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O PROCESSO ADMINISTRATIVO EM CONSONÂNCIA COM OS

3 O PAPEL DO PROCESSO ADMINISTRATIVO NA ADMINISTRAÇÃO

3.4 O PROCESSO ADMINISTRATIVO EM CONSONÂNCIA COM OS

MANDAMENTOS DE UM REGIME DEMOCRÁTICO

Definida por José Afonso da Silva como “um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo”79, e por Pinto Ferreira como “a forma constitucional de governo da maioria, que, sobre a base da liberdade e igualdade, assegura às minorias do parlamento o direito de representação, fiscalização e crítica”80, a verdade é que a democracia ainda representa, neste século XXI, quando já se tem transpassados mais de dois mil e quinhentos anos desde a sua formulação inicial na Grécia antiga, um dos valores mais estimáveis, relevantes e perseguidos em grande parte das civilizações ocidentais. O grau de interesse que tem ela despertado nas últimas décadas é tanto, e seu prestígio, tão indiscutível, que chega Paulo Bonavides, inclusive, a qualificar o direito do cidadão à democracia como sendo um dos direitos fundamentais de quarta geração, o que equivale a concebê-lo como integrante do

79 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.

126.

80 PINTO FERREIRA, Luiz. Princípios gerais do direito constitucional moderno. 6ª ed. São Paulo: Saraiva,

rol dos direitos que, nas palavras do autor, têm por característica o fato de emergirem com caráter universal e em meio ao cenário de globalização política81.

É forçoso reconhecer, entretanto, que, muito embora tenha sido a democracia, ao longo da história, univocamente assentada - não importando o tempo ou o lugar em que tenha sido ela objeto de experiência - sob a noção de que todo poder estatal emana do povo e de que através deste é que deve vir a ser exercido, a realidade é que não tem o fenômeno democrático se expressado, nas diferentes regiões e épocas, mediante uma forma pronta e acabada que lhe tenha conferido um contorno invariável e definido. Enfim, as técnicas de que tem se valido para concretizar seus princípios82, muito pelo contrário, têm apresentado constantes e reconhecidas variações, a depender, em todo caso, do momento histórico em que se inserem e dos valores que intenta realizar.

Não é de causar estranheza, contudo, que tenha sido assim. Tanto é, que José Afonso da Silva, ao laçar crítica sobre aqueles que a repudiam por nunca, em lugar algum, haver sido realizada em sua pureza, defende essa dinamicidade como algo que lhe seja inerente.

Não percebem que ela é um processo, e um processo dialético que vai rompendo os contrários, as antíteses, para, a cada etapa da evolução, incorporar conteúdo novo, enriquecido de novos valores. Como tal, ela nunca se realiza inteiramente, pois, como qualquer vetor que aponta a valores, a cada nova conquista feita, abrem-se outras perspectivas, descortinam-se novos horizontes ao aperfeiçoamento humano, a serem atingidos83.

É dentro dessa perspectiva, portanto, que devem, na verdade, ser compreendidas a criação e o desenvolvimento constante de mecanismos responsáveis pela adaptação do ideal democrático às novas realidades. Afinal, é inequívoco que não haveria como a democracia,

81 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 571.

82 Segundo José Afonso da Silva, repousa a democracia sobre dois princípios fundamentais: a) o da soberania

popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder, que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo; b) participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 131).

nos dias atuais, valer-se de técnicas semelhante àquelas que, na antiguidade clássica, permitiram aos gregos, por sua sociedade reunida, o exercício direto, sem intermediários, do poder estatal.

A vasta extensão territorial do Estado e a alta densidade demográfica, aliadas, ainda, à complexidade dos problemas sociais, seriam componentes, segundo ensina José Afonso da Silva, que explicariam as razões pelas quais teria se sentido o povo, fonte primária do poder, obrigado a outorgar - embora permanecesse na condição de único titular do poder - as funções de governo a representantes escolhidos periodicamente84. Foi daí, então, que surgiu, já no final do século XVIII, a modalidade de democracia que, pelas técnicas que se passava a partir daquele momento a empreender, se convencionou denominar de indireta ou representativa85, na qual o povo, ainda que preservando a condição de seu único titular, passava a não mais exercitar seu poder diretamente, mas sim, por intermédio de representantes eleitos para externar sua vontade, a fim de que, em seu nome, fosse o mesmo legitimamente exercido.

Embora reconhecidamente bem formulada em nível teórico e o relativo sucesso verificado em diversos casos pontuais, o fato é que registra a história, em inúmeros momentos, que as experiências práticas por que passou a democracia representativa, ao longo dos últimos séculos, conduziram, na verdade, a uma espécie de esvaziamento do seu real sentido.

Não se deve olvidar, afinal, do exagero observado - sobretudo em países do mundo ocidental – em torno da idéia da representatividade, o qual acabou culminando no equivocado e generalizado entendimento de que, à configuração do regime democrático, bastaria, tão somente, que fosse conferida ao povo a prerrogativa de eleger seus

84 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.

136.

85 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.

representantes, a quem caberia expressar a vontade geral86. Ademais, a coleta não raras vezes viciada da manifestação da vontade popular, obtida, quase na generalidade dos casos, a partir de métodos espúrios de aferição, tal como eleições com previsão de votos censitários, ausência de votação secreta, eleições indiretas, além de fraudes eleitorais diversas87, igualmente serviu à corrosão paulatina do teor representativo do princípio democrático. A desfiguração verificada foi tanta, que chega Schirato a afirmar que, da forma como funcionavam na prática os mecanismos, não havia outra coisa senão um disfarce: “o que por muito foi entendido como democracia nada mais era do que um formalismo com pretensa função legitimadora”88.

Conforme se percebe, servem esses exemplos para se reforçar o quanto, na verdade, necessita a democracia ser compreendida na plenitude de seu conteúdo e na total extensão dos valores cujo alcance se propõe a instrumentalizar. Afigura-se óbvio, então, que não pode ela jamais ficar circunscrita apenas a um regime que tão somente confira ao povo a prerrogativa de escolha de seus governantes, ainda que, enfatize-se, o procedimento empregado para esta tarefa seja despido de toda sorte de burla, contaminação ou ilegalidade. É inadmissível, ainda, que seja ela confundida com as próprias técnicas e métodos que emprega na busca pela realização dos valores que considera essenciais à convivência humana. Assim, constituindo-se a democracia, incontestavelmente, em um processo dialético-histórico de aperfeiçoamento contínuo, há de ser permanentemente considerado, à

86 SCHIRATO, Vitor Rhein. O processo administrativo como instrumento do Estado de Direito e da

Democracia. In: Atuais rumos do processo administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 38.

87 Victor Nunes Leal, referindo-se particularmente ao caso brasileiro, exemplifica no chamado “bico de pena” e

na denominada “degola” ou “depuração” duas dessas fraudes, muito comuns, segundo explica, no Brasil da época da República Velha (1889-1930). A primeira, descreve, seria aquela praticada pelas mesas eleitorais com funções de junta apuradora: inventavam-se nomes, eram ressuscitados os mortos e os ausentes compareciam; assim, no momento de redação das atas, a pena todo-poderosa dos mesários realizava milagres portentosos. A degola, por sua vez, seria obra das câmaras legislativas no reconhecimento de poderes: muitos dos que escapavam das ordálias preliminares tinham seus diplomas cassados na provação final (LEAL, Victor Nunes.

Coronelismo, enxada e voto – o município e o regime representativo no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1997, p. 255-256).

88 SCHIRATO, Vitor Rhein. O processo administrativo como instrumento do Estado de Direito e da

tentativa de sua concretização, o enriquecimento constante que é promovido, em seu conteúdo, ao serem abraçados por ela novos valores a cada etapa da evolução do homem89. Novas perspectivas, desta forma, sempre serão uma possibilidade para o futuro, e as metas que ao presente soam inatingíveis, um desafio mais adiante a ser superado.

Foi com amparo nessa perspectiva, portanto, que se iniciou, a partir dos anos 50 do século passado, uma crescente inquietação no sentido de no plano prático ver-se implementado, nos regimes ditos democráticos, um dos princípios fundamentais sobre o qual deve este repousar, qual seja, a participação efetiva do povo no exercício do poder. Afinal, começava a ganhar força, naquele período, a concepção acerca da incompletude do conteúdo democrático dos sistemas que se limitavam, apenas, à mera promoção da eleição para o provimento dos cargos governamentais. A verdadeira excelência democrática, conforme passava a se entender, não se exauriria na origem eleitoral daquele que administra, pois em seu bojo deveria estar inclusa, também, a obrigatoriedade de viabilizar-se ao povo o exercício efetivo do poder.

Cogitou-se, então, da classificação em democracia formal ou estrutural, relativa à formação do governo; e democracia funcional ou substancial, referente à atividade do governo90. Houve, ainda, quem as denominasse de democracia de investidura e democracia de funcionamento ou de operação91.

Dali em diante, foi só uma questão de tempo para que ganhasse coro, nos níveis doutrinário, jurisprudencial e legal, a chamada democracia administrativa, que têm suas bases assentadas, essencialmente, na garantia de se permitir ao cidadão sua efetiva participação na construção do conteúdo das decisões governamentais que possam afetá-lo. É de se atentar

89 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008,

126.

90 LAVAGNA, Carlo. Considerazioni sui caratteri degli ordinamenti democratici. In: Rivista Trimestrale di

Diritto Pubblico, 1956, p. 396.

91 BALDASSARRE, Antonio. Lo stato sociale: una formula in evoluzione. In: Critica dello stato sociale.

que, com a consolidação que conquistou essa modalidade nas últimas décadas, impossível se tornou pensar em democracia plena, hoje, sem que seja atribuída ao povo a competência para intervir ou colaborar, de forma concreta, na formação das decisões estatais. Com isso, todo aquele paradigma de autoridade que carregava a Administração Pública consigo, esculpido em grande parte devido ao modo unilateral com o qual costumava impor seus pontos de vista, deu lugar, enfim, a um padrão democrático de atuação, no qual devem sempre prevalecer, na construção conjunta das decisões, a ponderação, o consenso e o diálogo com os administrados, que já não mais agora são tratados como súditos, mas sim, verdadeiros parceiros do poder público na tarefa de sopesamento dos interesses.

Esclarecidas, então, essas premissas, fácil se afigura a compreensão acerca do papel decisivo que desempenha o processo administrativo em meio a essa postura horizontal que, nas últimas décadas, vem caracterizando o comportamento da Administração Pública nas relações que mantém com os particulares, sobretudo quando se têm em vista as questões que, dela reclamando uma definição, são aptas a afetar direitos daqueles.

Com efeito, sabe-se que até hoje não foi concebido, e dificilmente um dia o será, qualquer outro instrumento que, da mesma forma que o processo, reúna tantas condições favoráveis à efetiva inserção do administrado, na qualidade de partícipe, no conjunto de atividades administrativas executadas pelo poder público. Não é por outra razão, senão esta, que enfatiza Vitor Rhein Schirato: “(...) o processo administrativo é o elemento-chave para possibilitar a participação dos interessados no processo decisório do Estado, em consonância com os mandamentos do regime democrático”92.

Ademais, tão estreita se apresenta a relação que guardam entre si, que é exatamente na face instrumental do processo administrativo, perceba-se, que encontra a democracia um meio hábil à sua forma plena de realização. Afinal, não se deve esquecer que

92 SCHIRATO, Vitor Rhein. O processo administrativo como instrumento do Estado de Direito e da

é através da processualidade que resta assegurada a efetiva e viável possibilidade de intervenção do cidadão nas ações estatais e, com isso, a concretização de um dos princípios democráticos fundamentais93.

Por outro lado, à medida que abandona sua tradicional postura autoritária, do tipo marcadamente vertical e militar94, para aproximar-se de um modelo concertado, onde restem enaltecidos o debate e a composição, é inegável que ganha a Administração Pública, de forma concomitante, com a utilização da marcha processual, um viés marcadamente democrático95. A mesma percepção é sentida por Vasco Manuel Pascoal Pereira da Silva: “Indiscutível é, no entanto, que a participação dos privados no procedimento constitui uma forma de democratização da Administração Pública”96.

Contudo, não é somente pelo fato de viabilizar ao indivíduo sua participação nos atos que antecedem à decisão que guarda o processo administrativo forte liame com as bases do regime democrático. Outros aspectos, ainda, podem ser observados. Odete Medauar, por exemplo, aponta o pluralismo como um dos valores apreciados pela democracia que se verá realizado na medida em que se permita, pelo processo, a efetiva chegada, ao conhecimento da Administração, dos variados e controversos pontos de vista dos sujeitos dele participantes. Além disso, a considerável ampliação que é conferida à possibilidade de controle sobre a

93 Stanley Smith e Rodney Brazier, atentos a essa indissociável vinculação, chegam até mesmo a advertir,

inclusive, que a democracia prevista em uma determinada constituição deve ser aferida, verdadeiramente, a partir da real possibilidade que esta conceda a um indivíduo de poder contestar uma decisão por cujos efeitos se sinta afetado, como também pela oportunidade concreta que deve a mesma previamente oferecer, a todos aqueles que em tese podem vir a ser atingidos pelo ato, de participar do processo que lhe antecedeu (SMITH, Stanley e BRAZIER, Rodney. Constitutional and administrative law. 6ª ed. Londres: Penguin Books, 1989, p. 537).

94 Cf. BOTELHO, José Manuel Santos; ESTEVES, Américo Pires; PINHO, José Cândido. Código de

Procedimento Administrativo anotado e comentado. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 21).

95 No Brasil, inclusive, o Tribunal Regional Federal da 5ª região, em um de seus julgados, já expôs essa profunda

imbricação que inevitavelmente há entre ambos: “A homenagem ao devido processo legal é um comportamento da Administração Pública que se insere no cultivo à democracia e respeito ao direito do cidadão” (Ap. cível 29.169-AL, rel. Juiz José Delgado, DJ 29.04.1994, p. 19.461).

96 SILVA, Vasco Manuel Pascoal Pereira da. Em busco do ato administrativo perdido. Coimbra: Almedina,

atuação administrativa, conforme lembrado ainda pela mesma autora, constitui outra importante contribuição do processo ao fortalecimento das bases democráticas97.

Atente-se, então, que motivos não faltam para concordar-se com Luiz Guilherme Marinoni quando, fazendo referência à importância do processo, arremata o mesmo que:

(...) não pode ser visto apenas como uma relação jurídica, mas sim como algo que tem fins de grande relevância para a democracia, e, por isso mesmo, deve ser legítimo. O processo deve legitimar – pela participação -, deve ser legítimo – adequado à tutela dos direitos e aos direitos fundamentais – e ainda produzir uma decisão legítima98.

Conforme se percebe, é inequívoco o fundamental papel que cumpre o processo administrativo na construção e consolidação de uma Administração Pública com viés democrático.

3.5 AS TRÊS ESPÉCIES DE PROCESSOS ADMINISTRATIVOS: O MODELO DE