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3. AS RELAÇÕES DE CRÉDITO

3.2. ASPECTOS JURÍDICOS DO FORNECIMENTO DE CRÉDITO

3.2.2.1. Os juros no Código Civil de 1916

Seguindo a tendência jurídica da época, o Código Civil de 1916, sob a condução de Clovis Bevilaqua, assumiu uma postura liberal, em que se buscava o afastamento do Estado sobre as regras do mercado, adotando uma política não intervencionista sobre as relações contratuais, flagrantemente inspirada pelo Código Civil Napoleônico.

O artigo 1.063 do referido Código Civil, ao tratar dos juros compensatórios, dispunha que “serão também de seis por cento ao ano os juros devidos por força da lei, ou quando as partes os convencionarem sem taxa estipulada”.

Infere-se da redação do dispositivo que os juros compensatórios podiam ser legais ou convencionais, a depender, respectivamente, do fato de existir lei estabelecendo seu pagamento ou por haver avença entre as partes.

Os juros moratórios, por sua vez, eram previstos no art. 1062 do Código Civil de 1916, o qual estabelecia que “a taxa dos juros moratórios, quando não convencionados, será de seis por cento ao ano”.

Nota-se, portanto, da dicção de tais dispositivos legais, que, diante de contratos com taxas de juros já avençadas pelas partes, não haveria atuação do poder estatal sobre tal taxa, prevalecendo o percentual firmado contratualmente. Assim, caso não fosse estabelecida pelas partes, a taxa dos juros moratórios seria de 6% (seis por cento) ao ano.

Vale registrar que o artigo 1.262 do Código Civil de 1916, ao dispor sobre os juros compensatórios, permitia a fixação de juros abaixo ou acima da taxa legal prevista no art. 1.062 daquele mesmo diploma legal, ao dizer que “é permitido, mas só por cláusula expressa, fixar juros ao empréstimo de dinheiro ou de outras coisas fungíveis. Esses juros podem fixar-se abaixo ou acima da taxa legal (artigo 1.062), com ou sem capitalização”.

Com a edição do Decreto nº 22.626 de 1933, conhecido como Lei da Usura, passou a ser limitado o estabelecimento contratual dos juros ao dobro da previsto pelo Código Civil da época, importando dizer que a taxa de juros contratual restava limitada a 12% (doze por cento) ao ano. Tal Decreto, além de ter tornado nula de pleno direito eventual cláusula

que fixe taxa de juros superior a 12% (doze por cento) ao ano, pela previsão do seu artigo 11130, tipificou como crime a prática da usura (artigo 13)131.

Saliente-se que o referido Decreto revogou o retro mencionado art. 1.262 do CC/16, através do seu art. 1°: “É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal”, fazendo com que os juros compensatórios tivessem o mesmo limite dos moratórios, ou seja, 12% (doze por cento) ao ano.

A proibição da usura ingressa no plano constitucional através do artigo 117, parágrafo único, da Carta Política de 1934, sendo que ficou reservado à lei ordinária o estabelecimento da limitação dos juros. A proibição da usura também foi repetida no artigo 142 da Constituição de 1937, e a Constituição de 1946, além de regular a cobrança de juros, estabeleceu que a usura deveria ser punida.

A tipificação da usura permaneceu com a edição da Lei n° 1.521/51, chamada de Lei de Economia Popular, especificamente no artigo 4º, § 3º, ao prever que “a estipulação de juros ou lucros usurários será nula, devendo o juiz ajustá-los à medida legal, ou, caso já tenha sido cumprida, ordenar a restituição da quantia paga em excesso, com os juros legais a contar da data do pagamento indevido.”

Significativa mudança ocorreu com a promulgação da Lei 4.595 de 1964, a qual dispõe sobre a Política e as Instituições monetárias, bancárias e creditícias, uma vez que, a partir dela, a competência para limitar a taxa de juros cobradas pelas instituições financeiras passou a ser do Conselho Monetário Nacional (CMN), liberando-as da limitação contida no Decreto 22.626/33, que limitava em 12% (doze por cento) ao ano a taxa de juros contratualmente acordada.

Gabriel Wedy afirma que, com o advento da Lei 4.595/64, foi deferida ao Conselho Monetário Nacional, a possibilidade de limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, com o objetivo de favorecer a concessão de crédito e estimular a atividade do setor produtivo, porém, não sendo permitido exceder os 12% (doze por cento) permitidos pela Lei de Usura. Em sua análise, entende que “através de pressões dos grandes oligopólios financeiros nacionais e internacionais, o Banco Central fraquejou e expediu a Resolução nº

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Art. 11, Decreto nº 22.626/33: O contrato celebrado com infração desta lei é nulo de pleno direito, ficando assegurado ao devedor a repetição do que houver pago a mais.

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Artigo 13, Decreto nº 22.626/33: É considerado delito de usura, toda a simulação ou prática tendente a ocultar a verdadeira taxa do juro ou a fraudar os dispositivos desta lei, para o fim de sujeitar o devedor a maiores prestações ou encargos, além dos estabelecidos no respectivo título ou instrumento.

389, de 15.09.1976, autorizando os bancos comerciais a operar taxas de mercado, na verdade, ‘contra o mercado’”132.

Segundo afirma Jaqueline Hamester Dick, “passou a vigorar no direito brasileiro um sistema de duplicidade de normas no que se refere a juros: um vigente para as relações entre particulares, e outro vigente para as relações entre instituições financeiras e particulares”133.

Neste sentido, consolidou-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, através da Súmula 596, a qual declara que “as disposições do Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.”.

Apesar da edição da Súmula 596 do STF, a questão nunca chegou a se pacificar nos tribunais inferiores no tocante à limitação da taxa de juros nos contratos firmados entre instituições financeiras e particulares, em virtude de numerosas decisões que não reconheciam a suposta total liberdade contratual na fixação da taxa de juros trazida pela Lei 4.595 de 1964.

Com a promulgação da Carta Política de 1988, foi estabelecida como limite a taxa de juros reais em 12% (doze por cento) ao ano, diante da redação do ora revogado parágrafo 3° do art. 192134. Ocorre, contudo, que o próprio parágrafo previa a regulamentação por lei complementar, a qual nunca foi editada, tendo o STF, por meio da ADIN 04/DF, decidido que o § 3.º do artigo 192 tinha eficácia condicionada à edição de lei complementar, não tendo, portanto, aplicabilidade imediata.

Tal entendimento foi fortalecido pela edição da Súmula 648 do STF, que dispõe que “a norma do § 3º do art. 192 da Constituição Federal, revogada pela EC 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicabilidade condicionada à edição de lei complementar”.

Diante do reconhecimento da ineficácia do dispositivo constitucional em comento, continuaram a ser fixadas taxas de juros, com base na Lei 4.595 de 1964.

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WEDY, Gabriel. A usura e a limitação dos juros reais compensatórios em 1% ao mês após a publicação da Emenda Constitucional nº 40. Cd Juris Síntese nº 79, set/out 2009.

133

DICK, Jaqueline Hamester. A taxa de juros no novo Código Civil. Cd Juris Síntese nº 79, set/out 2009.

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Assim, era a redação do referido parágrafo 3°: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar."

O parágrafo 3° do art. 192 acabou sendo revogado, assim como todos os incisos e parágrafos do próprio artigo, através da Emenda Constitucional n.º 40, de 29 de maio de 2003, hoje apenas existindo o caput do art. 192, ao qual foi atribuída nova redação135.

Asseveram Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho que a atual redação do artigo 192 da CF/88 atribuiu mais autonomia ao Banco Central e flexibilidade ao mercado financeiro, e que, na prática, pouca mudança haverá porque a atividade bancária permanecerá regulamentada por normas administrativas até que ocorra a implementação da legislação específica136.

Com a modificação operada, a matéria sobre a limitação de juros deixou de ter sede constitucional explícita, o que não impede, a nosso ver, que seja encontrado subsídio para tanto nos princípios constitucionais existentes, a exemplo do princípio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social. Além disso, como se não bastassem os princípios constitucionais apontados, a própria legislação infraconstitucional permite defender a idéia de que seja possível sua limitação, como efeito dos princípios da função social do contrato, do equilíbrio material e dos deveres associados (transparência, informação, etc)137.

Frise-se que não houve uniformidade de posicionamento acerca da incidência ou não da limitação da taxa de juros remuneratórios, pois há decisões conflitantes proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)138:

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Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram. (Redação dada ao caput pela Emenda Constitucional nº 40, de 29.05.2003, DOU 30.05.2003)

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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Volume II, 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 296.

137 Tais princípios e deveres serão adequadamente abordados a partir do tópico 3.3 (Revisitando a teoria geral dos contratos nas relações de crédito).

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Carteira Hipotecária – Juros Remuneratórios – Não Limitação – Súmula 596 do STF – Nos contratos celebrados pelo sistema de carteira hipotecária livre - Fora do sistema financeiro de habitação (SFH) Os juros remuneratórios cobrados pela instituição financeira não se submetem às limitações da Lei da usura. A restrição dos juros remuneratórios pela incidência do Código de Defesa do Consumidor depende da flagrante comprovação do abuso, verificada caso a caso. (STJ – AGRESP 200600663101 – (857587) – PR – 3ª T. – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – DJU 12.12.2007 – p. 00417).

Cédula De Crédito Comercial – Instituição Financeira – Juros Remuneratórios – Código do Consumidor – Aplicabilidade; Lei de Usura – Limitação De 12% – Incidência – "Recurso Especial. Cédula de crédito comercial. Código de Defesa do Consumidor. Limitação e capitalização dos juros. Índice de correção monetária. Precedentes. 1. Segundo orientação pacífica da 2ª Seção, o Código de Defesa do Consumidor incide nos contratos celebrados com instituições financeiras. 2. O art. 5º da Lei nº 6.840/80 c/c o art. 5º do Decreto-lei nº 413/69, posteriores à Lei nº 4.595/64, conferem ao Conselho Monetário Nacional o dever de fixar os juros a serem praticados nas cédulas e notas de crédito comercial. Ante a eventual omissão desse órgão governamental, incide a limitação de 12% ao ano prevista na Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33), não alcançando a cédula de crédito comercial o entendimento jurisprudencial consolidado na Súmula nº 596/STF. 3. Dissídio jurisprudencial não comprovado em relação à capitalização dos juros e ao índice adequado para a correção monetária. 4. Agravo Regimental desprovido.". (STJ – AgRg-Resp 480.555 – RS – 3ª T. – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – DJU 16.06.2003 – p. 341).

Percebe-se, portanto, que tais divergências jurisprudenciais, encontradas até no STJ, revelam a dificuldade do tema e os reflexos decorrentes, notadamente quanto à ausência de harmonização do entendimento do Judiciário.