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CAPÍTULO V- O QUE FALHOU?

3. Crise de agência, de confiança nas instituições existentes e na democracia

3.3. O pensamento economicista e a Europa Alemã

Do nosso ponto de vista, grande parte das medidas adotadas pela União, fortemente caracterizadas por uma terceirização das responsabilidades, securitização e expulsão de migrantes irregulares, revelaram-se inadequadas para enfrentar a crise migratória. E tal dever-se-á, também, à “cegueira da economia”541, que deixou de lado a sociedade e,

consequentemente, a política. O que tem repercussões na perspetiva da confiança dos cidadãos nas instituições da União.

Segundo Beck, a União deverá trazer de volta a sociedade, colocando-a nos foros de debate público542. Recorda que a UE não é apenas o Euro, e que “o problema reside

no seguinte: a perspetiva económica ignora que não estamos apenas perante uma crise da económica (e do pensamento económico)”543. Estamos, essencialmente, perante uma

crise da sociedade e política, bem como da compreensão destas544. Este autor demonstra

que o potencial económico da Alemanha conduziu este Estado-Membro à liderança da União, fazendo com que a sua política de austeridade se transformasse no único modelo a ser seguido, criando paradoxos dentro da própria União, como o contraste entre Norte e Sul, “que se aprofunda cada vez mais devido aos fluxos de refugiados e aos custos associados ao acolhimento dos mesmos, uma vez que [não] sobrecarregam a Europa no seu todo, mas, sobretudo os funcionários alfandegários e os guardas fronteiriço em países já enfraquecidos como a Grécia, Espanha, Itália e Portugal”545. Os países do Sul da União

Europeia sentem-se explorados e abandoados, compreendendo-se, assim, o surgimento intensificado de “atos xenófobos e agressões ou até erupções de violência aberta contra

540 Vincenç NAVARRO, “Será a Europa de direita?”, op. cit., p. 54.

541 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã, de Maquiavel a “Merkievel”: Estratégias de poder na crise do euro, Lisboa, Edições70, 2014, p. 28.

542 “Put society back in!”, para mais informações v. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p. 13. 543 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p. 12.

544 “Portanto, não sou eu que me movo no terreno estranho da economia. Foi a economia que se esqueceu da sociedade da qual trata”, cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p. 12.

refugiados nos Estados fronteiriços da Europa, fracos em termos financeiros”546.

Beck, recorrendo ao termo “Merkievel”, considera a atuação da Chanceler Angela Merkel como uma nova tática de dominação, “a sua tendência para não agir, não agir ainda, agir mais tarde – para hesitar”547 – permite controlar o eleitorado alemão.

Atentemos à questão de ajuda financeira alemã aos Estados endividados, a posição de Angela Merkel traduz-se num “nim” de um jogo de poder, havendo ausência de clareza quanto a uma posição que traduza um efetivo sim, ou um não cristalino. Isto permite conquistar, simultaneamente, o eleitorado que deseja não apoiar os países que não cumpriram as suas obrigações, em termos de austeridade, e o eleitorado que deseja oferecer a possibilidade de auxílio aos países em situação precária, mediante apoio financeiro condicionado a determinadas ações. Segundo o autor, “esta arte da hesitação deliberada, a mistura entre indiferença, recusa europeia e empenho europeu, constitui a fonte da posição de poder da Alemanha na Europa atormentada pela crise”548.

De acordo com o autor supracitado, a Europa alemã resulta de um discurso do governo de Merkel, de que a União necessita da Alemanha (não o contrário)549, como

consequência da ineficácia e irresponsabilidade dos Estados-Membros que não realizaram as ações necessárias para a manutenção do equilíbrio dos seus sistemas económicos e sociais. Porém, este discurso não corresponde à verdade dos factos que demonstram que o referido Estado-Membro se tem mantido economicamente erguido porque se socorre da exploração da conjuntura dos países em crise na zona euro. A transferência de recursos traz benefícios que têm suportado o modelo social alemão que, apesar do que aparenta, tem sérias dificuldades em sustentar-se, ocorrendo por via da criação de empregos mal remunerados e da precariedade das relações laborais que foi universalizada pela política de austeridade 550.

Encontramos, então, um conjunto de antinomias (divergências?) com os princípios de criação de confiança europeia e que são o fundamento imprescindível de uma

546 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p. 36. 547 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p. 70. 548 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p. 72. 549 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., pp. 80-81.

550 “Cerca de metade dos novos postos de trabalho é constituída por empregos precários no âmbito do trabalho temporário (cerca de 1 milhão), os chamados ‘mini-empregos’ ou ‘empregos de 400 euros’ (cerca de 7,4 milhões), empregos a prazo (3 milhões), etc. Consequentemente, a fragmentação social e as diferenças entre os rendimentos aumentaram aceleradamente”. Cf. Ulrich BECK, A

sociedade europeia, como seja (i) o principio da lealdade europeia, que impede a exploração de um país por outro, ou seja, que os Estados-Membros fortes aproveitem as fraquezas dos outros em beneficio próprio551; bem como (ii) o princípio da equidade, que

exige que na criação de dependências e obrigações, todos os envolvidos as considerem corretas e justas; ou ainda (iii) o princípio do equilíbrio na relação entre Estados grandes e pequenos, poderosos e menos poderosos; bem como (iv) o princípio da reconciliação entre as contradições decorrentes de um “mosaico tão complexo de países, economias, culturas e democracias”552, que pretende evitar um agravamento das discrepâncias,

mediante a culpabilização e o menosprezo, entre os Estados.

A atual situação poderá destruir o que de mais essencial se erigiu nos últimos 60 anos, em termos europeus. Isto é, o arrefecimento de rivalidades históricas e a noção de uma sociedade europeia de proteção dos princípios anteriormente destacados. Concordando com Beck, com ele afirmamos que existe a necessidade de uma “Primavera Europeia”, para que a política ouse acordar do simples cumprimento de metas de austeridade económica e concretize um novo contrato social europeu. Estará também na altura, segundo o autor, de “todos aqueles que são afetados pela política de austeridade, tomarem a peito o imperativo cosmopolita: têm de cooperar a nível transfronteiriço e empenhar-se, em conjunto, não por menos Europa, mas sim, a partir da base, por uma união política que se reja por princípios social democratas, uma vez que só esta será capaz de enfrentar eficazmente as causas da miséria”553.

Trata-se, assim, da reconstrução de um projeto conjunto, que não se estreite em relações hierárquicas entre instituições e indivíduos, e que preze pela efetiva assimilação dessa “nova” Europa, por parte dos indivíduos, e pela manutenção de conquistas de cunho social democrata a nível transnacional, com destaque para as políticas de segurança social, pois “se queremos que as pessoas tenham a experiência da Europa como algo que lhes faça sentido, é necessário que a divisa seja: mais segurança social através da Europa”554.

551 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p.89. 552 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p. 89.

553 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p.109 (itálico no original). 554 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p. 98.

Consideramos então que o efetivo “imperativo cosmopolita ‘coopere ou morra’ dá poder sobretudo a movimentos sociais a favor da Europa”555 – e que os principais

adversários e os mais poderosos da economia financeira global “não são aqueles que constroem tendas nas grandes praças e à frente das catedrais bancárias em todo o mundo”. Na verdade, “o adversário mais convicto e mais persistente da economia financeira global é a própria economia financeira global”556.

555 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p. 110 (aspas no original). 556 Cf. Ulrich BECK, A Europa Alemã..., op. cit., p.111.