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Teorias acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas

2. VISÃO CONTEMPORÂNEA DAS RELAÇÕES CIVIS NA PERSPECTIVA DOS

2.5. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SEUS EFEITOS NA

2.5.2. A influência do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações privadas

2.5.2.1. Teorias acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas

Não obstante o fato de que a discussão sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas seja comum a vários ordenamentos jurídicos, ainda que divergentes em algumas especificidades de cada um deles, tem-se como referencial do tema o posicionamento adotado pelas doutrinas alemã, norte-americana e a espanhola, e a divergência existente entre

75 Ver, contudo, a crítica efetuada por Juan Maria Bilbao Ubillos em relação à eficácia horizontal, no item 2.5.2.1.3 (Teoria da eficácia imediata ou direta).

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SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: ________ (Org.). A Constituição concretizada:

construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 112.

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DUQUE, Marcelo Schenk. Direitos fundamentais e direito privado: a busca de um critério para o controle do conteúdo dos contratos. In: MARQUES, Cláudia Lima (Org.). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova

elas, uma vez que as lições da doutrina e as decisões judiciais destes países servem de ponto de partida para as discussões sobre o assunto.78

2.5.2.1.1 Teoria negativista

Esclarece Daniel Sarmento que a teoria que nega eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas tem maior difusão nos Estados Unidos, uma vez que, à exceção da Emenda n° 13 que vedou a escravidão, todos os demais direitos fundamentais contidos no Bill of Rights da Constituição norte-americana apenas estabelecem limites para os Poderes Públicos, não atribuindo aos particulares, contudo, direitos fundamentais frente a outros particulares.79

Segundo ele, a doutrina norte-americana ampara-se na literalidade do texto constitucional, o qual se refere unicamente aos Poderes Públicos na maior parte das cláusulas que prevêem os direitos fundamentais. Ademais, também, são invocados como argumentos a proteção à liberdade individual e o pacto federativo, uma vez que, via de regra, nos Estados Unidos cabe aos Estados e não à União, versar sobre matéria de direito privado. Por conseguinte, afirma-se que a “state action” assegura a autonomia dos Estados e impede que as cortes federais se imiscuam na regulamentação de matéria de relações privadas. 80

2.5.2.1.2.Teoria da eficácia mediata ou indireta

Para a análise das teorias seguintes, faz-se mister o breve relato do caso Lüth, por ser paradigmático para a abordagem do tema em debate.

A celeuma desenvolve-se a partir do boicote conclamado por Eric Lüth, um judeu que presidia o Clube de Imprensa contra o filme “Amada Imortal” do produtor Veit Harlan, que foi um dos principais responsáveis pelos filmes de divulgação da ideologia nazista. O boicote surtiu efeito e o filme foi um fracasso, gerando prejuízo para o diretor e investidores. Em virtude do prejuízo, Veit Harlan e os investidores ingressaram judicialmente alegando que

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Não se pode deixar de registrar que, não obstante a doutrina norte americana, em tese e de forma geral, refute a idéia da aplicabilidade da irradiação dos direitos fundamentais nas relações privadas, há decisões pontuais da Suprema Corte tenham estendido a proteção constitucional a situações em que aparentemente não havia violação atribuível ao Poder Público (UBILLOS, Juan Maria Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito

Privado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 321).

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SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª ed., 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2008, p. 189.

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a conduta de Lüth violava o Código Civil alemão (BGB), notadamente os bons costumes, porque todo aquele que causa prejuízo deve cessar o ato danoso e reparar os danos causados.

O pedido de Veit Harlan foi vencedor em todas as instâncias ordinárias, porém, Lüth recorreu para a Corte Constitucional alemã suscitando a liberdade de expressão que embasaria, segundo seu raciocínio, a manifestação de sua opinião.

A Corte Constitucional alemã entendeu que a convocação ao boicote não violava, necessariamente, os bons costumes, consoante a redação do § 826 BGB; e poderia ser justificada constitucionalmente, em sede da ponderação de todos os fatores envolvidos no caso, por meio da liberdade de expressão do pensamento.

Esta decisão que costuma ser identificada como mais importante julgamento da história do constitucionalismo alemão no pós-guerra e que, na opinião de George Marmelstein Lima,revolucionou o direito, não apenas o constitucional; foi base para o desenvolvimento de alguns conceitos:

[...] que atualmente são as vigas-mestras da teoria dos direitos fundamentais, como por exemplo: (a) a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, (b) a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e (c) a necessidade de ponderação, em caso de colisão de direitos.81

Aponta George Marmelstein que Robert Alexy indica três idéias extraídas na decisão do caso Lüth que serviram para moldar o direito constitucional alemão:

A primeira idéia foi a de que a garantia constitucional de direitos individuais não é simplesmente uma garantia dos clássicos direitos defensivos do cidadão contra o Estado. Os direitos constitucionais incorporam, para citar a Corte Constitucional Federal, ‘ao mesmo tempo uma ordem objetiva de valores’. Mais tarde a Corte fala simplesmente de ‘princípios que são expressos pelos direitos constitucionais’. Assumindo essa linha de raciocínio, pode-se de dizer que a primeira idéia básica da decisão do caso Lüth era a afirmação de que os valores ou princípiosdos direitos constitucionais aplicam-se não somente à relação entre o cidadão e o Estado, muito além disso, à ‘todas as áreas do Direito’. É precisamente graças a essa aplicabilidade ampla que os direitos constitucionais exercem um “efeito irradiante” sobre todo o sistema jurídico. Os direitos constitucionais tornam-se onipresentes (unbiquitous). A terceira idéia encontra-se implícita na estrutura mesma dos valores e princípios. Valores e princípios tendem a colidir. Uma colisão de princípios só pode ser resolvida pelo balanceamento. A grande lição da decisão do caso Lüth, talvez a mais importante para o trabalho jurídico cotidiano, afirma, portanto, que: “Um ‘balanceamento de interesses’ torna-se necessário.82

Assim, a doutrina originariamente concebida por Günther Dürig na Alemanha, em meados da década de 50 do século passado, acabou sendo chancelada neste julgamento pelo

81 LIMA, George Marmelstein. 50 Anos do Caso Lüth: o caso mais importante da história do

constitucionalismo alemão pós-guerra. Disponível em: http://direitosfundamentais.net/2008/05/13/50-anos-

do-caso-luth-o-caso-mais-importante-da-historia-do-constitucionalismo-alemao-pos-guerra/. Acesso em 02 fev. 2010.

82 ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, Balanceamento e Racionalidade. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Ratio Juris. Vol. 16, n. 2, junho de 2003, p. 131-140.

Tribunal Constitucional alemão no paradigmático caso Lüth, ao se reconhecer que os direitos fundamentais eram exercíveis não só contra o Estado, mas também em face dos particulares, contudo, não de forma direta.

Assim, preceitua Canaris, ao discorrer sobre a eficácia mediata externa:

[...] não abandonamos a constatação de que o destinatário dos direitos fundamentais é apenas o Estado (já que a este incumbe um dever de proteção nesta seara). Por outro lado, fica simultaneamente claro por que isso afeta outros cidadãos e por que os direitos fundamentais produzem efeitos também nas relações interprivadas, e isto, de certo modo, por via oblíqua: precisamente porque o Estado ou o ordenamento jurídico estão, em principio, obrigados a proteger um cidadão contra o outro também nas relações entre si.83

Segundo os defensores da teoria da eficácia indireta ou mediata, não seria possível a incidência direta dos direitos fundamentais sobre as relações entre particulares, pois, apenas o Estado se submete a tal vinculação, devendo o legislador ou o juiz efetuar a concretização do conteúdo jurídico destes direitos. Daí que caberá inicialmente ao legislador efetuar tal tarefa através da legislação infraconstitucional, estabelecendo regras visando à referida concretização dos direitos fundamentais. Este objetivo também pode ser obtido pelo desenvolvimento da atividade judicial, quando da análise do caso concreto, mas, sempre com base nas normas de Direito Privado.

Não nos parece passível de dúvida que ao legislador cabe este papel, porque a lei se afigura como o mecanismo mais adequado, num primeiro momento, para que se consiga concretizar o alcance dos direitos fundamentais.

Da mesma sorte, também se pode falar da contribuição do juiz neste processo de concretização, porque através dele será efetuada a análise do conflito existente, perseguindo os objetivos pretendidos na interpretação da norma de direito privado, notadamente pelo uso das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, como a boa fé, os bons costumes, ordem pública, entre outros, uma vez que tal doutrina professa a idéia de que haveria uma incapacidade ou inidoneidade das normas constitucionais para sanar diretamente os conflitos entre particulares84.

Todavia, este critério sofre significativa crítica da doutrina por pretender estabelecer a norma privada como parâmetro de interpretação para validar a norma constitucional, o que por si só já revelaria uma contradição dentro da própria estrutura

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CANARIS, Claus Wilhem. A influência dos direitos fundamentais sobre os direitos privados na Alemanha. Tradução de Peter Naumann. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e

Direito Privado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 240.

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UBILLOS, Juan Maria Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 315.

hierárquica de um ordenamento jurídico, em que pese a proteção que é assegurada aos direitos privados, porque essenciais ao desenvolvimento normal das sociedades.

2.5.2.1.3 Teoria da eficácia imediata ou direta

Segundo noticia Juan Maria Bilbao Ubillos, enquanto a doutrina e jurisprudência alemãs inclinam-se, em sua maioria, pela aceitação da tese da eficácia mediata dos direitos fundamentais em matéria privada, a espanhola tem adotado a tese da eficácia imediata.85

Para ele:

[...] defender la tesis de la eficacia immediata frente a terceros es afirmar la virtualidad directa de la mayoría de los derechos fundamentales, em tanto que derechos subjetivos reforzados por la garantía constitucional, frente las violaciones procedentes de sujetos privados.86

Filiamo-nos a esta corrente porque a consolidação política e a legitimidade do Estado concretizam-se pela proteção dos direitos, uma vez que os direitos fundamentais ganharam, ao longo do tempo, uma dimensão objetiva que supera a concepção clássica de direitos subjetivos públicos, cuja oposição ocorria apenas contra o Estado. Esta função jurídico-objetiva dos direitos fundamentais exige do legislador uma postura positiva para sua concretização, com o escopo de proteger os direitos individuais subjetivos.

Aponta Marcelo Schenk Duque que há dois argumentos básicos para a necessidade da extensão dos direitos fundamentais às relações privadas. O primeiro decorre da ausência de lógica em se estabelecer éticas diversas na sociedade, sendo que uma valeria para as relações entre o Estado e os particulares e, outra diversa entre estes. O segundo argumento, por sua vez, justifica-se pela necessidade de proteção contra os poderes de instituições privadas que costumam violar mais os direitos fundamentais que o próprio Estado.87

Neste sentido, adverte Juan Maria Bilbao Ubillos ao registrar que o direito privado também conhece o fenômeno da autoridade, do poder, como capacidade de interferir na esfera jurídica alheia, afetando suas decisões ou de impor sua própria vontade. Esta

85 UBILLOS, Juan Maria Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 318.

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Ibidem, p. 318

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DUQUE, Marcelo Schenk. Direitos fundamentais e direito privado: a busca de um critério para o controle do conteúdo dos contratos. In: MARQUES, Cláudia Lima (Org.). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova

realidade, segundo ele, percebe-se com a existência de vários centros de poder privado, já que o poder já não mais está concentrado no aparato estatal, mas difuso na sociedade.88

Esta falta de simetria, em suas palavras, decorrente de uma disparidade substancial entre as partes envolvidas, faz com que sequer se possa falar em eficácia horizontal dos direitos fundamentais, porque o detentor do poder está em posição dominante que impede a igualdade entre os particulares envolvidos numa determinada relação travada entre eles.89

É importante destacar que tal concepção não desprestigia a legislação infraconstitucional, notadamente a de direito privado, até porque, em virtude da abstração dos conteúdos presentes na Constituição, nem sempre se faz possível a transferência direta para as relações entre particulares, carecendo, pois, das normas ordinárias para se tornar no direito usual das pessoas.

Entendemos, contudo, que este argumento, embora suscitado pela doutrina que privilegia o entendimento da eficácia mediata (indireta) dos direitos fundamentais, não impede, em contrapartida, a assunção da eficácia direta como a mais adequada.

Em virtude da citada abstração dos conteúdos constitucionais será necessário o manejo dos conceitos jurídicos indeterminados para a concretização destes direitos. Porém, a necessidade de interpretação judicial destes conceitos abertos (boa-fé, equidade, ordem pública, bons costumes etc.) não é óbice para que se reconheça a eficácia imediata dos direitos fundamentais, porque, a nosso ver, constitui-se como mera forma de reconhecimento de um direito, caracterizado apenas pela via estatal, em razão de uma ameaça ou violação a um interesse ou direito subjetivo.