribeiro Bastos destaca que:

Sobre a problemática da única interpretação possível, ou da melhor interpretação, ou da verdadeira interpretação, temas tão caros à segurança jurídica e à própria vida em sociedade, lembra-se que caminham essas concepções conjuntamente com a corrente doutrinária que ainda vê no aplicador da lei um mero autômato. Além disso, embora todo o ordenamento jurídico esteja voltado a oferecer a necessária segurança e estabilidade nas relações humanas, o certo é que não é a segurança jurídica o primado último do Direito. Certamente acima dele encontram-se outros objetivos. Dentre estes, destaque-se, em especial, o princípio da justiça. Este, de acordo com a doutrina mais moderna, enquadra-se dentro dos chamados princípios gerais de Direito, e tem aplicação ampla entre os diversos campos em que este se divide. A própria segurança jurídica busca a realização da justiça. Na medida em que não houver nenhuma segurança, é praticamente certa a ausência também da justiça. O que ocorre é que nem todo o Direito seguro será inexoravelmente um Direito justo. Reconhece-se, pois, que o princípio da segurança jurídica exerce um papel mínimo, posto que sem ele não será possível realizar os demais elementos, tais como a justiça, a liberdade, a igualdade etc.108

Disto se infere que as leis infraconstitucionais, os tratados internacionais, notadamente os de direitos humanos e as normas e princípios constitucionais formam um todo que deve ser aplicado ao caso concreto com o objetivo principal de realização de justiça. Novamente estamos diante de mais uma questão: o que seria um Direito justo? Não haveria aí também uma grande dose de subjetividade? Este critério de justiça também não é distinto para cada aplicador da lei? Também não está sujeito à sua própria pauta axiológica, a seus valores íntimos, seus preconceitos, sua história de vida?

De nada adiantarão instrumentos internacionais protetivos dos direitos das mulheres, ou mesmo o princípio da igualdade, ou leis infraconstitucionais que objetivem proteger as mulheres de todo tipo de violência, se àqueles a quem incumbe aplicar essas mesmas leis e

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BASTOS, Celso Ribeiro: Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1997. p. 31.

princípios possuem uma mentalidade sexista e faltam sensibilidade, conhecimento para o trato da matéria. Para a solução deste problema, é de fundamental importância a capacitação dos profissionais do Direito em tema de violência de gênero.109

Somente a partir de uma mudança de mentalidade dos profissionais do Direito, livre de preconceitos e estereótipos, é que os direitos fundamentais e humanos estarão realmente garantidos através das decisões judiciais.

2.3. O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E OS SISTEMAS