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Capítulo 1 – Competência social

2. Treino de competências sociais

2.3. O papel do enfermeiro

No sentido de poder estabelecer uma compreensão mais aprofundada sobre as competências profissionais e pessoais dos enfermeiros, enquanto terapeutas ou

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formadores, no âmbito da sua prática clínica iremos debruçar-nos sobre os aspetos teóricos que alicerçam estas competências.

A Enfermagem, enquanto ciência e profissão fundamenta a sua prática num vasto leque de conhecimentos, onde se incluem os modelos e teorias de enfermagem, que além da orientação teórica, são essenciais na sistematização da prática, permitindo uma reflexão e avaliação da profissão construindo um corpo de conhecimentos específicos para o seu reconhecimento enquanto ciência. Ao ponderar sobre o papel do enfermeiro enquanto terapeuta/formador em Treino de Competências Sociais e na promoção da saúde mental dos adolescentes, centramos a nossa abordagem em três teorias de enfermagem - Teoria da Relações Interpessoais, Teoria do Cuidar e Teoria das Transições - que, neste âmbito concreto do saber fazer, mais contributos teóricos fornecem para a prática de cuidados dos enfermeiros.

Teoria da Relações Interpessoais de Hildegard Peplau (1909-1999) – Peplau foi considerada por muitos como a ‘mãe da enfermagem psiquiátrica’, no entanto o seu campo de ação estendeu-se muito além desta área do conhecimento. O seu maior contributo para a Ciência de Enfermagem foi a Teoria das Relações Interpessoais. Esta teoria tem como fontes teóricas Sullivan, Maslow e Miller, centra-se na relação enfermeiro/doente e é construída nos diferentes estádios do desenvolvimento pessoal. A Teoria das Relações Interpessoais tem subjacente uma mudança de paradigma, na qual o doente passa de uma visão meramente objetal e dependente dos cuidados do enfermeiro, para uma visão de igualdade, ao conceptualizar o doente como parceiro nos cuidados (Peplau, 1990). Assim, utilizando o conhecimento das ciências comportamentais e do modelo psicológico, esta teoria permitiu que “a enfermeira começasse a afastar-se de uma orientação da doença para outra através da qual o significado psicológico dos eventos, sentimentos e comportamentos podia ser explorado e incluído nas intervenções de enfermagem” (Peplau, 1996 citado em Howk, 2004, p.425). O enfermeiro deve investir no sentido de desenvolver uma relação de confiança com a pessoa e à medida que esta relação se constrói, o profissional ajuda a pessoa a identificar os seus problemas e a encontrar possíveis soluções, considerando que o enfermeiro tem formação especializada que lhe permite reconhecer e responder às necessidades da pessoa.

Nesta teoria, o conceito de enfermagem está relacionado com um processo dinâmico, terapêutico e interpessoal, cujas ações dependem da participação de duas ou mais pessoas que crescem com esta intervenção. O objetivo da enfermagem é o de produzir

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mudanças no cliente de modo a influenciar positivamente a sua saúde. Está patente a noção de crescimento e maturação pessoal e utiliza a expressão de enfermagem psicodinâmica para descrever a relação dinâmica que se estabelece entre o enfermeiro e o doente. Peplau (1990) defendia que a Teoria das Relações Interpessoais podia transpor-se para qualquer área da vida dos enfermeiros, ao aplicar os seus pressupostos básicos (a atitude adotada pelo enfermeiro influencia diretamente o tipo de aprendizagem realizada pelo doente durante o processo de cuidados; é função do enfermeiro ajudar a desenvolver a personalidade do doente no sentido da maturidade pessoal, baseada em princípios e métodos que orientam para a resolução de problemas interpessoais). O conhecimento e a compreensão dos aspetos cognitivos, psicossociais e morais ligados ao desenvolvimento de uma personalidade saudável, permitem aos enfermeiros um planeamento e implementação de cuidados de qualidade.

Teoria do Cuidar de Jean Watson (1979) – Jean Watson preconiza com esta teoria, que os cuidados de enfermagem devem ser desenvolvidos numa perspetiva humanista tendo por base conhecimentos científicos. Para Watson (2002) a essência da enfermagem é o outro e constrói-se pela relação com ele. Esta relação é considerada transpessoal quando alcança uma dimensão espiritual, moral e ética na subjetividade de dois mundos, o do enfermeiro e o do doente. A humanização na relação enfermeiro/doente através de uma visão holística da pessoa permite olhar para o outro como um ser único e especial. A enfermagem não é uma mera conduta ou um conjunto descritivo de intervenções, é sobretudo a compreensão do outro, do significado da vida humana sob uma perspetiva fenomenológica e existencial. Watson seguiu esta perspetiva alicerçada na psicologia e nas humanidades o que contribuiu para apresentar a enfermagem como uma ciência humana.

Salienta as qualidades interpessoais do enfermeiro no processo do cuidar, tais como, senso de coerência, empatia, compreensão, respeito caloroso e interesse genuíno e enfatiza os aspetos psicossociais das pessoas (enfermeiros e doentes) que se desenvolvem pela maturação do pensamento, pela reflexão interior, pelo crescimento pessoal e pelas capacidades de comunicação.

Através desta teoria, Watson espera promover no enfermeiro o seu desenvolvimento pessoal e profissional numa base moral e filosófica significativa para a sua prática, ajudando a expandir a sua visão do mundo e a desenvolver o pensamento crítico. Serviram de fonte de inspiração teórica os estudos de Peplau, Erickson, Selye, Lazarus, Rogers e Maslow.

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Teoria das Transições de Meleis (2000) – O conceito chave, transição, é uma passagem de uma fase da vida, condição ou estado, para outro. As transições referem-se ao processo e resultados das complexas interações pessoa-ambiente (Chick & Meleis, 2010). Esta teoria considera três domínios que correspondem, nomeadamente, à natureza das transições (tipos, padrões e propriedades), às condições de transição (tanto ao nível da pessoa como da comunidade e da sociedade) e aos padrões de resposta (indicadores de processo e de resultado).

Relativamente ao primeiro domínio e particularmente ao tipo de transições, Meleis, Sawyer, Im, Messias e Schumacher (2010) consideram serem de desenvolvimento e situacionais. Os padrões das transições podem ser únicos, múltiplos, sequenciais, simultâneos e relacionais ou não relacionais. As propriedades correspondem consciencialização da mudança, ao compromisso no envolvimento para a mudança, confrontar a diferença, o tempo enquanto duração da transição, que pode ser variável e até prolongar-se sendo difícil determinar os limites, e os pontos críticos e acontecimentos que correspondem ao momento de viragem associado à transição. Neste domínio os enfermeiros devem ter em conta o tipo e os padrões das transições significativas na vida de um indivíduo ou uma família. Importa saber se o indivíduo está viver uma ou múltiplas transições e se estas são simultâneas ou sequenciais. Cada uma das propriedades da experiência da transição requer a atenção dos enfermeiros, a sua compreensão e conhecimento dos acontecimentos.

No segundo domínio englobam-se as condições de transição, tanto as facilitadoras como as inibidoras. Ao nível pessoal essas condições são o significado atribuído aos eventos que desencadeiam a transição, as atitudes e crenças culturais, o status socioeconómico a preparação e o conhecimento. Ao nível comunitário e social consideram condições facilitadoras o apoio social, o acesso à informação, o aconselhamento os recursos disponíveis.

O terceiro domínio corresponde aos padrões de resposta emitidos no processo de transição que Meleis et al. (2010) denominaram indicadores de processo e indicadores de resultados. A identificação dos indicadores de processo pelo enfermeiro permite-lhe avaliar como a pessoa está a vivenciar o seu processo de transição e consequentemente poder delinear uma intervenção direcionada à obtenção de resultados positivos em saúde. Os indicadores de resultado abrangem essencialmente a mestria, que corresponde ao desenvolvimento de competências e de comportamentos necessários para lidar com as novas situações, e a integração fluida da identidade, que corresponde ao desenvolvimento de uma nova identidade com uma dinâmica própria resultante de uma mudança positiva.

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Só a partir do trabalho desenvolvido por Peplau, nos anos 50 do século passado, o processo interpessoal de ajuda baseado em experiências, expetativas, crenças e valores pessoais passou a ser valorizado e considerado, quer no ensino, quer na prática dos cuidados de enfermagem. Da mesma forma, também os estudos de Watson contribuíram para uma orientação mais transcendente na prestação dos cuidados de enfermagem. Meleis propõe uma teoria em que dá ênfase ao cuidado transacional no sentido da vivência da transição como um acontecimento positivo de desenvolvimento e maturidade pessoal. Os cuidados de enfermagem centram-se na pessoa, mais concretamente na compreensão acerca do conhecimento que a pessoa tem e do significado que a pessoa atribui á vivência experienciada, o que permite ao enfermeiro identificar os indicadores de processo que permitem uma avaliação correta da situação. O objetivo é implementar intervenções direcionadas às necessidades identificadas contribuindo assim para indicadores de resultado positivos para a pessoa.

Um marco conceptual igualmente importante para a Enfermagem foram as ideias de Carl Rogers (1902-1987) concretizadas na sua Teoria da Abordagem Centrada na Pessoa com base numa Relação de Ajuda que, como referimos anteriormente, influenciaram as perspetivas teóricas de Peplau e Watson, integrando e concebendo a prática da relação de ajuda baseada em modelos interacionistas. De salientar o papel do enfermeiro, pela utilização de si próprio como ferramenta terapêutica e de ajuda, e como um modelo de mudança. É assim indispensável que o enfermeiro consiga desenvolver a capacidade de compreender-se a si próprio para poder ajudar o outro, quer na identificação das suas necessidades quer no seu crescimento pessoal.

Neste sentido, destacamos duas das competências essenciais no domínio das aprendizagens profissionais do enfermeiro, que fazem parte do perfil de competências do enfermeiro especialista, “desenvolve o autoconhecimento e a assertividade” (Regulamento n.º 122/2011, artigo 8º, ponto 1, alínea a) e “baseia a sua praxis clínica especializada em sólidos e válidos padrões de conhecimento” (Regulamento n.º 122/2011, artigo 8º, ponto 1, alínea b). No que se refere, mais particularmente às competências do enfermeiro especialista em enfermagem de saúde mental, de acordo com o Regulamento n.º 129/2011

(…) para além da mobilização de si mesmo como instrumento terapêutico, desenvolve vivências, conhecimentos e capacidades de âmbito terapêutico que lhe permitem (…) mobilizar competências psicoterapêuticas, socioterapêuticas, psicossociais e psicoeducacionais. Esta prática clínica permite estabelecer relações de confiança e

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parceria com o cliente, assim como aumentar o insight sobre os problemas e a capacidade de encontrar novas vias de resolução. (p.8669)

A capacidade de ouvir sem julgar, a descodificação correta dos silêncios ou do que é dito de forma indireta, acreditar que os adolescentes são capazes de mudar comportamentos menos saudáveis e manter comportamentos de saúde positivos, são competências e crenças que o enfermeiro deve ter desenvolvidas no âmbito da sua prática dos cuidados permitindo uma maior compreensão sobre as necessidades de saúde e preocupações dos adolescentes.

Do exposto, podemos concluir que o conhecimento científico aliado a uma prática de cuidados de qualidade são os alicerces para o processo do cuidar em enfermagem. O enfermeiro ao assumir o papel de formador, concretamente em TCS, ajuda a pessoa ao responsabilizá-la e capacitá-la para a tomada de decisão sobre a sua situação de saúde. Este processo, que pressupõe uma participação ativa e transformadora, aliado à transmissão de conhecimentos e ao desenvolvimento de competências traduz-se no conceito de empowerment. Este conceito é decorrente do preconizado na Declaração de Alma-Ata (OMS, 1978) onde se reconheceu a importância das pessoas assumirem o controlo e a responsabilidade sobre a sua saúde.