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Desde a preocupação das gestoras com a disposição inadequada dos resíduos nas salas de aula ou no pátio e com a compra de coletores especiais, até os planos de aula dos professores, o tema “lixo” foi sempre citado quando demonstrei minha curiosidade sobre as atividades relacionadas às questões ambientais ao visitar as escolas.

Todos os gestores das instituições que visitei mencionaram o uso de recurso do PDDE - Escola Sustentável para a compra de coletores especiais para a separação dos resíduos. Os “coletores de resíduos” estão presentes na lista de possibilidades para a utilização dos recursos do PDDE, no item “Aquisição de materiais diversos para adequações ou manutenção no espaço físico da escola” (BRASIL, 2014c).

Ao mesmo tempo em que tais iniciativas se destacavam nos currículos, a própria gestão dos resíduos era um problema. Na escola Buva, segundo a vice-diretora, a comunidade era prejudicada pela carência de coleta. A queima dos resíduos era recorrente, pois só havia coleta uma vez por semana em alguns locais. A coleta seletiva, por exemplo, ocorria na escola apenas uma vez por semana. Assim, em muitos locais a periodicidade da coleta seletiva não era suficiente para a quantidade de material separado nos bairros.

Também observei diversas práticas relacionadas à reutilização de materiais para produção de objetos, como exemplificado anteriormente. Em mais de uma escola houve o reaproveitamento de caixas dos mantimentos da merenda escolar para a disposição dos diferentes tipos de resíduos sólidos nas salas de aula, a fim de promover a coleta seletiva.

Por vezes ouvi relatos de gestoras e de professores sobre a necessidade da “conscientização” dos alunos para que separassem adequadamente o lixo produzido, de acordo com a classificação dos coletores: “É preciso fazer um trabalho forte de conscientização” (Professora da escola Buva, Nota do Diário de Campo, 24/02/15).

Dessa forma, além das questões de ordem operacional, como as exemplificadas nos relatos das professoras e gestoras, há de se considerar o tipo de abordagem pedagógica utilizada. Muitas atividades escolares relacionadas à temática dos resíduos sólidos acabam por

repetir uma abordagem prescritiva e moralista de educação ambiental, na qual o “lixo” se encaixa perfeitamente: é preciso ensinar como separar os resíduos, a forma certa e a forma errada, praticar os ensinamentos e avaliar se os alunos aprenderam. A temática se adapta bem ao processo escolarizado: passa pela formalização dos conteúdos, recorre ao especialista como mediador do processo e avalia a aprendizagem. Assim, para constituir sujeitos conscientizados, a escola age implicada no que Bernstein (1996) chamou de “dispositivo pedagógico” , referente aos modos como se dão a produção, a reprodução e a transformação 45 da cultura.

Outras questões que emergem estão relacionadas à possibilidade de conscientização: essa atitude aprendida de forma racional na escola vai ser reproduzida fora de seus muros? Há possibilidade de “conscientizar” os estudantes, por meio de um discurso ecológico técnico? A conscientização sobre o problema possibilita a mudança de atitudes com relação aos resíduos? A escola carrega, assim, a incumbência de iluminar os a-lunos (ou “sem luz”) para o conhecimento e a conscientização como promessa de um futuro melhor. No entanto, por vezes se aposta em processos que recorrem a um juízo moral: a boa ecologia, o certo e o errado, ou seja, acaba-se normatizando, de forma racional, a ideia de mudança de atitudes. É claro que essa é uma parte do processo de conhecimento, mas não se pode confiar a produção de transformações sociais apenas à razão, sem que a causa desperte, de fato, um envolvimento mais profundo dos sujeitos.

A preocupação em ensinar a forma adequada de separação dos resíduos se inscreve como norma de conduta para o bem da natureza, sem que se critique o modelo econômico vigente, que incentiva o consumismo, ou a hegemonia da ciência enquanto produtora de tecnologias remediadoras, em detrimento da educação. Assim, nos deparamos com uma educação ambiental normativa e antropocêntrica, na qual o ser humano produz danos à natureza ao explorar seus recursos de forma indiscriminada e depois procura caminhos economicamente viáveis para mitigá-los, sem se preocupar com as causas e com os processos naturais como um todo. A escola segue na linha da transmissão de conhecimentos, ensinando

Bernstein (1990; 1996) chamou de “discurso pedagógico” a forma especializada de comunicação proferida 45

pelas escolas e pelas universidades. Para ele, o discurso pedagógico é “uma espécie de transmissor da opressão”, um dispositivo de transmissão das relações de poder que estão fora da escola. Seu objetivo com esse conceito foi mostrar que há uma diferença entre o que é transmitido e a estrutura do dispositivo de transmissão, sendo o dispositivo pedagógico essencial na produção, na reprodução e na transformação da cultura.

uma ética exterior ao sujeito a partir de uma racionalidade técnica e não pelo reconhecimento do outro, em busca de uma atitude eticamente orientada.

De acordo com Casanova (2014, p. 76), que pesquisou as práticas ambientais em três escolas da rede municipal de Garopaba, Santa Catarina, “a conscientização vem se constituindo como um elemento central na educação ambiental, embasada no entendimento de que há um modo correto de se relacionar com a natureza”. A autora procurou olhar para as tensões entre a normatividade da educação ambiental no discurso pedagógico e na produção de sujeitos ecologicamente orientados, observando que a concepção presente nas escolas estudadas é influenciada pela necessidade de promover mudanças de comportamento, o que chamou de “consciência muito grande”.

Outra questão que quero aqui abordar são as dificuldades apontadas pelas professoras e pelas gestoras, principalmente focadas no desafio de separar o “lixo”. O problema da falta de coletores adequados para a separação dos resíduos se soma, no enfrentamento do problema, à falta de coleta seletiva e à crença na utopia da reciclagem. O primeiro fator foi citado pelas gestoras de quase todas as escolas visitadas; o segundo foi identificado a partir do meu questionamento, na sequência, sobre a coleta do lixo no local; o terceiro é uma reflexão a ser observada.

Enquanto as gestoras se preocupavam em providenciar coletores adequados e as professoras se preocupam em ensinar como separar os resíduos, tendo a elencar outra reflexão, mais voltada para a utopia da reciclagem. A crença na reciclagem como tecnologia mitigadora dos danos causados pela produção de resíduos sólidos, bem como a tarefa destinada ao cidadão - separar o lixo -, sendo o que vem depois uma função de terceiros, podem estar relacionadas a uma visão dicotômica e compartimentalizada do processo. Aprendemos na escola que temos a função de classificar os resíduos gerados em nossas residências para que outro (esperamos que o Estado) dê continuidade ao processo. No entanto, entre o cidadão separador de resíduos e a reciclagem há um longo caminho, de complexidade que cresce com fatores como o trabalho e a situação social dos recicladores, o valor comercial dos produtos reciclados, a poluição gerada na reciclagem, entre outros. Dessa forma, as questões ambientais estão relacionadas aos problemas sociais, mas seguimos tratando-os em dimensões separadas: de um lado a natureza “prejudicada” pelo lixo humano, de outro os

recicladores profissionais, os recicladores domésticos, os cientistas produtores de tecnologias mitigadoras da poluição, entre outros atores sociais.

A temática do “lixo”, principalmente no que tange a esperança pela via da reciclagem, encontrou um campo frutífero na escola. A normatividade prescrita nos currículos escolares oportuniza uma educação ambiental que pode ensinar as regras para um comportamento “ecologicamente correto”, independentemente se há reflexão sobre a complexidade do processo. De acordo com Layrargues (2011), a “Pedagogia dos 3Rs” (Reduzir, Reutilizar e Reciclar), que tende a valorizar apenas um dos três “Rs” – reciclar, tem sido privilegiada nas escolas. Ainda que eu tenha observado nas instituições que visitei um esforço no sentido de reutilizar os resíduos para outros fins, a coleta seletiva para a reciclagem ainda se apresentava como a principal aposta para abordar o problema.

Uma questão contraditória é apontada por Loureiro et al. (2007), a partir de dados de escolas que realizam atividades de educação ambiental e os modos que utilizam para a destinação dos resíduos sólidos no Brasil. Em 2004, 49,3% das escolas que promoviam a educação ambiental utilizavam a coleta periódica como destino final do lixo, mas um total de 41,3% procedia com a queima e menos de 5% das escolas reutilizavam ou reciclavam os resíduos. Ainda assim, segundo os autores houve uma diminuição de escolas que fazem educação ambiental e que jogam lixo em outras áreas ao invés de utilizar os demais recursos apontados, se comparados os dados obtidos em 2001, quando compunham um universo de 20,4%, e em 2004, com 11,9%. Eles também observam que houve um aumento da porcentagem de escolas que oferecem educação ambiental e que queimam os resíduos, de 36,1% em 2001 para 41,3% em 2004.

É importante observar que a reciclagem pode envolver um processo industrial, o qual pode demandar gasto energético e gerar poluentes. É claro que a economia da natureza deve estar na balança e, por vezes, a reciclagem pode ser uma ótima solução na gestão dos resíduos sólidos. Nesse caso não podemos esquecer que alguns produtos, como as latas de alumínio, têm um custo menor quando oriundos da reciclagem do que da produção a partir do metal novo, gerando uma boa renda para os recicladores e economia para a empresa que as utiliza (LAYRARGUES, 2011).

Mas aqui pretendo discutir, para além da balança financeira e ecológica, a problemática social, cultural e política na questão do lixo. Quando se pensa no lixo se

vislumbra o resíduo existente e não a sua produção. Ainda é pouco abordado na escola o consumismo que gera uma quantidade insustentável de resíduos. Ha um quarto “R”, o “recusar” que dificilmente chega a fazer parte da agenda ecológica do debate nas escolas. Há um grande investimento na prescrição de atitudes e mudança de comportamento – separar os resíduos – e pouco investimento em refletir sobre o consumo na sociedade capitalista, visando o “recusar” e o “reduzir”.

Layrargues (2011) entende que o paradigma da reciclagem anuncia uma solução para a problemática do lixo inscrito na lógica da racionalidade econômica. Assim, o desafio é encarado de forma técnica, na busca de tecnologias como a reciclagem, que compensariam os prejuízos de uma cultura do consumismo e do desperdício, bem como aqueles ligados ao tipo de produção (obsolescência planejada, descartabilidade). Também Escobar (2011) chama atenção para essa questão, lembrando que os ecologistas de perspectiva filosófica entendem que a crise ecológica é uma crise dos sistemas de pensamentos da modernidade. Assim, ao mesmo tempo em que a ciência e a tecnologia moderna contribuem com uma destruição da natureza, parecem prover soluções viáveis aos problemas causados.

A presença de estudantes jovens e adultos que trabalham como recicladores em uma das escolas que visitei traz à tona a importância da discussão sobre a questão social envolvida na gestão dos resíduos sólidos. Esses trabalhadores mais frequentemente atuam de maneira informal, desprovidos de benefícios trabalhistas, mas acabam por sustentar suas famílias com a atividade. No entanto, essa função social que a reciclagem tem no Brasil termina sendo ameaçada pela coleta seletiva doméstica: quando os próprios consumidores separam seus resíduos e esse é encaminhado para a indústria de reciclagem, os recicladores são eliminados do processo. De acordo com Layrargues (2011), a reciclagem disseminada pela “Pedagogia dos 3Rs” tornou-se um ato ecológico para os cidadãos, que acabaram por firmar um pacto oculto com a indústria ao garantir o retorno das latas de alumínio sem passar pelos recicladores.

Não quero aqui disparar um discurso da ecologia do medo, mas sim apontar importantes questões que observei nas escolas e as reflexões trazidas por Layrargues (2011), que analisou de forma aprofundada as diversas linhas que se emaranham na malha lixo- consumo-reciclagem-escola. Assim, sendo os resíduos sólidos um problema de ordem prática e cotidiana, é um tema que amplia a esfera de ação na escola, pois não se pode contar apenas

com as atividades de educação ambiental para o enfretamento dos desafios. Como foi observado, a administração das escolas precisou buscar recursos financeiros de políticas públicas para compra de coletores de resíduos e lidar com a carência de coleta, de responsabilidade das prefeituras municipais. Nesse sentido, ainda que as questões ambientais na escola fossem classificadas pelas professoras e pelas gestoras como ações da esfera da educação ambiental, outras ações são necessárias, o que amplia as estratégias de ambientalização do currículo.

Com base nessas experiências que relatei até aqui, no tópico que se segue pretendo abordar, para além das questões relacionadas aos resíduos sólidos, os outros fatores que emergiram como agentes que podem influenciar a ambientalização ou se constituem como desafios para a ambientalização das escolas visitadas.