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O pacto da formação: entre a regulação e a emancipação

CAPÍTULO IV. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.2 O pacto da formação: entre a regulação e a emancipação

O contexto da Associação parece adquirir no âmbito deste trabalho alguma importância, na medida em que é o trabalho desta organização que permite o desenvolvimento destes cursos no local em causa, funcionando enquanto agente. Se inicialmente a ACMVV tinha já intenções de investir na formação, pode-se constatar que não foi por sua exclusiva iniciativa que ela se desenvolve:

46Pode-se constatar pelos formulários de candidatura à acreditação, por exemplo, que o trabalho voluntário não é consagrado como forma de trabalho válida, assim como a existência de elementos informais no trabalho.

“Nós já estávamos a pensar criar um departamento de formação há bastante tempo, mas na altura não havia grandes meios financeiros. O que fazíamos eram coisas pontuais, pequenos cursos financiados por quem os frequentava. Entretanto, surge esta proposta da Competir e foi uma grande oportunidade para avançarmos e fazermos o que queríamos já há muito tempo e não tínhamos oportunidade para fazer” (Coordenadora da formação).

Este tipo de prática não é raro entre organizações deste tipo (Guimarães, Silva e Sancho, 2006), que alia iniciativas popularmente iniciadas e que progressivamente se vão tornando em “projectos socialmente induzidos”, com base em estruturas organizativas com complexidade crescente e, em muitos casos, enquadrando-se em projectos mais abrangentes, financiados a partir de políticas globais pensadas para certos contextos, que é o que parece acontecer neste caso. É, então, deste modo que a viragem no sentido do pacto da formação tem como significado o da sobrevivência, na medida em que o financiamento em muitos casos vai constituindo uma garantia de sobrevivência e de actividade, ainda que a actividade principal neste caso não seja a formação. É precisamente a este ponto que o Presidente da Associação se refere quando diz que:

“Agora o investimento é maior. Temos actualmente uma parceria com uma empresa de formação, a Competir, que nos trouxe muitas mudanças: temos maior organização, capacidade de aprendizagem, sustentabilidade económica… As mudanças que entretanto se realizaram, no fundo, foram aquelas mais úteis que pudemos fazer para manter a Associação” (Presidente da Associação).

Também a Coordenadora afirma que foram melhorados muitos aspectos organizacionais, com tendência de formalização, que também significam em grande escala adequação ao modo de trabalho imposto pelos centros de avaliação da acreditação. Registam-se assim, no trabalho associativo: maior complexidade; especialização e divisão do trabalho, com a criação de um novo gabinete referente à formação e com a respectiva especialização dos recursos humanos; a formalização dos estatutos e a tendência de hierarquização: “tem vindo a hierarquizar-se e penso que é importante que isso aconteça, os compromissos assumidos a isso obrigam: a uma linha hierárquica e a uma maior organização” (Presidente da ACMVV)47. Esta

47Independentemente da organização da associação e das mudanças organizacionais no associativismo local, há uma questão que não se perdeu na associação, para o seu presidente, existe uma proposta de formação e educação que contempla actividades de cariz popular em simultâneo com a formação acreditada. Nas suas palavras: “Agora temos este protocolo, somos uma estrutura muito mais formalizada. Mas

afirmação reflecte a perda de características típicas de uma associação, a organização

achatada

48, participada, tendencialmente com órgãos colegiais e uma igualdade na distribuição de cargos.

No entanto, seguindo a linha de investimento na formação, o que a Associação parece almejar é o estatuto de acreditação, com fins diversificados:

“Nós já estávamos a pensar realizar o processo de acreditação mas essa proposta permitiu aproveitar as potencialidades que tínhamos na época, por isso aceitamos. Preparou-nos melhor para agora entrarmos sozinhos no mundo da formação, enquanto entidade acreditada” (Presidente da Associação);

“A prioridade máxima neste momento é a acreditação, porque se queremos avançar para outro tipo de formação também queremos que seja certificada e reconhecida. A acreditação não tem a ver só com as possibilidades de financiamento, nem é essa a principal prioridade. A acreditação vai servir-nos para fazer coisas diferentes. Agora podemos passar certificados mas valem o que valem. Queremos dar uma garantia de qualidade e a nível administrativo a acreditação dá outro peso” (Coordenadora da formação).

O estatuto de organização acreditada parece ser então encarado como um sinónimo de autonomia, tanto em relação à outra entidade, como pelo estatuto social, pois dá a hipótese de acesso directo ao financiamento e também confere à entidade acreditada poderes para emitir certificados com esse estatuto, que serão mais credibilizados e valorizados pelos frequentadores dessas formações e este aspecto torna-se importante quando esta em causa a entrada no mercado de aprendizagem: enquanto factor de competitividade. Senão vejamos, que a Associação pretende alargar as suas actividades a outros públicos, embora os diferentes intervenientes entrevistados atribuam um peso diferente aos públicos:

“Na minha opinião, é muito bom qualificar as pessoas e até lhes pagar para frequentar uma formação, mas todos sabemos que o país está a passar um momento de crise e

não queremos perder essa formalidade. Por outro lado, queremos também manter um registo de ocupação de tempos livres, fora dos cursos normais, dentro da vertente do lazer (…), nos quais queremos investir, para que qualquer pessoa de qualquer idade possa aprender música. Queremos também estar ligados a actividades de raiz popular. São dinâmicas que não queremos deixar cair”. Existe também uma preocupação social, pelo que procuram chegar a públicos mais desfavorecidos, como menciona aquele entrevistado: “Pretendemos chegar sobretudo aos menos formados, aos mais abandonados”.

48Este é um conceito utilizado por Mintzberg (1996) para definir uma organização cuja linha hierárquica é muito estreita, nas suas palavras: “ uma estrutura descentralizada tanto na dimensão vertical como na dimensão horizontal” na qual “Uma grande parte do poder do trabalho operacional está situada na base da estrutura, partilhada com os profissionais do centro operacional” (Mintzberg, 1996: 386). Esta organização do trabalho dá origem a uma estrutura organizacional representada graficamente de forma mais achatada e horizontal. No entanto, este termo percorre grande parte da teoria neoclássica da administração, com origem na década de 50 (Chiavenato, 2004).

este quadro comunitário acabará em 2013 e não me parece que o próximo seja para continuar a investir nesta área. Penso que, por outro lado, a formação profissional nunca há-de acabar, porque as pessoas cada vez mais têm de se tornar competitivas e Portugal cada vez vai entrar nesse mundo que já é uma realidade noutros países. Por isso acho que a formação profissional nunca vai acabar, a formação profissional enquanto formação contínua, de aperfeiçoamento, de conhecimento de novas técnicas e de evolução, para quem trabalha numa determinada área. Até porque a tendência é a da polivalência e flexibilidade. Uma das nossas apostas estratégicas é a da formação profissional” (Coordenadora da Formação);

“Pretendemos chegar sobretudo aos menos formados, os mais abandonados. (…) Precisamente porque não pertencem ao mundo do mercado de aprendizagem é que precisamos de manter o financiamento externo, de outro modo não conseguimos chegar a esse público” (Presidente da Associação).

Embora a questão dos públicos seja importante, ela está amplamente relacionada com a capacidade de trabalho autónomo, de desenvolvimento, e por outro lado, com a expectativa de abandono de um modo de trabalho dependente e desprovido de recursos. Ainda que o sistema de formação acreditada a que têm acesso, através da parceria, não pareça oferecer muito mais para além da possibilidade de desenvolvimento das formações, sendo consultados nas questões das áreas de formação a desenvolver e no volume de formação em aposta. Por outro lado, somente o processo de acreditação em si parece corresponder a um mecanismo de avaliação, incidindo principalmente na exigência da racionalidade organizacional, na medida em que os documentos que tornam a base do consentimento de legitimação, realizam a construção de uma crença que se pretende disseminar do que deve a formação ser e sobre que processos administrativos ela se deve desenvolver, indicando os procedimentos correctos a adoptar. Assim, os registos devem ser o reflexo de uma avaliação, da auto-avaliação, desenvolvida sobre o signo de uma racionalidade

a priori

, excluindo completamente um tipo de racionalidade na qual os sentidos atribuídos à acção surgem depois desta ter ocorrido quando, frequentemente, os fins e objectivos organizacionais muitas vezes ou não são claros ou não estão bem definidos. Às organizações em processo de acreditação são pedidas a definir-se nestes termos ao colocar o sistema de recompensas na capacidade de racionalização organizacional e nos resultados, a tendência é a colocação do foco de análise no desempenho. A tónica é colocada assim, em resultados mensuráveis e observáveis para estabelecer uma base de responsabilização credível,

tornando também possível a comparação entre sectores e entidades, uma vez que, se os objectivos estão definidos previamente – avaliação criterial – é possível realizar esta operação de comparação. Parece então existir uma tentativa de articulação entre o

Estado-avaliador

(Afonso, 2005), preocupado com a imposição de regras e padrões comuns e com o controlo e a ideia de mercado educacional que se baseia na diversidade de oferta e na competição.

Existem interpretações teóricas que defendem que as crises sociais e educacionais se relacionam de forma íntima com as condições e consequências do sistema económico e aliás Hargreaves (Afonso, 2005) considera mesmo que parte da

educação organizada

é lugar do Estado, sugerindo que “a forma como o Estado gere a educação está fortemente condicionada pela

sorte da economia

e pelas estratégias adoptadas para lidar com os problemas que derivam do sistema económico” (Afonso, 2005: 109). Deste modo a acreditação pode significar a implementação de um mecanismo de mercado, na medida em que “O mercado em educação não é o mercado clássico da concorrência perfeita mas um mercado cuidadosamente regulado e com controlos rígidos” (Afonso, citando Stewart Ranson, 2005: 116), ao controlar o conteúdo da formação, através dos referenciais de formação, aumentando o poder sobre a actividade formativa, também através da definição do tipo de avaliação dos interveniente directos na formação e de parâmetros de avaliação das próprias entidades, principalmente ao nível organizacional. Numa época de crises, económica e de qualificações e de perda de legitimidade política, a introdução de um Sistema Nacional de Qualificações, de Referenciais da Formação e de normas-padrão através de formulários tipo e da imposição de Requisitos Gerais e Específicos de Acreditação, pretende traduzir uma preocupação com os consumidores e transmitir a ideia de que os responsáveis políticos estão preocupados com a necessidade de elevar os níveis e a qualidade da formação. A avaliação, neste caso, e sobretudo aquela que se processa no âmbito de acreditação, parece adquirir contornos com funções gestionárias, tendendo a incidir na produtividade e no controlo directo, desvalorizando a avaliação dos processos formativos.

Neste sentido, o contexto da organização parece bastante permeável à introdução de

sistemas como este, enquadrado num mecanismo de

isomorfismo institucional

que, permitindo

um avanço nos modos de trabalho organizacional, corresponde à ânsia pela autonomia face à entidade Competir mas, simultaneamente, subordina-se ao sistema de acreditação porque será este que trará credibilidade e permitirá a sua sobrevivência:

“Nós tentamos seguir as normas que estão instituídas, porque se queremos criar acções de formação com qualidade reconhecida temos que as seguir, caso contrário, essa

qualidade, mesmo que exista, não é reconhecida. No entanto, há muitas coisas que ainda não foram implementadas mas que se pretendem implementar e que trarão dados novos ao nível da formação. Estou a falar, principalmente, na formação na área da música. (...) A Associação pode emitir diplomas mas que não têm grande credibilidade. O que se pretende agora é, com a acreditação, transformar esses cursos livres em formações com qualidade reconhecida, com os quais as pessoas possam obter um certificado. O desenvolvimento destes cursos da Iniciativa Novas Oportunidades e mesmo a acreditação é um dos passos necessários para avançar para outro tipo de actividades formativas que já estão em mente há muito tempo” (Coordenadora da Formação),

“Temos muito pouca autonomia. Somos apenas um parceiro mas pretendemos adquiri-la através do processo normal, que é trabalhar muito. Penso que a acreditação vai dar-nos mais autonomia pois dá-nos ferramentas, credibilidade e acesso a financiamento, para poder seguir o nosso rumo (…) Somos apenas uma Associação, uma Academia ainda sem autonomia. Espero que haja criatividade e que seja a diferença que consigamos fazer que consiga atrair as pessoas para cá. De outra maneira somos mais um a tentar sobreviver” (Presidente da Associação).

Contudo, a longo prazo, a adesão ao sistema de acreditação pode apresentar consequências imprevistas, com ênfase na regulação49 a que está sujeita e pela tendência de despolitização a que estão sujeitas, assim como o afastamento das actividades populares, porque tendencialmente executam em conformidade com o centralmente estabelecido, afastando-se dos centros de deliberação, sobre si e sobre o meio em que operam. Aliás, a Coordenadora da formação em relação a outros tipos de formação aponta justamente para a falta de autonomia das entidades promotoras, ainda que em dimensões mais funcionais, nas suas palavras:

“Ao nível do financiamento o POPH é bastante rígido. Não há muito que nós possamos fazer, nem pretende este programa, provavelmente, com este tipo de financiamento, dar autonomia às entidades formadoras porque, por exemplo, não podemos comprar material nem remodelar um espaço. Nada disso cabe nas rubricas de que o programa dispõe”.

49 Afonso (2005) problematiza os conceitos de regulação e autonomia em torno de aspectos relacionados com a avaliação, as suas funções e modalidades.

Mas, para o futuro almeja inclusive uma formação com outros objectivos e público, não aqueles a que está obrigada neste momento e neste sentido refere:

“Actualmente existe um público prioritário porque nos obrigam a isso, mas no futuro também pretendemos implicar na formação outros objectivos, outra visão. (…) Gostaríamos de criar grupos de entreajuda, formações não tão formais, como acções de sensibilização em áreas que não são tão conhecidas, como o ambiente, as energias renováveis, a psicologia, a gestão de stress, entre outras, que através deste modelo não são possíveis de executar” (Coordenadora da formação);