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Os alunos não aprendem porque não conseguiam respirar: “tem que

A EEIEF Nhamandu Nhemopuã, que funciona dentro da aldeia Guarani-Mbyá de Itapuã promove, uma vez por ano, a “Semana Cultural”, quando recebe estudantes e professores de outras escolas e apresentam a “cultura guarani” . Quando participei da 63

Semana Cultural em abril de 2016, o evento foi organizado em dois momentos: o primeiro foi a apresentação de um seminário, realizado em um auditório na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e o segundo foi uma visita de um dia na aldeia.

No seminário aconteceu uma sequência de falas de palestrantes, com a tentativa de promover um trabalho intercultural, de forma horizontal, com trocas entre as diferentes culturas e epistemologias. A mesa era formada pelo cacique da aldeia de Itapuã, dois “sábios” da universidade – pesquisadores da UFRGS - e dois sábios guaranis. Um dos palestrantes da UFRGS falou sobre a expropriação de terras indígenas, inclusive na área do Parque Estadual de Itapuã. Como referido anteriormente, foram identificados sítios Guarani dentro do PEI. Também um sábio guarani, que falou mais tarde no evento, fez referências às perdas de terras indígenas no Rio Grande do Sul, principalmente na região das Missões e em Itapuã.

Wagner (2010) entende que a cultura existe como se fosse uma “invenção”, afirmando que “a antropologia é o

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estudo do homem como se houvesse cultura” (p. 38). Apesar de concordar com a relativização do conceito, mantive a expressão por ter sido a forma utilizada no evento.

Em 2000, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) demarcou uma área de 22 hectares que constituíram a aldeia de Itapuã . Aqui cabe mencionar que a demarcação de terras não 64

atendeu as expectativas dos Guarani-Mbyá, pois apesar de estar próxima ao parque, não ficava no local onde os eles reivindicaram o reconhecimento de seu território tradicional.

O discurso do cacique foi voltado para os não indígenas, pois ele fazia um esforço para adequar conceitos como o de “cacique”, que para eles não existe, para o entendimento da plateia. Explicou que, assim como “cacique”, também não existia em Guarani a palavra “natureza”. Ainda que não houvesse tal conceito, sua fala foi várias vezes pautada pela reflexão sobre as relações entre humanos e natureza. Segundo ele, na cosmologia Guarani acreditava-se no espírito da natureza; já os “brancos”, que a destruíram, esqueciam que ela era “o espírito de todas as pessoas” (Nota do Diário de Campo, 19/04/16).

Durante o seminário, uma dificuldade apontada pelos sábios guaranis com relação à área da aldeia era a configuração da vegetação, que tinha sido alterada com a substituição das florestas originais pela plantação de eucaliptos. Os eucaliptos foram plantados muitas décadas antes para serem utilizados na construção civil e no abastecimento das fornalhas do Hospital Colônia de Itapuã. Na visita à aldeia, um dos sábios contou que tinham plantado cerca de mil mudas de plantas nativas no ano anterior, no intuito de recuperar a vegetação original. Antes, no auditório da UFRGS, o cacique tinha afirmado que quando havia mais florestas não ocorriam tantas doenças entre os guaranis. A floresta proporcionava a sombra, o ar puro e o conforto térmico. Ele dizia que estar naquele auditório o fazia se sentir em uma “selva de pedra”, e que quase não conseguia respirar nem falar muito. Virando-se para a professora, disse que os alunos não aprendiam na escola porque não conseguiam respirar e morriam de calor dentro da sala de aula: “tem que levar eles para fora” (Nota do Diário de Campo, 19/04/16).

Apesar de não ser este o foco do trabalho, e reconhecendo que minhas observações na aldeia não são suficientes para uma análise mais aprofundada, aproveito a afirmação do cacique para pensar o modo como a escola segue, por vezes, o trabalho dentro da sala de aula.

O aldeamento não é, até hoje, a melhor solução para os conflitos de território. Ainda que a demarcação das

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áreas seja necessária para a proteção dos indígenas em relação à expansão dos não indígenas, Denardi (2012) esclarece que na tradição dos guaranis a terra é livre e não pode ser cercada ou delimitada. O cacique contou no dia da visita que há anos acontecia um processo de aldeamento dos guaranis, contrário aos seus hábitos de mudar-se para outros lugares. Esses trânsitos ocorriam porque havia um apego espiritual ao território e que buscavam outros espaços quando alguma dificuldade nesse âmbito surgia. O aldeamento impede esse movimento, tendo sido implantado compulsoriamente para “deixar parado”, segundo a fala do cacique na Semana Cultural.

Mesmo não compartilhando desse conceito de natureza, os Mbyá acabam tendo que negociar com a epistemologia não indígena ao frequentar a escola. Uma das preocupações era de que a escola, com seu ambiente formal, provocasse uma perda de conexão com a natureza – o que de certa forma ocorre, pois quando a estrutura de escolarização impõe a sala de aula como ambiente de aprendizagem, as crianças “não conseguem respirar”. De acordo com Schweig (2015), entre os pressupostos da proposta da “teoria da cultura mundial” estão a escolarização obrigatória, em escala mundial massiva, em sala aula, a qual se organiza em forma de palestra, predominando o “trabalho sentado” (ANDERSON-LEVITT, 2003, p. 5 apud SCHWEIG, 2015).

Não apenas os Mbyá não conseguem respirar e morrem de calor; a escolarização “sentada” atinge a todos. Ainda que já tenha passado por décadas de escolarização, senti no meu próprio corpo, preso em uma cadeira desconfortável no auditório da UFRGS, calor e dificuldade de respirar. Concordo com os sábios guaranis: às vezes temos que sair da sala de aula para conseguir aprender.

Além da escola Nhamandu Nhemopuã, próximo à aldeia indígena há outras duas escolas, a EMEF Frei Pacífico e a EEEF Caldas Júnior, e o Hospital Colônia de Itapuã. Essas instituições se localizam na região conhecida como “Colônia”, que será objeto do tópico a seguir.