• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II – Avaliação Externa: Quadro Teórico

2. O papel da globalização no currículo e na avaliação

Num contexto mundial de globalização, e no que à política diz respeito, vivemos numa época de políticas globalizadas, que vão deixando as suas marcas na economia, na cultura e,

110

consequentemente, na educação, particularmente através de reformas educativas. Para Mangez (2011), para além de aumentar a competição, a globalização cria ainda condições para uma circulação crescente de ideias políticas a nível internacional. Nesta linha de pensamento, Steiner-Khamsi & Waldow (2012, p.24) consideram que vivemos numa época de “reformas viajantes”, isto é, de políticas de partilha de conhecimento, de reformas educativas transferidas de um contexto cultural para outro, em expansão pelas diferentes partes do mundo, e que se instalam nos sistemas educativos pelas “boas práticas” transformadas em standards. Esta troca e circulação de conhecimentos é reforçada pela participação de estruturas de coordenação transnacionais como a UE e a OCDE, que orientam e fortalecem esta partilha e disseminação de conhecimento (Pacheco & Marques, 2014), atuando como “(…) “terceiros avaliadores”, situados entre os “utilizadores” e os “produtores”, entre os cidadãos e os decisores políticos”, mudando, portanto, a natureza das interações entre eles” (Barroso & Afonso, 2011, p.20).

Nos últimos anos, são as perspetivas económicas que controlam o debate. Os estudos internacionais dirigidos pela IEA (International Association for the Evaluation of Educational Achievement) ou pela OCDE têm como objetivo primordial a qualificação dos recursos humanos e a sua importância para o desenvolvimento económico e social. Este é o facto que explica o seu fortíssimo impacto na opinião pública. No caso da OCDE, esta organização tem sido responsável por uma consolidação estável das políticas educativas governadas pela comparação (Pereyra, Kotthoff & Cowen, 2011). Trata-se, para os mesmos autores de uma soft governance, orientada por políticas cada vez mais intensivas em conhecimentos, corroborado pela proliferação de expectativas de transparência, de prestação de contas e de responsabilização, multiplicando-se os indicadores, as auditorias, as avaliações, as boas práticas e as práticas baseadas em evidências.

Esta forma de governação subtil e alargada dos vários países membros, levada a cabo pelas respetivas organizações internacionais, na opinião de Fernandes (2008), consubstancia- se pelos efeitos que produzem no âmbito educacional, nomeadamente pressionando os diversos agentes do sistema no sentido de alterarem as suas práticas e procedimentos, ajudando os governos a justificar ou a fundamentar mudanças nos currículos, nos sistemas de formação de professores, nos sistemas de alocação de recursos às escolas ou nos sistemas de gestão e administração escolar e constituindo uma pressão sobre os próprios governos para que se adaptem e alterem as suas políticas educacionais. Frequentemente, ainda, os resultados

111

destes estudos internacionais, são, na ótica do mesmo autor, aceites como indicadores incontestáveis e absolutos das falhas da escola dominada pelos excessos de pedagogias e utilizados como arma de arremesso político contra os que sustentam uma conceção do currículo e da escola que desenvolva, em todos os alunos, um amplo espetro de aprendizagens que lhes permitam integrar-se de forma plena na sociedade.

Encontramo-nos no que Maroy (2012) invoca por modelo pós-burocrático de governamentalidade, em contraste com o modelo burocrático de base normativa, onde os instrumentos de regulação das práticas, que outrora se baseavam na verificação do cumprimento dos normativos, se fundamentam agora no conhecimento que, por sua vez, utiliza formas mais persuasivas, assentes mais em resultados do que em normas.

Neste contexto ocorre uma mudança paradigmática instituída pelas organizações trans- e-supranacionais que se baseia na passagem do ensino à aprendizagem (Pacheco, 2011) estando o currículo agora mais centrado em quem aprende e não tanto em quem ensina, alterando-se, também, a relação com o conhecimento e do que se passa a entender por conhecimento.

A mesma opinião tem Biesta (2013), quando refere que, nas últimas décadas, a linguagem da educação tem vindo a ser substituída pela linguagem da aprendizagem, passando os alunos/estudantes a ser designados por aprendentes, pretendendo-se reservar ao professor o papel de acompanhamento, facilitação, aconselhamento, apoio e orientação a serviço dos esforços dos aprendentes para acessar, utilizar e finalmente criar o conhecimento (Comissão das Comunidades Europeias, 1998; citada por Biesta, 2013, p.33). Neste contexto, de acordo com o mesmo autor, assistimos à erosão do Estado de bem-estar social, devido à ascensão da ideologia de mercado do neoliberalismo. Constata-se, assim, uma nova afinidade entre governos e cidadãos, em que a relação política dá lugar à relação económica, passando o Estado a assumir o papel de provedor de serviços públicos e o contribuinte, o de consumidor dos serviços estatais, tornando-se o value for money o princípio orientador das transações entre o Estado e os cidadãos (Biesta, 2013), transformando-se a educação numa variável económica, sujeita a leis de oferta e de procura (Pacheco & Marques, 2014). No mesmo sentido e nas palavras de Mangez (2011, p.198), “O Estado precisa de saber o que a nação sabe”. É esta forma de pensar que sustenta a atual cultura de prestação de contas que tem resultado em exigentes sistemas de inspeção e controlo e em formalidades educacionais cada vez mais prescritivas.

112 Na perspetiva de Pacheco (2011, p. 78),

“para além da mudança de atores e da reformulação de saberes, o novo paradigma, bastante determinado pela reengenharia social (Pinar, 2007), a que se chama, também, lógica ou cultura de

mercado (Pacheco, 2002), reformula o conceito de aprendizagem, que deixa de ser lenta e profunda e

passa a ser apressada, fazendo com que os professores e formadores se tornem em meros funcionários do ato pedagógico que acontece na sala de aula (…)”.

Neste contexto de “reformas viajantes” e de globalização entendida como uma processo de convergência de desígnios e de utilização de vocabulário comum, as reformas curriculares caracterizam-se, sobretudo pela centralidade do conhecimento, pelo reforço da identidade do currículo nacional e pela existência de quadros de referência para a qualificação. Esta ideia é sustentada pelos governos nacionais prevalecendo, entre eles, a “convergência quanto à existência de um core curriculum” (Anderson-Levitt, 2008, citado por Pacheco, 2011, p.79). Esta perspetiva é, ainda, explicada por Waldow (2012), como um processo de globalização que se dirige para a homogeneização e similaridade, para a partilha de standars, com a intenção de criar um elevado grau de uniformidade, deixando como marcas quer a imposição de um diálogo comum acerca das reformas, quer uma maior analogia mundial em termos de um currículo prescrito (Pacheco, 2005).

Porém, por mais estranho que possa parecer, por mais uniformização que a globalização possa implicar, no contexto das políticas globalizadas e nas sociedades do conhecimento, o currículo nacional é elevado a categoria principal passando a funcionar como instrumento de formação em literacias consideradas fundamentais num processo de autonomia no âmbito de respostas a novos desafios políticos e económicos (Pacheco, 2009).

Para o mesmo autor (2014, p.36), o reforço do currículo nacional acontece

“com a definição de competências gerais e estratégias comuns aos sistemas educativos e com o estabelecimento de metas de sucesso educativo, às quais se deve chegar, independentemente dos processos de aprendizagem, naquilo que pode ser entendido como a reafirmação da “caixa negra” da escola, tão presente na pedagogia por objetivos.”

Em Portugal, o currículo nacional é justificado pela ideologia de mercado, patenteada pela concretização de uma cultura curricular de prestação de contas (Ibidem). Assim, o currículo nacional, ao relacionar-se com a problemática do conhecimento, passa a obedecer ao princípio explicado por Lyotard (2006, citado por Pacheco, 2009, p.57), da otimização das performances, por outras palavras, a busca da melhor relação de input/output, entendendo-se

113

como input o conjunto das condições fornecidas ao sistema educativo e como output as realizações do próprio sistema (Antunes & Sá, 2010).

Aliás, de acordo com Pacheco (2014, p.143), nos dias de hoje, “com a instauração de um instrumentalismo técnico e com a definição de políticas de “accountability”, que servem de base pragmática às políticas de educação e formação, o conhecimento torna-se o principal recurso de uma nova economia”, com a fixação de novos valores e perspetivas.

Desta forma, verifica-se, atualmente, a utilização do conhecimento como instrumento de regulação no âmbito da educação, utilização esta que é particularmente visível nos contratos de autonomia, que hoje o Estado pretende celebrar com as escolas e ainda na implementação da avaliação externa (Barroso & Afonso, 2011), que se torna, assim, num instrumento de regulação baseado no conhecimento (Afonso & Costa, 2011).

Neste contexto, os indicadores e os benchmarks são dois dos instrumentos políticos ligados ao conhecimento, que desempenham um papel governativo fundamental, dado que estão na base da definição de políticas (Mangez, 2011). Os indicadores apontam o que observar (qualidade, equidade, desempenho), onde observar, e o modo de fazer a observação; não são números, mas sim palavras, como, “taxa de insucesso”, “abandono escolar”, “níveis de escolaridade da população” (Ibidem, p.200). Os benchmarks, que definem objetivos, têm uma marca política muito mais expressiva e podem surgir na forma de números. As práticas do benchmarking significam, fundamentalmente, observar a ação dos outros, avaliando, tanto quanto possível, o seu grau de qualidade, identificando os melhores desempenhos, procurando imitá-los. Neste sentido,

“o conhecimento é medido, levando as pessoas a ver as coisas de um determinado prisma, usando lentes específicas. Neste sentido, ele molda a visão, levando os atores a olhar para determinado problema, ao mesmo tempo que deixam de fora do seu raio de visão outros problemas” (Ibidem, p.201).

Além da crescente centralidade do currículo nacional, outro aspeto essencial das reformas curriculares decorrentes da globalização, é a valorização dos resultados escolares, atribuindo-se um significado crescente à avalização externa, coroada pela realização de provas nacionais, passando pelo reforço da avaliação sumativa em detrimento da avaliação formativa. Também a avaliação das escolas e dos professores faz parte desta faceta, com uma tendência cada vez maior para que estes sejam “julgados” pelo (in)sucesso dos alunos (Pacheco, 2009).

114

Em Portugal, é amplamente evidente a forte presença da avaliação externa, promovida subtilmente pela UE e orientada pela OCDE quer no âmbito da avaliação das instituições escolares, quer no âmbito da avaliação das aprendizagens, concretizada pelo restabelecimento progressivo dos exames/provas nacionais, atualmente de caráter obrigatório nas disciplinas de português e matemática, no 4.º, 6.º e 9.º anos e em outras disciplinas do 11.º e 12.º anos de escolaridade.

Para Afonso (2010), esta presença da avaliação externa na realidade educacional portuguesa quer através da avaliação das escolas, quer através da avaliação das aprendizagens e do desempenho docente, corresponde à emergência da problemática da accountability em Portugal e à tendência crescente para a sua formalização. Esta emergência decorre do crescimento de organizações internacionais como a OCDE e da implantação e desenvolvimento da nova conceção de Estado: o Estado Avaliador (Afonso, 2012; 2010), com a propagação de uma nova forma de gestão pública - new public management -, onde a definição prévia de metas, com a respetiva mensuração e quantificação, constitui um aspeto central. Contudo, para este autor, o termo accountability, frequentemente traduzido por prestação de contas, apresenta variabilidade semântica dado que corresponde a um conceito com significados e amplitudes plurais, remetendo para políticas, sistemas, modelos, dimensões, agências, práticas e atores diversificados. No seu entender, baseado no pensamento de Schleder (1999), a accountability estrutura-se em três dimensões: de informação; de justificação; de imposição ou sanção; dimensões estas que assentam em três pilares: avaliação, prestação de contas e responsabilização, que nem sempre se encontram integrados, nem se potenciam mutuamente.

De acordo com Pacheco et al. (2014), a finalidade da avaliação em contextos educativos está, assim, condicionada por estas políticas de accountability definidas em função de estratégias de responsabilização pessoal, profissional, institucional e social, valorizando os resultados e relegando para um plano acessório os processos e práticas de aprendizagem.

Estas políticas de accountability que enfatizam o reforço da prescrição normativa, da implementação de mecanismos externos de avaliação e da fixação de metas a cumprir, contribuem para que a abordagem do currículo seja mais valorizada pelos resultados que pelos processos e, mais ainda, pela avaliação externa que pela avaliação interna (Pacheco, 2012).

115

Neste contexto, a hipervalorização dos resultados manifesta-se, por exemplo, pela importância atribuída, de um modo geral, pela sociedade, aos rankings das escolas, que funcionam, assim, como dispositivos de controlo social (Afonso & Costa, 2011), alimentando um debate mediático sobre a “qualidade da educação” e, muitas vezes, da qualidade da escola pública, numa “lógica de senso comum, à margem do know how dos profissionais de educação (Ibidem, p.158). Ainda neste âmbito de debate sobre a “qualidade”, os programas internacionais de avaliação de desempenho dos alunos, como o PISA e o TIMSS, introduzem uma lógica de hierarquização dos países participantes, contribuindo, para a comparação e o debate sobre as políticas educativas.

Assim, no âmbito da globalização, presenciamos progressivamente a mudança conceitual da noção de “qualidade” (Pacheco et al., 2014), precisamente com origem nos organismos transnacionais e supranacionais, com impacto na avaliação educacional, sendo, contudo, uma palavra com muitos significados, que faz parte da linguagem específica do mercado (Schuetze & Mendiola, 2012, citados por Pacheco et al., 2014), muitas vezes associada a expectativas e resultados, mediante vários tipos de comparações técnicas.

Quando essencialmente centrada nos resultados, a avaliação da qualidade ocorre através de indicadores de desempenho e de standards que instituem um padrão comportamental, sendo esta a tendência que mais se tem verificado nos sistemas educativos em que existe avaliação externa quer de escolas, quer de aprendizagens.

Em síntese, a “avaliação da qualidade passa a ser, assim, o discurso dominante que tanto serve para legitimar a intervenção do Estado no processo de regulação do sistema, como é utilizado para responsabilizar as escolas, os professores, os alunos e os pais pelos resultados obtidos” (Pacheco, 2002, p.93).

Documentos relacionados