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Como dito anteriormente, desde 1995 envolvi-me em projetos da Universidade Federal do Rio Grande do SUL (UFRGS) ligados ao morro Santana, na área da Botânica (Iniciação Científica) e com as práticas de educação ambiental, como estudante no Laboratório de Ecologia de Paisagem e mais tarde como professora no Colégio de Aplicação.

O morro Santana reúne um dos maiores potenciais de biodiversidade da região, compondo áreas verdes inseridas na malha urbana (figura 4). A vegetação dos morros de Porto Alegre é configurada por espécies que migraram de diferentes locais, em diferentes épocas, estabelecendo-se de acordo com as condições climáticas. Os elementos austrais- antárticos que formam os campos secos são oriundos de um período mais frio e seco, que

O “lixo” é compreendido como os materiais não aproveitáveis, enquanto que os “resíduos sólidos” são aqueles 34

que poderiam ser reaproveitados ou reciclados. Optei por manter “lixo” em alguns momentos como referência na interlocução com as escolas visitadas.

ocorreu por volta de 400 mil anos atrás. Os campos savanóides contém elementos chaco- pampeanos, como o butiazeiro , que chegaram aqui em um clima mais ameno, há cerca de 35 325 mil anos. Acredita-se que a formação das florestas se deu mais recentemente, há cinco mil anos, quando o clima tornou-se mais quente e úmido, oportunizando a migração de elementos atlânticos e da periferia amazônica para o sul do Brasil. Cabe também destacar a presença de espécies vegetais endêmicas, que só ocorrem nos morros graníticos de Porto Alegre (PORTO, 1998).

Dessa forma, o morro Santana apresenta-se como um mosaico de vegetação, o que favorece a diversidade da fauna e dos processos ecológicos que ali ocorrem. A fauna local ainda é pouco estudada, mas é importante registrar a presença de animais como o graxaim-do- mato, o mão-pelada e o ouriço-caixeiro, identificados por Penter et al. (2008), que cada vez se encontram mais confinados a poucos refúgios nas cidades, tendendo a uma extinção local. Outras espécies de mamíferos, como a capivara e o lobo-guará, que foram citadas por moradores da região, já não são mais encontradas. De acordo com os autores, é possível que as alterações dos ecossistemas tenham provocado a extinção local dessas espécies. Cabe também ressaltar a importância da área para aves migratórias, além das que residem ali.

Os nomes científicos e populares das espécies citadas ao longo do texto estão no anexo D. 35

Figura 4 - Vista aérea do morro Santana, inserido na malha urbana de Porto Alegre e Viamão.

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Fonte: Google Maps. Disponível em <https://www.google.com.br/maps/ @-30.0557913,-51.1156037,5326m/data=!3m1!1e3?hl=pt-BR>. Acesso em 13 nov. 2015.

O morro Santana tem uma importância histórica, pois se acredita que tenha sido palco do surgimento de Porto Alegre, a partir da instalação da sesmaria de Jerônimo de Ornellas Menezes e Vasconcelos, no século XVIII. De acordo com Souza (2012b), Jerônimo de Ornellas se instalou com sua família por volta de 1730, constituindo a posse de sua sesmaria em sete de dezembro de 1744. No período pré-colonial já estavam lá os tupis-guaranis, que foram os primeiros habitantes do morro. Eles desenvolveram atividades de criação de animais e cultivo de mandioca e milho.

No período que se seguiu, diferentes proprietários utilizaram a área para plantação, criação de animais e caça. Atualmente, a comunidade do entorno, principalmente de Porto Alegre e de Viamão, utiliza o morro Santana para a coleta de chás e outras plantas, para praticar atividades físicas ou religiosas e para fins de lazer. Um dos atrativos para o lazer deve-se ao marco de altitude que, aos 311 metros, indica o ponto mais alto de Porto Alegre.

Entre os conflitos observados no morro Santana, destaco a disposição inadequada de resíduos, a erosão provocada pela prática de motocross, a captura de animais silvestres, as queimadas dos campos e a violência. Além disso, a crescente urbanização, seja com a ocupação imobiliária regular ou irregular, têm provocado modificações nos ambientes verdes.

A área também é utilizada pelos Kaingang, que buscam ali o cipó para seus trançados. As comunidades que vivem na região da Bacia do Lago Guaíba, segundo Jaenisch (2010), utilizam quase exclusivamente espécies de cipó encontradas nas florestas inseridas na malha urbana. Em 2010, uma família Kaingang se instalou no morro Santana em uma área da universidade, como forma de reinvindicação de terras, gerando diferentes posicionamentos, à favor ou contra a sua permanência, na comunidade. O episódio findou quando, de forma judicial, a UFRGS garantiu a reintegração de posse e eles tiveram que deixar o local.

Nos anos 1950, a UFRGS se tornou proprietária de cerca de 600 hectares do morro Santana. Em 1989, o reitor Gehard Jacob e o vice-reitor Tuiskon Dick nomearam um grupo de professores que tinham como objetivo a implantação de um jardim botânico e de uma reserva ecológica na universidade (Portaria nº 1096/1989) . Dois anos depois, professores do 36 Departamento de Ecologia e parceiros dos departamentos de Botânica e de Zoologia da UFRGS, da Secretaria do Meio Ambiente e da Secretaria da Educação, ambas do Município de Porto Alegre, criaram um projeto com objetivo de estudar a área e apoiar a constituição de uma unidade de conservação. Esse e outros projetos foram sendo reeditados, e eu participei entre 1995 e 1999 do que foi denominado “Zoneamento ambiental do morro Santana com vistas à implantação de uma reserva ecológica”, coordenado pela professora Maria Luiza Porto, do Departamento de Ecologia da UFRGS.

Apesar da continuidade das pesquisas científicas, bem como da instituição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) em 2000, o movimento para a implementação da unidade de conservação só ganhou força em 2002, com criação da “Comissão de Implantação da Unidade de Conservação do Morro Santana” (Portaria IB nº 003/2003), compostas por professores, estudantes e funcionários da UFRGS. A comissão realizou consultas aos órgãos competentes, a fim de buscar o enquadramento da área do morro Santana em um dos sistemas de unidades de conservação. Além disso, reuniu documentos que serviram de base para a decisão do Conselho Universitário da UFRGS de aprovar a criação da unidade de conservação em 2004, pela Decisão CONSUN nº 61/2004. Em 2006, com a Decisão CONSUN nº 243/2006, foi estabelecida a área de 321,12 hectares para a unidade de conservação e a definição como tipo “Refúgio de Vida Silvestre”. Instituiu-se, assim, o

Informações disponíveis em: < http://www.ufrgs.br/sga/operacao-do-sga-da-ufrgs-1/projetos/unidade-de- 36

Refúgio de Vida Silvestre Morro Santana (RVSMS). No mesmo ano foi designada uma comissão para a implantação da unidade de conservação (Portaria nº 3870/2006), que propôs a criação de um Órgão Suplementar, visando à efetivação do RVSMS.

No entanto, até hoje ainda não houve inserção em nenhum sistema, o que dificulta os processos de legalização da unidade de conservação, bem como a formulação do plano de manejo e a obtenção de financiamento e de recursos humanos para a área. A coleta de plantas realizada pela comunidade, assim como a ocupação da área pelos Kaigang, entram em conflito com os objetivos da unidade de conservação, principalmente tratando-se do tipo Refúgio de Vida Silvestre, que prevê a proteção integral.

Dada a importância do morro Santana na minha trajetória acadêmica como estudante e como professora, nada menos esperado do que a escolha desse local para a minha investigação de doutoramento. Sendo assim, meu ponto de partida foi mapear e visitar escolas localizadas próximas à área do RVSMS, o que ocorreu entre fevereiro e março de 2015.

A primeira escola que visitei foi a Dente-de-leão , instituição de Ensino Fundamental 37 da Rede Estadual localizada em Porto Alegre. Fui recebida pela diretora e pela supervisora, as quais relataram que compraram materiais para a construção de uma horta na escola e coletores especiais para a separação dos resíduos com os recursos do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) Escolas Sustentáveis . A diretora contou que estavam trabalhando a fim de 38 “conscientizar” os estudantes para a separação dos resíduos. Em nossa conversa, não fizeram referência a uma caixa para coletar pilhas que vi no corredor de acesso da escola. Era uma caixa de papelão, reutilizada para aquele fim, com explicações sobre o processo de reciclagem das pilhas. Notei que um aluno perguntou sobre a caixa para sua professora, que explicou: “É para pilhas velhas e eles levam para reciclar”.

Conforme informação da equipe diretiva, a instituição atendia mais de seiscentos alunos, distribuídos em vinte turmas. Os espaços mais utilizados para recreação pelos estudantes dos Anos Iniciais eram a quadra de esportes e o pequeno pátio entre os prédios, à frente do refeitório. A horta era o único espaço verde da escola, pois de resto a área era composta por prédios, com pouca vegetação. A escola era rodeada por muros altos e a entrada era feita por um pequeno portão de metal, sob o cuidado de um porteiro.

Foram utilizados nomes fictícios para as escolas visitadas durante a primeira etapa da pesquisa. 37

Os detalhes sobre o PDDE Escolas Sustentáveis foram descritos no capítulo 2. 38

Em uma das visitas conversei com professoras dos Anos Iniciais, com a professora de Ciências dos Anos Finais e com alguns estudantes, na tentativa de descobrir informações relacionadas ao morro Santana. Nenhuma das pessoas com as quais tive contato sabia de qualquer atividade da escola no morro; as estudantes se referiram à encosta (na parte mais urbanizada, dentro do bairro) apenas como “colina”. Por parte das professoras, foi enfatizada a construção da horta escolar: “Escreve aí”, disse uma delas, contando que tinham uma composteira, faziam adubação orgânica com materiais trazidos pelos estudantes, não utilizavam agrotóxicos e captavam água da chuva (Nota do Diário de Campo, 03/03/15). Além disso, afirmaram a importância de orientar a comunidade sobre a alimentação saudável, lembrando que os produtos da horta eram utilizados na merenda escolar. Naquele momento a horta estava abandonada, o verão estava sendo muito intenso e as plantas não resistiram.. Com o início das aulas, o trabalho deveria ser retomado.

Ainda no mês de março visitei outra escola estadual, a escola Tanchagem, em Viamão. Era uma escola de grande porte, com Ensino Fundamental e Médio. Fui recebida pela vice- diretora, que afirmou não ter nenhum trabalho relacionado com o morro Santana, mas que já haviam ocorrido algumas ações isoladas, como caminhadas nas trilhas e atividades com o professor de Química, em outros anos. Não tive a oportunidade de conhecer a escola, mas faço aqui este registro para compor as observações posteriores.

No mesmo período conheci a escola Caruru, uma pequena escola de Ensino Fundamental da rede municipal de Viamão. Havia um prédio que continha as salas de aula e administrativas e um pátio em frente, de chão batido. Lá me deparei com um problema muito sério na comunidade, que afetava diretamente a escola: uma disputa pelo comando do tráfico de drogas ilícitas. A diretora contou que tinham ocorrido tiroteios, inclusive durante o dia, e assassinatos de pessoas envolvidas com o tráfico. Disse que muitos estudantes não estavam frequentando as aulas, pois havia o risco de ser alvejado por uma bala perdida no caminho para a escola. Algumas famílias tinham ido para o litoral do estado e só voltariam quando a violência tivesse diminuído. Sobre a relação da escola com o morro Santana, relatou que a escola recebera oficinas ministradas por professores e estudantes da UFRGS em anos anteriores. Porém, quando os projetos terminavam, não havia a continuação de atividades relacionadas ao RVSMS na escola. Ela também informou que houve momentos em que alguns professores fizeram caminhadas nas trilhas com os alunos, mas que isso era eventual.

Naquele ano, já iniciado com tamanha violência no bairro, não via possibilidade de continuar com essas visitas.

Desde que iniciei minhas pesquisas na UFRGS em 1995, ainda na graduação, já havia a referência da presença da violência no morro Santana. Dessa forma, mesmo dentro da área da universidade, para fazermos trabalhos de campo no morro precisávamos de apoio da equipe de segurança da UFRGS ou do Batalhão Ambiental da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul. Em todas as atividades que realizei, seja sozinha, com outros pesquisadores ou com alunos da graduação ou das escolas, solicitei o acompanhamento dos guardas.

Nesses mais de vinte anos, ouvi vários relatos de violência no local, assisti os campos incendiarem várias vezes e presenciei o atear fogo de forma intencional dentro da área da UFRGS, quando fazia uma atividade com estudantes da graduação. Infelizmente temos dificuldade de acessar a área e as trilhas em função dos relatos sobre roubos e estupros, tráfico de drogas, abandono de carros roubados e de corpos de pessoas assassinadas. Eu mesma só estive uma vez na famosa cascata que existe no meio da floresta, isso ainda na década de 1990, por ser considerado um local perigoso.

Tal situação não é exclusividade do morro Santana, mas se repete nos outros morros de Porto Alegre, sendo ou não locais que abrigam unidades de conservação. Também não se trata de um caso isolado, se considerarmos outros casos no Brasil – muitas outras unidades de conservação encontram-se inseridas na malha urbana e servem de refúgio para atividades ilícitas, causando medo na população, que cada vez se afasta mais desse ambiente.

Além de fatos divulgados nas mídias , pesquisas têm apontado a questão da violência 39 nas unidades de conservação inseridas em zonas urbanas como uma das ameaças a essas áreas. Um exemplo foi resultado das pesquisas em unidades de conservação sob a influência de áreas urbanas de Debetir (2006), na Ilha de Santa Catarina. Em seu diagnóstico, o autor identificou conflitos relacionados à presença de fugitivos da polícia e de traficantes de drogas em duas unidades de conservação, o Parque Municipal da Lagoinha do Leste e a Reserva

Alguns exemplos desse tipo de registro: “Natureza ameaçada pela violência urbana”, disponível em: <http:// 39

noticias.band.uol.com.br/cidades/rio/noticia/100000749433/natureza-ameacada-pela-violencia-urbana.html>; “Santa Clara: Parque Ambiental está entregue à violência”, disponível em <http://cidadeverde.com/videos/8543/ santa-clara-parque-ambiental-esta-entregue-a-violencia> e “Homem é encontrado morto dentro do Parque da Redenção em Porto Alegre”, disponível em <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/02/homem-e- encontrado-morto-dentro-do-parque-da-redencao-em-porto-alegre-4694463.html>. Acesso em 22 out. 2015.

Natural Menino Deus, respectivamente. Outra pesquisa, realizada por Souza (2011) no Parque do Cinturão Verde de Cianorte, no Paraná, registrou a preocupação dos visitantes com relação à segurança como um dos principais fatores de desconforto para frequentar o local.

Por isso, torna-se pertinente refletir sobre o papel da violência nessas áreas. Como se poderiam acessar esses ambientes naturais com objetivos de lazer, pesquisa, contemplação, religiosidade, ou outros ainda, disputando com a violência? Nesses espaços a paisagem da violência se sobrepõe à paisagem natural de tal forma que acaba limitando o acesso da maioria da população, sejam quais forem seus motivos. Estabelece-se um conflito no qual a segurança se contrapõe à própria conservação do ambiente, se levarmos em conta que por vezes as populações residentes são levadas a “cortar o mato” para que esse não sirva de refúgio para criminosos. Por outro lado, a violência urbana pode alimentar uma visão romântica de natureza, pois encerra naquele espaço a construção cultural de uma natureza boa, bela e moralmente justa.

No entanto, sendo o morro Santana um local evitado em função do mal, no caso, a violência, a natureza real transborda essa concepção romântica de natureza. A concepção romântica é abordada por Carvalho (2009) ao tratar das “várias naturezas da natureza”, onde a autora demonstra que as diferentes produções de sentidos vão influenciar as experiências e o agir político relacionados à natureza na contemporaneidade. No caso do morro Santana, a idealização romântica da natureza, que tanto sustenta as práticas ecológicas, é superada pela realidade.

Assim, as escolas que se localizam no entorno do morro Santana, ao invés de configurarem pontes entre a comunidade e a unidade de conservação, acabam se tornando refúgios contra a violência que domina a região. As práticas de saídas ao ar livre, como caminhadas nas trilhas, são evitadas em função da segurança dos alunos e dos professores. Outra questão a ser considerada é que ainda não há inserção do RVSMS em um sistema de unidades de conservação. Com o avanço da violência e da falta de estrutura física e de recursos humanos, que poderiam ser captados por financiamentos destinados à unidade de conservação, bem como da elaboração de um plano de manejo, a UFRGS promove medidas de segurança que cada vez mais afastam a comunidade, como o cercamento do campus.

Considerando os relatos das pessoas com quem conversei nas escolas sobre as atividades ambientais relacionadas ao morro Santana, o afastamento da comunidade por causa

da violência na região e a indefinição legal da própria unidade de conservação, aos poucos fui avaliando que esta região, um campo antes sonhado para minha pesquisa, não parecia muito promissor para conhecer os processos de ambientalização, uma vez que esses pareciam estar prejudicados pelo contexto de violência do local.

Naquele ponto, segui buscando informações para entender como era a situação de outras regiões semelhantes, isto é, de outras escolas que se localizavam próximas ou dentro de unidades de conservação em Viamão e em Porto Alegre. Passarei a descrever no tópico a seguir esses outros locais, os quais busquei na continuidade da pesquisa.