• Nenhum resultado encontrado

Ensino Superior

Capítulo 3 – Factores Explicativos do Sucesso Académico

3. Teorias e Modelos do Desenvolvimento Cognitivo

3.3. O Modelo de Julgamento Reflexivo de King e Kitchener

Um esquema de desenvolvimento intelectual idêntico ao anterior foi construído por King e Kitchener (1994). As autoras consideravam que o julgamento reflexivo fora, de alguma forma, negligenciado enquanto aspecto integrante do pensamento crítico no estudo do desenvolvimento intelectual. Neste sentido, realizaram uma série de entrevistas para avaliar a forma como os sujeitos pensavam sobre as controvérsias da vida quotidiana. King e Kitchener (1994) construíram o que designaram de Modelo de Julgamento Reflexivo, tendo em vista encontrar uma resposta para o problema das crenças individuais que estão na base da resolução de problemas preocupantes, para os indivíduos em geral, e para os estudantes em particular.

Para King e Kitchener é o pensamento reflexivo que permite responder aos postulados epistemológicos e aos problemas mal estruturados. De facto, a estrutura de um problema remete para a possibilidade de o descrever com exactidão e para o grau de certeza com que uma solução pode ser assumida como correcta. No seu entender, os problemas bem estruturados possuem uma única resposta correcta, enquanto que os problemas mal estruturados não podem ser descritos com alto grau de certeza.

Ao construírem este modelo, King e Kitchener (1994) tinham como objectivo proporcionar uma descrição coerente do julgamento reflexivo para além do relativismo de que fala Perry (a que nos reportaremos de seguida).

As autoras consideram que o julgamento reflexivo “descreve a progressão desenvolvimental que decorre entre a infância e a vida adulta, no sentido em que as pessoas compreendem o processo de conhecimento e, em moldes equivalentes, justificam as suas crenças relativamente aos problemas mal-estruturados” (King &

Com base nos resultados encontrados, King e Kitchener postularam um modelo que contemplava sete estádios desenvolvimentais, cada um relativo a uma rede de postulados coerentes, relativos à realidade e a conhecimentos utilizados pelo indivíduo na percepção, organização e avaliação da informação que recebe. Estes estádios representavam o crescimento e a evolução de uma fase pré-reflexiva e quase-reflexiva, para o pensamento reflexivo (Kitchener & King, 1981). Cada estádio era caracterizado por uma perspectiva do conhecimento e um processo de justificação desenvolvido pelos sujeitos com vista à legitimação das suas crenças (Richardson, 2005b). Partindo do princípio de que o sujeito é capaz de emitir juízos de valor acerca dos problemas com que se depara, Kitchener e King (1981) consideram que a formação dos indivíduos se caracteriza por graus de complexidade, sofisticação e compreensão crescentes – este processo inicia-se nos estádios inferiores, tendo em vista atingir estádios superiores. Estes estádios estão organizados em três níveis de pensamento: pensamento pré- reflexivo (estádios 1, 2 e 3), pensamento quase-reflexivo (estádios 4 e 5) e pensamento reflexivo (estádios 6 e 7).

No estádio 1, o conhecimento é encarado como absoluto, processando-se a sua apreensão através da observação. Assim, as crenças dos sujeitos não necessitam de justificação, uma vez que a verdade e aquilo em que cada um acredita estão em harmonia: “Eu sei o que vi” (King & Kitchener, 1994, p. 14). No 2º estádio, o conhecimento é algo certo mas que não pode ser acedido no imediato: pode ser obtido directamente através dos sentidos (observação directa) ou de figuras de autoridade (como por exemplo os professores). As crenças encontram justificação (ou não) na defesa das mesmas crenças por uma figura de autoridade. No 3º estádio, o conhecimento assume-se como certo (proveniente de autoridades, como por exemplo,

especialistas na matéria) ou temporariamente incerto (em que todas as crenças pessoais são legítimas e têm justificação).

No 4º estádio, o conhecimento é algo de incerto, em virtude da ambiguidade resultante da influência das variáveis situacionais. As crenças justificam-se com base na razão e nos dados objectivos, apesar da existência de tendências idiossincráticas nas alegações de conhecimento. No 5º estádio, o conhecimento passa a ser entendido como contextual e subjectivo. Apenas podem ser conhecidas as interpretações dos dados ou dos acontecimentos. As justificações incluem a interpretação dos factos num contexto específico: “as pessoas pensam de maneira diferente e por isso lidam com o problema de maneira diferente. Outras teorias podem estar tão certas como a minha, embora baseadas em evidências diferentes” (King & Kitchener, 1994, p. 15).

O 6º estádio reporta-se ao início do pensamento reflexivo. Aqui, a construção do conhecimento é feita através de conclusões individuais sobre problemas mal estruturados, com base na avaliação das opiniões de especialistas na matéria. As crenças encontram justificação na comparação de dados com opiniões em contextos diferentes. Nas palavras das autoras, “é muito difícil nesta vida ter a certeza. Há graus de certeza. Chega uma altura em que uma pessoa está suficientemente segura para assumir uma posição pessoal num determinado assunto” (King & Kitchener, 1994, p. 15). No 7º estádio, o conhecimento é entendido como o resultado de um processo de pesquisa que envolve a construção de soluções para problemas mal estruturados. A adequação das soluções é avaliada tendo em conta o que é razoável ou provável, com base nos conhecimentos existentes no momento. As soluções são sempre passíveis de reavaliação, caso surjam novos dados, e as crenças justificam-se pelo peso das evidências, pelo poder explicativo das interpretações, pelo risco de conclusões erradas e

pelas consequências de julgamentos alternativos. Neste sentido, destaca-se o carácter probabilístico inerente à justificação das crenças (King & Kitchener, 1994, p. 15).

Em termos globais, a investigação das autoras demonstrou que, ao longo da frequência de um curso superior, se assiste a um aumento considerável no julgamento reflexivo. Na verdade, alguns estudos transversais e longitudinais foram consistentes quanto à mudança, particularmente entre os estádios 2 e 5, relativos ao pensamento pré- reflexivo e quase-reflexivo.

King e Kitchener falam nas suposições, reportando-as ao conhecimento propriamente dito e à forma como este é adquirido pelos indivíduos, e associando-as a estratégias de natureza diversa utilizadas na resolução de problemas mal-estruturados. São as suposições que permitem aos indivíduos lidar com a incerteza que caracteriza o conhecimento. Os estádios, por seu turno, constituem formas de justificação de natureza mais complexa e com um maior grau de eficácia, conduzindo à avaliação e à defesa de pontos de vista particulares (Ferreira & Ferreira, 2001).

Para as autoras, a capacidade de pensar de uma forma reflexiva desenvolver-se- ia sequencialmente, existindo uma interdependência entre os estádios iniciais e os seguintes. Em termos de processo, verificaram que à medida que se vão desenvolvendo, os indivíduos conseguem mais facilmente avaliar os objectivos e o que está na base do conhecimento, bem como explicar e defender os seus pontos de vista, no sentido de efectuar julgamentos reflexivos (King & Kitchener, 1986, 1994).

De acordo com Bastos (1998) o julgamento reflexivo resulta do progresso que o indivíduo faz ao longo do seu desenvolvimento, o que pressupõe que o sujeito aprenda a defender as suposições epistémicas de que falam as autoras. Bastos vai mais além ao afirmar que os critérios de triagem do conhecimento proporcionados pelo modelo de King e Kitchener nos ensinam “a ir cada vez mais longe na nossa busca de justificação

para os problemas mal-estruturados. E essa procura é um processo que se desenrola ao longo da vida” (p. 47).

Para Kitchener e King (1989) é possível observar melhorias no desenvolvimento cognitivo à medida que o nível de escolaridade aumenta. Os dados dos estudos longitudinais que realizaram demonstraram um maior desenvolvimento ao longo de intervalos de 1 a 4 anos para a maior parte dos sujeitos estudados. Nas amostras estudadas, tanto a educação com a idade relacionavam-se com o desenvolvimento cognitivo, surgindo a primeira como uma variável com um papel mais determinante do que outras experiências de vida (Hood & Deopere, 2002).

Não obstante, também o trabalho de King e Kitchener tem sido alvo de críticas. De acordo com Ferreira e Ferreira (2001), ao compararem o modelo de Perry (1970) com o modelo de King e Kitchener (1994), consideram que este último pode constituir, não uma teoria distinta da de Perry, mas antes a revisão dessa mesma teoria. Ainda assim, trata-se de um contributo muito importante para a evolução do conhecimento sobre a temática em questão, ao permitir posicionarmo-nos em relação aos problemas mal estruturados (Bastos, 1998), além de se assumir como uma mais valia para a distinção entre pensamento reflexivo e pensamento crítico.