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2. VISÃO CONTEMPORÂNEA DAS RELAÇÕES CIVIS NA PERSPECTIVA DOS

2.5. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SEUS EFEITOS NA

2.5.3. O processo de repersonalização do sujeito de direito

A discussão sobre a eficácia dos direitos fundamentais sobre áreas de ingerência privada, bem como a abordagem sobre a constitucionalização dos direitos civis tem ampla ligação com o fato de que, paulatinamente, houve uma radical mudança da perspectiva do sujeito de direito e, consequentemente, dos direitos subjetivos a ele associados, em razão da forma pela qual o indivíduo passou a ser encarado.

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Ibidem, p. 303.

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A vetusta concepção do sujeito de direito como aquele que é dotado da aptidão genérica para ser titular de direitos e obrigações, o que lhe confere capacidade jurídica, tem sido modificada para um conceito mais ligado ao seu “ser” do que ao “ter”.

Adverte Pietro Perlingieri que a personalidade não é um direito, mas um valor (fundamental do ordenamento) que está na base de uma série aberta de situações existenciais, razão pela qual a tutela deste valor sempre se faz necessária e mutável para que acompanhe a evolução do seu conceito.90

Gustavo Tepedino, discorrendo sobre o assunto, invoca a lição de Perlingieri, para afirmar que:

[...] a personalidade humana mostra-se insuscetível de uma recondução a uma relação jurídica-tipo ou a um novelo de direito subjetivos típicos, sendo, ao contrário, valor jurídico a ser tutelado nas múltiplas e renovadas situações em que o homem possa se encontrar a cada dia. Daí resulta que o modelo do direito subjetivo tipificado será necessariamente insuficiente para atender as possíveis situações subjetivas em que a personalidade humana reclame tutela jurídica.91

Ao discorrer sobre a reconstrução do conceito de pessoa, Judith Martins-Costa leciona que o referencial que se tinha sobre “pessoa’ derivava da época das codificações, em virtude de valores oriundos dos ideais da burguesia; provenientes de sua ascensão econômica, cultural e jurídica, e, conseqüentemente, do capitalismo. Assim sendo, foi concebida a noção de pessoa como ‘sujeito’ e como ‘indivíduo’.92

Explica ela, que, o discurso da Escola de Pandectas tornou o conceito de “sujeito” de tão forma objetivo, que o mesmo restou como um mero elemento da relação jurídica, ou seja, naquela visão patrimonialista do indivíduo capaz de ser titular de direitos.93

Prossegue Judith Martins-Costa, dizendo que:

Submergida a idéia de ‘pessoa’ na de indivíduo (ao senso ‘egoísta’ do termo) e não visualizada a de ‘personalidade’ pela preeminência do conceito técnico de ‘capacidade’, traçaram-se as armas semânticas que acabaram por fundir o ‘ser pessoa’ com o ‘ser capaz de adquirir direitos e contrair obrigações’. Em outras palavras, instrumentalizou-se a personalidade humana, reproduziu-se, na sua

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PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco, 2ª Ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 155-156.

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PERLINGIERI, Pietro, La personalitá umana nell´ordinamiento giuridico, apud TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil–constitucional brasileiro in Temas de Direito Civil / Gustavo Tepedino (Coord). 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 45

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MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa e a natureza da sua reparação. In: ______ (Org.). A

reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 410.

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MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa e a natureza da sua reparação. In: ______ (Org.). A

reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 410-411.

conceituação, a lógica do mercado, o que conduziu à desvalorização existencial da idéia jurídica de pessoa, para torná-la mero instrumento da técnica do Direito [...].94

A visualização da pessoa como mero elemento de uma estrutura jurídica (o sujeito de direito) foi sendo modificada para nela enxergar suas especificidades, suas características que a torna especial, ainda que dotada da mesma dignidade que seus iguais.

Percebe-se, dentro da estrutura tradicional, que a abstração a que foi submetida a pessoa natural, coisificou-a, esquecendo-se de suas necessidades, suas expectativas, suas singularidades, passando a ser mais um “indivíduo patrimonial”.95

Comentando o Código Civil português, Orlando de Carvalho critica:

[...] é manifesto que a eliminação do tradicional livro das pessoas com que abriam os sistemas jurídicos latinos, em favor de uma parte geral, em que as pessoas se reduzem e, mero elemento da relação jurídica civil, concorre para uma reificação ou desumanização do jurídico, cujas seqüelas, como a última história nos mostra, dificilmente tranqüilizam qualquer boa consciência.96

Pietro Perlingieri faz uso da expressão “despatrimonialização” do direito civil para explicar a evolução deste processo de recondução do ser humano aos seus valores inatos:

O termo, certamente não elegante, ‘despatrimonialização’, individua-se uma tendência normativa-cultural; se evidencia que no ordenamento de operou uma opção, que lentamente, se vai concretizando, entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade fim a si mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, como valores).97

Esta condição de coisificação, de redução da pessoa ao sujeito da relação jurídica vem sendo reformulada, especialmente depois do reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana, que instaurou uma nova perspectiva para os valores constitucionais e infraconstitucionais.

A este processo de resgate do ser humano; do reconhecimento de que não é mera peça de uma relação jurídica, bem como da valorização do indivíduo pautado em sua dignidade, é o que Luiz Edson Fachin denomina de repersonalização.

Ele afirma que a dignidade da pessoa é princípio fundamental da República, a qual teria colocado tal referencial como “princípio estruturante, constitutivo e indicativo das

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Ibidem, p. 411-412.

95 FACHIN, Luiz Edson, Teoria crítica do direito civil. 2ª Ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 88-89. 96 CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites. [Nota prévia]. 2ª ed., Coimbra: Centelha, 1981, v. 1: Para uma teoria geral da relação jurídica civil, p. 60 apud FACHIN, Edson,

Teoria crítica do direito civil. 2ª Ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.. 88.

idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucional”, o qual se aplica como “leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-lhe o sentido e fulminando de inconstitucionalidade todo preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório que se trata”98

2.5.4 O reconhecimento do direito ao patrimônio mínimo como reflexo do princípio da