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O princípio de proibição de retrocesso social

3 O CARÁTER PRINCIPIOLÓGICO DA PROTEÇÃO DA RELAÇÃO DE

3.5 A PROGRESSÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS E A PROIBIÇÃO DE

3.5.2 O princípio de proibição de retrocesso social

O tema é abordado por Ingo Sarlet, que rebate as Críticas daqueles que sustentam que os direitos sociais não podem ser considerados integrantes do rol de cláusulas pétreas. Tais estudiosos argumentam que os direitos sociais não podem ser equiparados aos direitos de liberdade albergados no art. 5°, bem como caberia ao legislador constituinte originário posicionar diretamente os direitos sociais dentro do rol albergado no art. 60, § 4°, IV, da Lei Maior. Ingo Sarlet leciona que tal concepção esbarra nos seguintes argumentos:

a) a Constituição brasileira não traça qualquer diferença entre os direitos de liberdade (defesa) e os direitos sociais, inclusive no que diz com eventual primazia dos primeiros sobre os segundos; b) os partidários de uma exegese conservadora e restritiva em regra partem da premissa de que todos os direitos sociais podem ser conceituados como direitos a prestações materiais estatais, quando em verdade, já se demonstrou que boa parte dos direitos sociais são equiparáveis, no que diz com sua função precípua e estrutura jurídica, aos direitos de defesa; c) para além disso, relembramos que uma interpretação que limita o alcance das ‘cláusulas pétreas’ aos direitos fundamentais elencados no art. 5° da CF acaba por excluir também os direitos de nacionalidade e os direitos políticos, que igualmente não foram expressamente previstos no art. 60, § 4°, inc. IV, de nossa lei Fundamental.50

O autor aborda o problema em outras frentes, tais como o compromisso estatal de objetivar a preservação dos direitos individuais e sociais, além da igualdade e da justiça e além do que está albergado de maneira bastante clara no texto constitucional, fato constatado

49 ALMEIDA, Dayse Coelho de. A Fundamentalidade dos Direitos Sociais. Revista Síntese Trabalhista, n° 207. Porto Alegre: Síntese, set/2006, p. 92.

em face dos princípios fundamentais, mormente aqueles albergados nos arts. 1°, I, II e III, e 3°, I, III e IV.51 Para arrematar o tema, Ingo Sarlet ensina que:

Não resta qualquer dúvida de que o princípio do Estado Social, bem como os direitos fundamentais sociais, integram os elementos essenciais, isto é, a identidade de nossa Constituição, razão pela qual já se sustentou que os direitos sociais (assim como os princípios fundamentais) poderiam ser considerados – mesmo não estando expressamente previstos no rol das “cláusulas pétreas” – autênticos limites materiais implícitos à reforma constitucional.52

Como os direitos sociais constituem o conteúdo mínimo necessário albergado pela Constituição, é preciso que sejam constituídos mecanismos que protejam o texto constitucional de reformas contrárias àquilo que foi pactuado durante sua elaboração. Atentos a tal fato, o legislador constituinte originário criou dentro do próprio texto constitucional um dispositivo preventivo contra as possíveis manipulações políticas que objetivem fulminar os direitos pactuados como compromisso estatal. Trata-se do art. 60, §4°, da Constituição Federal de 1988. Eis o conteúdo deste artigo, in verbis:

Art 60, §4° - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais

Fazendo-se um trabalho de hermenêutica constitucional, é possível concluir que os direitos sociais estão dentro de um mesmo patamar protetivo que os direitos individuais, mormente quando se interpreta a Constituição a partir dos métodos sistemático e teleológico, reforçando-se também esta linha interpretativa através do princípio da unidade. Perez Luño leciona que a interpretação sistemática da Constituição:

Parte del presupuesto de que el ordenamiento jurídico em su conjunto debe ser considerado como um sistema caracterizado por la coherencia del contenido de las diversas normas que lo integran y dotado de uma unidad orgánica y finalista. De ahí que la sistematicidad constitucional, más que um

51 Ibidem, p. 424.

simple método de trabajo para el intérprete, haya sido considerada por Pietro Merola Chierchia como uma característica esencial de la interpretación de la Constitución, em el sentido de que incluso al proyectarse sobre sus normas singulares es siempre y necesariamente interpretación del entero sistema constitucional.53

Paulo Bonavides leciona que o método de interpretação sistemático veio complementar a interpretação lógica. Trata-se da categoria lógico-formal. Nas palavras do autor:

A interpretação começa naturalmente onde se concebe a norma como parte de um sistema - a ordem jurídica, que compõe um todo ou unidade objetiva, única a emprestar-lhe o verdadeiro sentido, impossível de obter-se a considerássemos insulada, individualizada, fora, portanto, do contexto das leis e das conexões lógicas do sistema.54

A Constituição brasileira elegeu como um de seus objetivos fundamentais a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais. O conteúdo axiológico e teleológico que se espraia em todo o texto constitucional aponta para a efetiva concretização do Estado Constitucional de Direito. Em momento algum a Constituição recomenda como um dos objetivos da República Federativa do Brasil, a absoluta igualdade entre as pessoas, mas está claro que ordem constitucional veda expressamente as desigualdades extremas.

A aplicação do princípio da unidade é de grande valia quando os direitos e garantias individuais são tratados dentro do escopo mais amplo cujo objetivo seja concretizar direitos sociais, porém pertencentes a cada indivíduo de maneira isolada. Conceitua Canotilho este princípio com as seguintes palavras:

O princípio da unidade da constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas. Como <<ponto de orientação>>, <<guia de discussão>> e <<factor hermenêutico de decisão>>, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas

53 PEREZ LUÑO, Antonio Henrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. Madrid: Tecnos, 2003, p. 273-274.

constitucionais a concretizar [...]. Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios.55

Com este raciocínio, percebe-se claramente que os direitos sociais não podem ser isolados dos direitos individuais, pois tais direitos albergados no texto constitucional objetivam concretizar no cotidiano dos cidadãos, o supremo princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, escreve Ingo Sarlet que “verifica-se que todos os direitos fundamentais consagrados em nossa Constituição (mesmo os que não integram o Título II) são, na verdade e em última análise, direitos de titularidade individual, ainda que alguns sejam de expressão coletiva”.56

As denominadas “cláusulas pétreas” são normas revestidas de especial nobreza, cuja função é “impedir a destruição dos elementos essenciais da Constituição, encontrando-se, neste sentido, a serviço da preservação da identidade constitucional, formada justamente pelas decisões fundamentais tomadas pelo constituinte”.57

A proteção aos conteúdos essenciais não resulta numa petrificação total do texto constitucional, tanto é verdade que em vinte e dois anos de história constitucional recente, o atual texto da Lei Maior foi emendado por quase 70 vezes, devendo-se lembrar que Emenda Constitucional n° 28 de 25 de maio de 2000, reduziu significativamente o direito dos trabalhadores rurais albergados no art. 7°, XXIX, da Lei Maior, concernentes a exigibilidade dos direitos de natureza laboral, pois este lapso temporal foi igualado aos trabalhadores urbanos.

Os direitos sociais, incluindo os direitos constitucionais trabalhistas são direitos que constituem a essência do Estado Democrático de Direito. Destarte, a destruição ou mesmo a redução de tais direitos fulminam o compromisso pactuado pelos representantes do povo no texto da Lei Maior.

Nesse sentido, o princípio do não-retrocesso social é uma extraordinária ferramenta doutrinária destinada a proteger os direitos sociais das tendências neoliberais que tem se perpetuado, sobretudo ao longo das duas últimas décadas. Leciona Cristina Queiroz sobre o tema que:

55 CANOTILHO, J.J. Gomes. “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”. 7. ed., Coimbra (Portugal): Livraria Almedina, 2003, p.1223-1224.

56 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 424. 57 Ibidem p. 426.

Concretamente, a “proibição do retrocesso social” determina, de um lado, que, uma vez consagradas legalmente as “prestações sociais”, o legislador não pode depois eliminá-las sem alternativas ou compensações. Uma vez dimanada pelo Estado a legislação concretizadora do direito fundamental social, que se apresenta face a esse direito como uma “lei de protecção” (Schutzgesetz), a acção do Estado, que se consubstanciava num “dever de legislar”, transforma-se num dever mais abrangente: o de não eliminar ou revogar essa lei.58

Os direitos sociais estão envolvidos por uma dupla blindagem: a primeira consagra tais direitos dentro do status de cláusula pétrea constitucional, em conseqüência deste fato, advém o princípio da vedação do retrocesso, como uma garantia protetiva destes direitos. Destarte, da lição de Canotilho extraí-se a definição de vedação de retrocesso social. Eis as palavras do autor:

O núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (“lei da segurança social”, “lei do subsídio de desemprego”, “lei do serviço de saúde”) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura a simples desse núcleo essencial. Não se trata, pois, de proibir um retrocesso social captado em termos ideológicos ou formulado em termos gerais ou de garantir em abstracto um status quo social, mas de proteger direitos fundamentais sociais sobretudo no seu núcleo essencial.59

Rúbia Zanotelli de Alvarenga utilizando-se de uma construção doutrinária que eleva os direitos sociais trabalhistas a uma dimensão de direitos humanos, afirma categoricamente que os direitos trabalhistas albergados no texto constitucional não podem ser reduzidos ou suprimidos. Diz a autora:

Dessa maneira, conclui-se que a Constituição de 1988 possui pressupostos hermenêutico-constitucionais que orientam a interpretação ampliativa do mencionado preceptivo constitucional e, por conseqüência, a máxima efetividade das normas fundamentais do trabalho no universo juslaboral. Assim, outros direitos propagados pela Constituição, a exemplo do §2° do art. 5°, bem como os advindos de tratados internacionais pelo art. 5°, §3°,

58 QUEIROZ, Cristina. O Princípio da não Reversibilidade dos Direitos Fundamentais Sociais: Princípios

Dogmáticos e Prática Jurisprudencial. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 69-70.

são reconhecidos como fundamentais e estão acobertados pela cláusula pétrea da CF de 1988.

Os valores sociais do trabalho constitucionalmente encarnados despontam valores consagrados nos arts. 7° a 11 da CF de 1988, que iluminam os fundamentos e os objetivos da República Federativa do Brasil. É sobre esse valor nela contido que se espraia o núcleo essencial dos Direitos Humanos Sociais do trabalhador, que consiste na valorização da dignidade da pessoa humana no universo juslaboral. Por meio desse postulado, a interpretação que se faz do art. 60, § 4°, IV, da CF, deve conferir a aplicabilidade plena dos Direitos Humanos Sociais do trabalhador no Direito do Trabalho brasileiro. 60

O núcleo essencial está relacionado com os direitos minimamente albergados no texto constitucional, efetivados através de um sistema jurídico sintonizado com o texto constitucional. A concretização dos direitos sociais fundamentais cabe ao legislador “como dever definitivo, previsto constitucionalmente, ainda que não se determine definitivamente o conteúdo das normas a serem produzidas”.61 Destarte:

O primeiro – mas não principal –dever, definitivo, a ser cumprido pelo Estado em face das normas de direitos fundamentais sociais, é o dever de legislar para concretizar, pelo menos, o núcleo essencial, garantindo eficácia às normas e posições que caracterizam e identificam o direito, que têm por objeto prestações fáticas. Trata-se, em outras palavras, de conferir exeqüibilidade às normas constitucionais, o que deriva da supremacia da constituição.62

Concluí-se que o direito ao trabalho está contido neste núcleo essencial, pois para que o obreiro tenha acesso aos direitos trabalhistas albergados no ordenamento jurídico pátrio, é preciso que este faça parte de uma relação formal de emprego. O direito ao trabalho é, portanto, o marco inicial necessário a incorporação de uma gama de direitos provenientes da relação formal de emprego. Em suma, o direito do trabalho só protege àquele que efetivamente possui uma relação formal, cabendo ressaltar que mesmo aquele obreiro alvo de um contrato de trabalho informal, também é protegido pelo direito do trabalho, pois a proteção constitucional versa sobre o trabalhador de uma maneira geral. Nesse sentido, a

60 ALVARENGA. Rúbia Zanotelli de. O Direito do Trabalho Como uma Dimensão dos Direitos Humanos. São Paulo: LTr, 2009, p.96

61 NETTO, Luísa Cristina Pinto e. O princípio de Proibição de Retrocesso Social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 174.

Justiça do Trabalho é o órgão adequado para restaurar e impor o cumprimento da ordem jurídica àqueles que ainda insistem em contratar a margem da lei.