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5. A TUTELA JURÍDICA CONTRA O SUPERENDIVIDAMENTO COMO

5.3. O SUPERENDIVIDAMENTO COMO OBJETO DA TUTELA JURÍDICA

Em razão da problemática que é causada pelo superendividamento, deflagra-se a necessidade de uma abordagem jurídica apta a sanar ou, ao menos, atenuar suas conseqüências, tendo em vista que o superendividado terá sua vida abalada em diversos segmentos, dificultando, senão, impedindo seu projeto de vida digna.

Patente é a função do Direito como instrumento de regulamentação e pacificação social. Assim sendo, a desconformidade social gerada pelo superendividamento, notadamente em decorrência dos problemas que são inerentes a tal situação exigem uma resposta jurídica para a temática que, como já relatado, se não possível de ser perfeita, que seja a mais próxima possível da ideal, atuando como um lenitivo à situação que se põe em destaque.

Em decorrência dessa missão, tomamos como base as seguintes premissas: i) o superendividamento necessita de uma regulamentação jurídica;

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TIMM, Luciano Benetti. O superendividamento e o direito do consumidor. Cd Juris Síntese nº 79, set/out 2009.

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ii) não há norma específica de direito material ou processual que regule especificamente o tema no ordenamento jurídico brasileiro;

iii) as normas relativas aos vícios do consentimento atuam pontualmente sobre negócios jurídicos inválidos (nulidade absoluta ou relativa), sem vislumbrar o problema do endividamento excessivo como um todo;

iv) a Constituição de 1988, ao erigir o princípio da dignidade humana como fundamento da República Federativa, além de reconhecer e assegurar estabelecer uma série de direitos fundamentais, faz com que os valores e regras contidos no seu ordenamento jurídico se submetam àquele princípio;

v) propugnar pela eficácia imediata dos direitos fundamentais em matéria privada é a medida mais efetiva para que eles sejam concretizados, e;

vi) o processo de constitucionalização do direito civil facilitou o reconhecimento dos valores constitucionais nos conteúdos de direito privado, permitindo uma releitura dos institutos tradicionais, notadamente, para este estudo, o contrato e a propriedade.

Uma vez estabelecidas as premissas, faz-se indispensável a construção de uma teoria que possa atuar sobre este problema, quer seja de forma preventiva ou reparatória, para resolvê-lo, utilizando-se do que há de disponível no direito pátrio.

O ponto de partida, necessariamente, será a Constituição Federal, não só pela hierarquia, mas, também, por conter normas fundamentais do Estado, estabelecer sua organização sócio-econômica e política, e, essencialmente, propor um projeto de vida aos seus cidadãos de acordo com os valores por ela pretendidos, a partir do momento em que as opções feitas pela Constituição refletem-se na atividade hermenêutica, nos conteúdos, e nos significados das normas infraconstitucionais.

Ademais, seus preceitos têm condição de norma estruturante do ordenamento jurídico, outorgando validade aos dispositivos a ela submetidos e espraiando seus ditames por todos os ramos do direito, inclusive o privado.

Na definição de Flores-Valdés, o direito civil constitucional deve ser tido:

[...] como um sistema de normas e princípios institucionais integrados na Constituição, relativos à proteção da pessoa em si mesma e suas dimensões fundamentais familiar e patrimonial, na ordem de suas relações jurídico-privadas gerais, e concernentes àquelas outras matérias residuais consideradas civis, que tem por finalidade firmar as bases mais comuns e abstratas da regulamentação de tais relações e matérias, nas que são suscetíveis de aplicação imediata, ou que podem servir de ponto de referência da vigência, da validez e da interpretação da norma aplicável da pauta para o seu desenvolvimento.333

333 FLORES-VALDÉS, Joaquín Arce y. El Derecho civil constitucional. Madrid: Civitas, 1986, p. 178, apud LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 253.

Esta perspectiva de consonância das normas infraconstitucionais ao comando da Carta Magna reforça a concepção do direito civil constitucional, propiciando que a Constituição exerça seu real papel normativo conformador das condutas a ela subordinadas.

Adverte Perlingieri que a norma constitucional não deve ser entendida como mero limite ou barreira à norma ordinária, porque, limitá-la apenas a este papel seria negar seu concreto papel de verdadeira norma jurídica, fazendo com que sua aplicação se tornasse meramente excepcional e residual, e sempre sem incidir sobre a interpretação dos comandos normativos ordinários334, o que não é o adequado.

Ao se reconhecer o real significado e valor da norma constitucional, aplicando-a, de forma direta ou indireta, sobre as relações pessoais e sócio-econômicas, independente da existência de norma ordinária específica, comprovada estará sua eficácia, e fará com que a norma constitucional torne-se a razão primária e justificadora (mas, não necessariamente a única em caso de existência de norma ordinária sobre a situação) da relevância jurídica daquelas relações, “constituindo parte integrante da normativa na qual elas, de um ponto de vista funcional se concretizam”335.

Assim, percebe-se que a norma constitucional pode e deve atuar diretamente quando não existir norma ordinária a reger a matéria, porém, isto não quer dizer em absoluto que, em havendo norma infraconstitucional sobre o caso, fique impedido o exercício daquela, até porque o dispositivo legal infraconstitucional terá que se submeter e se adequar à norma que lhe é superior.

O certo é que, através da leitura da legislação ordinária à luz da Constituição, é que se faz possível assegurar que se respeite a hierarquia das fontes e de garantir um sistema de direito privado que seja exercido em consonância com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da redução das desigualdades sociais.

Fabiana Rodrigues Barletta conclui que, sendo a Constituição um sistema de normas cuja interpretação deve ocorrer de forma sistemática, não há possibilidade de entendimento dos dispositivos legais de forma isolada, sob pena de o intérprete perder seu verdadeiro significado e abrangência, porque desassociados do seu fio condutor.

Neste contexto, é que se justifica que os valores constitucionalmente previstos devem ser determinantes na conduta do aplicador:

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PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 10.

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Os princípios da dignidade da pessoa humana, da redução das desigualdades sociais e regionais, são critérios axiológicos sobre os quais se alicerça a norma fundamental e devem estar presentes em toda hermenêutica, que tem por obrigação considerá-los antes de qualquer disposição oriunda de outra fonte normativa e, conseqüentemente, concretizá-los através de uma prática interpretativa sempre subordinada à legalidade constitucional.336

Destarte, os institutos de direito privado devem ser analisados e funcionalizados em concordância aos comandos constitucionais, razão pela qual o contrato também deve ser visto por este prisma, para que encontre significado condizente à sociedade atual.

Afirma Paulo Nalin que:

O Código Civil não pode mais ser visto como uma categoria superior da 'Carta' constitucional, como normalmente acontecia nos diplomas oitocentistas, sempre fundados sobre o instituto da propriedade e dos bens pertencentes aos particulares. Atualmente, aquele antigo desenho não mais prevalece, ante uma Constituição normativa que põe, no centro do seu ordenamento, a pessoa humana, consagrando- lhe a ela um valor proeminente. É com base nessa relocação das figuras legais que se busca reconstruir a idéia de contrato, sempre centrada na figura da pessoa humana (sujeito contratante) e na sua proteção constitucional.337

O desenvolvimento da concepção de um contrato funcionalizado e direcionado ao cumprimento de seu papel na nova teoria geral dos contratos, é, certamente, um caminho a ser trilhado para que se alcance a tutela adequada contra o superendividamento.

Estabelecida a convicção de que o superendividamento embora seja fenômeno fático, deve receber regulamentação jurídica, entendemos que, uma vez configurada a situação em tela, é assegurado ao devedor o direito subjetivo à tutela, com base não só na dignidade humana, mas em seus corolários mais diretos: a solidariedade social e o princípio de proteção ao patrimônio mínimo.