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O reconhecimento do direito ao patrimônio mínimo como reflexo do princípio da

2. VISÃO CONTEMPORÂNEA DAS RELAÇÕES CIVIS NA PERSPECTIVA DOS

2.5. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SEUS EFEITOS NA

2.5.4. O reconhecimento do direito ao patrimônio mínimo como reflexo do princípio da

O processo de constitucionalização dos direitos civis afetou os institutos mais significativos (contrato, família e propriedade), promovendo mudanças na sua roupa clássica, fazendo com que eles só se legitimem através de uma postura que se revele consentânea aos valores éticos e sociais vigentes.

E, por conta dessa mudança, a propriedade sofreu o influxo deste novo perfil axiológico-hermenêutico, constitucional de tal jaez, que a doutrina fala num processo de despatrimonialização (ou repersonalização) que desencadeou na idéia do patrimônio mínimo existencial.

A teoria que assegura a imunidade do mínimo existencial (ou do patrimônio mínimo) tem fundamento nos princípios da dignidade humana e da solidariedade social.

Tal teoria pode ser conceituada como:

[...] um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.99

Em virtude da nova leitura dos institutos tradicionais de direito privado e do fenômeno da repersonalização (despatrimonialização), tem-se visto a propriedade por outra perspectiva que traz uma gama de elementos socializantes sem que ocorra, contudo, a perda de sua proteção constitucional.

Se for verificada a proteção que é dada ao bem de família, ter-se-á um exemplo da aplicação desta teoria, ao assegurar a manutenção do imóvel residencial como mecanismo assecuratório da sua dignidade100.

98 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar. 2001p. 190.

99

ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo de e MARANGONI, Fernando José de Souza. In: A Suspensão do CNPJ - Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas - por Irregularidades na Importação de Bens. DVD Magister, edição n° 28, out-nov 2009.

100

Interessante registrar que atualmente pode se aplicar a impenhorabilidade para pessoa jurídica caracterizada como pequena empresa com conotação familiar (cf. REsp 470.893, Rel. João Otávio de Noronha, DJ 02.08.06, p. 246, DVD Magister, versão 24, ementa 11316975 - Editora Magister, Porto Alegre, RS), por serem "empresas que revelam diminutos empreendimentos familiares, onde seus integrantes são os próprios partícipes da

Ao criar a figura do bem de família legal, o legislador objetivou garantir o asilo, a subsistência e o patrimônio mínimo do núcleo familiar, resguardando-o de eventual execução forçada que privasse o devedor desse mínimo existencial101.

A despeito do que se possa imaginar, a defesa do patrimônio mínimo não viola o direito constitucional à propriedade, mas, assegura, dentro da própria estrutura jurídica e axiológica escolhida pela Constituição, que ela esteja vinculada à função social e que seja respeitado, também, o princípio constitucional da moradia (art. 6°, CF/1988)

Sobre a suposta contradição entre o direito constitucional à propriedade e a tutela do patrimônio mínimo, esclarece Luiz Edson Fachin:

Em certa medida, a elevação protetiva conferida pela Constituição à propriedade privada pode, também, comportar tutela do patrimônio mínimo, vale dizer, sendo regra de base desse sistema a garantia ao direito de propriedade não é incoerente, pois, que nele se garanta um mínimo patrimonial. Sob o estatuto da propriedade agasalha-se, também, a defesa dos bens indispensáveis à subsistência. Sendo a opção eleita assegurá-lo, a congruência sistemática não permite abolir os meios que, na titularidade, podem garantir a subsistência (pág. 232).102

Assevera Luiz Edson Fachin:

[...] a existência de uma garantia patrimonial mínima inerente a toda pessoa humana, integrante da respectiva esfera jurídica individual ao lado dos atributos pertinentes à própria condição humana. Trata-se de um patrimônio mínimo indispensável a uma vida digna da qual, em hipótese alguma, pode ser desapossada, cuja proteção está acima dos interesses dos credores.103

Assim, pontua Luiz Edson Fachin que, em conseqüência das transformações sociais capitaneadas pela Carta Magna de 1988, e do novo referencial que se estabeleceu, o “pólo do ordenamento jurídico passa a migrar a propriedade para a pessoa, em seu sentido ontológico.” 104

atividade negocial, mitigam o princípio societas distat singulis" (REsp 621.399, Rel. Luiz Fux, DJ 20.02.06, p. 207. DVD Magister, versão 24, ementa 11299719 - Editora Magister, Porto Alegre, RS). Neste processo, com esteio na posição de Luiz Edson Fachin (Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Renovar, 2001, p. 154), o STJ entendeu impenhorável imóvel pertencente à empresa e à família, no qual esta foi residir.

101

Agravo de instrumento. Ação de execução. Penhora de bem de família. Reconhecida a impenhorabilidade e afastada a constrição. Decisão agravada mantida. A matéria atinente à impenhorabilidade, prevista na Lei nº 8.009/90, é de ordem pública, já que visa a assegurar ao devedor a dignidade de sua família. Essa Lei está em consonância com o disposto no artigo 226 da Constituição Federal, que garante à pessoa um patrimônio mínimo, impedindo-se que o imóvel que constitua sua residência venha a ser penhorado. Restando comprovado nos autos ser o imóvel penhorado bem de família, deve ser mantida a decisão agravada que determinou o afastamento da constrição pela impenhorabilidade do bem. (TJ-MG; AGIN 1.0183.00.011741-0/0011; Conselheiro Lafaiete; 14ª Câm Cível; Relª Desª Hilda Teixeira da Costa; Julg. 12/02/2009; DJEMG 07/04/2009).

102 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar. 2001. p. 232. 103 Ibidem. p. 45.

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Salienta, ainda, que a tutela do patrimônio mínimo, com fundamento na dignidade humana, revela o novo sentido que ora se atribui à propriedade, demonstrando a modificação de sua perspectiva em tempos atuais105.

Percebe-se, destarte, que tal princípio será importante para assegurar a manutenção de condições mínimas existenciais aos devedores que se encontrem em situação de superendividamento, para que seja possível a utilização de um princípio amparado em valores constitucionalmente firmados ou que permita a construção de um argumento capaz de reconduzir o superendividado a uma situação de resolução de seus problemas, como será abordado a partir do tópico 5.5 (A possibilidade da eventual limitação de concessão de crédito como proteção da dignidade do contratante).

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