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3 EM TORNO DO DISCURSO DA COMPETÊNCIA

3.4 O DISCURSO DA COMPETÊNCIA NO ENSINO DE LÍNGUA

A didática de línguas é um campo que tem, muito frequentemente, se apropriado da noção de competência como um de seus conceitos. Para além das implicações que seus múltiplos efeitos comportam, essa apropriação nos permite questioná-la enquanto um conceito modelador de práticas sociais e científicas. Aqui, tomando a dimensão propriamente evolutiva do discurso da competência e trazendo-o para o espaço do ensino de Inglês no interior da Educação Profissional, retomaremos brevemente os momentos principais estabelecidos por Dolz e Bronckart (2004), para depois evidenciarmos alguns elementos da crítica dirigida ao seu consumo neste campo.

Num primeiro momento, cujos estudos estão vinculados à competência linguística desenvolvida por Noam Chomsky ainda na década de 1950, essa noção envolveria, no seio das estruturas do cérebro humano, a disposição de uma linguagem inata e universal em um “órgão mental” responsável por fornecer a cada sujeito uma capacidade intrínseca de compreensão de uma língua natural. Nesse viés, a competência linguística é inata aos sujeitos, ou seja, é um potencial biológico inerente à espécie humana, estando à disposição de cada indivíduo ao nascer. Seria a faculdade inata de falar e compreender uma língua, nas palavras de Perrenoud (2005). A competência linguística, para Chomsky (1955), difere do que ele chama de desempenho: enquanto a competência linguística se refere ao que o sujeito poder realizar idealmente, por meio de seu potencial inato, o desempenho envolve um comportamento observável, uma ação datada, subjacente à competência, e de qualidade duradoura, o que possibilitaria medir uma competência através da observação de seus desempenhos.

O segundo momento, que está muito ligado ao primeiro, trata-se da utilização do termo pelo cognitivismo modularista, que é uma das vertentes que também se apoia nas ideias Chomskianas. Nessa vertente, cujos conceitos estão muito próximos das ideias do próprio Chomsky acerca da competência linguística, todas as funções psicológicas (atenção, percepção, memória, etc.) se apoiam em um dispositivo biológico inato, chamado de modulações, capaz de fornecer aos indivíduos uma competência ideal, semelhante à competência linguística estabelecida por Chomsky. Foi um momento breve, caracterizado pela retomada da noção de competência por linguistas ligados à corrente pragmática da linguagem e nas questões mais particularmente vinculadas ao ensino de língua, que teve em Dell Hymes (1973/1991) seu maior expoente.

O terceiro momento é dedicado as discussões acerca da competência comunicativa que, desde a decada de 1970, tem sido amplamente considerada um tópico de discussão por muitos pesquisadores (Hymes, 1971; Widdowson, 1978; Canale & Swain, 1980; Canale, 1983; Savignon, 1983)36. Esta é uma das razões pelas quais, duas décadas após o “boom” da competência comunicativa (no final da década de 1960), uma importante revista na área de linguistca aplicada– Applied Linguistics – dedicou uma edição especial (junho de 1989) tratando especificamente sobre competência comunicativa. Entre os autores desta edição estão Courtney B. Cazden, H.G. Widdowson, Bernard Spolsky, Allan Davies entre outros, que sentiram a necessidade de discutir novamente o tema.

36 Mesmo conscientes da possibilidade de uma discussão profunda e exaustiva do termo, consideramos que isso

não caberia aqui devido ao propósito de apresentar a noção de competência comunicativa com vistas ao seu questionamento, o que é realizado mais à frente.

Afastando-se totalmente da ideia Chomskiana de competência sintática ideal (capaz de desenvolver um domínio funcional da linguagem) e também da psicologia cognitiva, Hymes ([1973]1991) propõe o conceito de competência comunicativa (que se desdobra em narrativa, conversacional, retórica, produtiva, receptiva, etc.). Para Dolz e Ollagnier (2004, p. 34), nesse momento “a competência não é mais fundada biologicamente, mas se torna uma capacidade adaptativa e contextualizada, cujo desenvolvimento requer um procedimento de aprendizagem formal ou informal”. A competência comunicativa abrange o comportamento social dos membros de uma comunidade e do uso social da linguagem. Tomando essas idéias para o contexto social (e político, eu diria) da sala de aula (embora o centro da preocupação de Hymes não era específicamente o ensino de línguas), a sua tentativa de colocar língua, cultura e comunicação em conjunto é evidente; e, em sua ótica, o objetivo fundamental do ensino é promover o desenvolvimento da competência comunicativa.

Hymes (1979) está preocupado com as “regras de uso” da língua em uma dada sociedade. Para ele, deve-se ensinar a língua de uma forma coerente com seu uso apropriado em um determinado tempo e lugar:

Temos então que considerar o fato de que uma criança normal adquire conhecimento de frases, não apenas como gramaticais, mas também como apropriadas. Ele ou ela adquire competência sobre quando falar, quando não, e sobre o que conversar com quem, quando, onde, de que maneira [...] O engajamento da língua na vida social tem um aspecto positivo e produtivo. Existem regras de uso sem as quais as regras da gramática seriam inúteis (Hymes, 1979, p. 15).

Para Larsen-Freeman e Anderson (2011), alguns educadores da década de 1970 (como o próprio Hymes), imbuídos pela percepção de que para se comunicar era necessário mais do que o domínio de estruturas linguísticas, devido, principalmente, ao caráter social da língua, observaram que os estudantes produziam frases gramaticalmente corretas em sala de aula, mas não as utilizavam apropriadamente quando se comunicavam fora de sala, em um diálogo natural, por exemplo. Segundo os autores, essas observações contribuíram para uma mudança no campo do ensino de línguas nas décadas de 1970 e 1980, de uma abordagem centrada na estrutura linguística para uma abordagem comunicativa.

Quando tratamos do assim chamado “ensino-aprendizagem” de línguas estrangeiras e ao se mencionar o termo competência comunicativa, em seu sentido dominate, considera-se geralmente que as quatro habilidades linguísticas (ouvir, falar, ler e escrever) estão no centro do desenvolvimento do processo pedagógico. Widdowson (1978, p. 66) discute as diferenças desses termos, cujo sentido é atualizado ao se indicar os termos dizer, conversar, ouvir e compreender em vez das habilidades acima. O autor argumenta que, no passado, eles eram inexplicáveis, e sugere que “ao torná-los explícitos, podemos ter uma idéia mais clara do que

está envolvido na aprendizagem da língua falada e pode-se começar a estabelecer princípios para seu ensino” (WIDDOWSON, 1978, p. 66). As habilidades comunicativas envolvem “uma compreensão do valor comunicativo dos elementos lingüísticos em contexto, e isso é baseado em um conhecimento de como esses elementos podem servir de pistas, que podem ser interpretadas em referência a convenções compartilhadas de comunicação” (WIDDOWSON, 1978, p. 67).

No prolongamento dessas ideias, inicia-se, na década de 1980, um quadro teórico que se tornou clássico na conceitualização da competência comunicativa e que é proveniente da linguística aplicada: trata-se da proposta teórica de Canale & Swain (1980) e Canale (1983), os quais interpretaram o termo como sendo composto de quatro competências:

Competência gramatical - em que o indivíduo deve dominar aspectos relacionados à fonética e à fonologia, vocabulário, formação de palavras e frases, bem como aspectos semânticos da linguagem.

Competência sociolinguística - em que o indivíduo deve estar ciente do contexto social onde a comunicação ocorre. Ela também leva em conta o papel das relações dos participantes, as normas da interação, a mensagem e o propósito da interação entre os participantes.

Competência discursiva - na qual o indivíduo deve dominar o conhecimento de como combinar frases a fim de construir uma unidade significativa de um gênero específico; inclui também o conhecimento de como interpretar mensagens em um texto falado ou escrito interconectado.

Competência estratégica - na qual o indivíduo deve dominar um conjunto de estratégias de comunicação para evitar fissuras nas conversas e, assim, manter a comunicação o mais eficiente possível (por exemplo, para manter o fluxo da interação evitando que ela pare).

Da mesma forma que Widdowson (1978), Canale & Swain (1980, p. 14) discordavam da ênfase dada aos aspectos gramaticais antes de uma atenção dedicada aos aspectos comunicativos. Em suas palavras: “não há razão para se concentrar nos aspectos da gramática antes de uma atenção aos aspectos da comunicação” (CANALE & SWAIN, 1980, p. 14). Ao desenvolver testes para medir a competência comunicativa dos estudantes em Francês, outra contribuição para o debate sobre a competência comunicativa é proposta por Savignon (1983, p. 08), afirmando que “o sentido que pretendemos e o sentido que transmitimos geralmente não é o mesmo”, e estabelece que a competência comunicativa é resultado de cinco caracteristicas:

(b) a competência comunicativa aplica-se tanto à linguagem escrita como à linguagem falada;

(c) a competência comunicativa é específica do contexto; (d) a diferença entre competência e desempenho; e (e) a competência comunicativa é relativa.

Ao comentar os aspectos acima, a pesquisadora argumenta que o sentido não é individual, mas que precisa de outras pessoas para negociá-lo; e é assim que, para a pesquisadora, a competência comunicativa não é um conceito estático. Em relação à segunda característica, Savignon (1983) argumenta que quando as pessoas compartilham o mesmo sistema simbólico, a competência comunicativa pode ser aplicada tanto a língua escrita quanto a língua falada. A terceia característica, ou seja, o contexto específico, a autora destaca que existem muitas situações possíveis nas quais a comunicação pode ocorrer e também discute a questão do registro e o estilo apropriados para ser escolhido pelos participantes da interação. A quarta característica leva em consideração as diferenças dos termos competência e desempenho: o primeiro é “o que se sabe e o segundo é o que se faz”. A última característica proposta pela autora é a essência relativa (em oposição à absoluta) do termo competência comunicativa, isto é, depende realmente dos atores envolvidos na interação.

É preciso dizer que, à essa altura, o termo “abordagem” ganha força como um objeto de discussão no campo do ensino de língua. Isso porque, em meio a uma certa abundância de termos designadores do modo específico de se ensinar, aprender e pesquisar uma língua estrangeira, a palavra conseguiria abarcar o amplo e complexo processo de se estudar uma língua estrangeira frente aos seus tradicionais concorrentes: o método e a técnica.

A partir daí surge forte interesse da parte de estudiosos, especialmente linguistas aplicados, em estudar questões ligadas ao ensino de língua inglesa, incluindo-se a competência comunicativa. Nesse cenário, segundo o percurso que Bezerra (2012)37 realiza, o foco recai

sobre a natureza das abordagens. No ápice dessa discussão teórica, que gira em torno dos conceitos de método, abordagem e técnica, muitos consumidores de termos da hora (professores, estudantes e alguns pesquisadores) “aceitaram irrefletidamente essas teorias, métodos e técnicas como timoneiros de suas práticas de sala de aula” (BEZERRA, 2012, p. 89). Aqui nesta tese, conforme veremos no capítulo VI, toda essa nomenclatura será trabalhada enquanto discursividades ligadas ao ensino de inglês, ou seja, serão discutidas no interior do que estamos chamando de Discurso de Formação Específica (DFE) do IFRN. É para a

37 Embora o trabalho de Bezerra (2012) não esteja situado numa perspectiva discursiva, apresenta, segundo nossa

configuração metodológica desse discurso (juntamente com o Discurso de Formação Profissional) que voltaremos nossa atenção neste momento.

3.5 CONCLUSÃO PARCIAL

Neste capítulo, tecemos algumas considerações acerca das condições de produção do discurso da competência. Vimos que a competência, em sua trajetória de sentidos ao longo de seu desenvolvimento, foi inspirada por algumas correntes filosóficas e tratada segundo algumas abordagens teóricas, de modo que a ela se conferiu diferentes efeitos de sentido. Nessa perspectiva, a discussão aqui empreendida mostrou que tais abordagens, nomeadas de condutivista, funcional e construtivista, embora não explicitem, ainda prescrevem, de modo geral, um ensino cujos objetivos estão alinhados às necessidades produtivas.

Com propostas baseadas em materiais de trabalho autênticos, essas abordagens concebem as competências como intrínsecas aos sujeitos e seria dele a responsabilidade por sua própria aprendizagem. Os conteúdos, fundados na ideia de informações e conhecimentos, devem ser contextualizados e interdisciplinares, de modo que se articulem com as necessidades produtivas, silenciando seu viés científico.

A ideia de saber útil e pragmático é o que se torna bastante presente nessas abordagens da competência, trazendo implicações para uma formação humana e integral quando se toma essa noção para o interior de seu espaço discursivo. É justamente a busca em se identificar os efeitos que esse trânsito da competência produz no espaço da Educação Profissional ofertada no IFRN que se vislumbra apreender nos próximos capítulos.