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3 O PAPEL DO PROCESSO ADMINISTRATIVO NA ADMINISTRAÇÃO

5.2 A NORMA SANCIONADORA DE DIREITO ADMINISTRATIVO E SUA

5.2.1 Princípio da legalidade

É certo que possui o princípio da legalidade, como corolário lógico da opção constitucional por um Estado de Direito, o condão de orientar e condicionar toda e qualquer

atividade desenvolvida pelo poder público. É induvidoso, também, o relevante papel histórico que desempenhou o princípio na formação e consolidação de todo o Direito Administrativo, no que se inclui, claro, a função administrativa sancionadora.

Desta forma, nada mais natural que a competência punitiva estatal, também na seara administrativa, venha a encontrar, na legalidade, sérias restrições constitucionais ao seu exercício. Aliás, a força que detém o princípio é tanta, que ambas as dimensões – formal e material – do Direito Administrativo Sancionador defrontam-se com balizas provocadas por sua interferência. Afinal, conecta-se profundamente o mesmo, por um lado, ao Estado de Direito; e, por outro, ao devido processo legal, que orienta toda a atividade punitiva executada pelo poder público.

Ademais, muitos são os endereços constitucionais que se apontam para se fundamentar a exigência da observância à legalidade no exercício da função sancionadora. Basta observar que se reporta a Lei Maior, em um primeiro momento, a uma genérica garantia de legalidade conferida ao cidadão189 e, mais à frente, quando trata da Administração Pública em sentido amplo, novamente lhe faz alusão ao estabelecer limites expressos aos Poderes Públicos190. A referência direta ao devido processo legal, inclusive, pode ser indicada como mais um dos fundamentos constitucionais do princípio.

No Direito Administrativo Sancionador, especificamente, vem o princípio a impor a legalidade dos tipos sancionadores, o que significa, em outras palavras, que somente por lei formal é que deverão ser tipificadas determinadas condutas como ilícitas, a mesma regra valendo, também, para as suas respectivas sanções. Verifica-se, pois, que escapa à competência normativa da Administração, por vedação constitucional, a descrição tanto dos comportamentos puníveis quanto das penas aos mesmos aplicáveis.

189 Vide art. 5º, II, da Constituição Federal 190 Vide art. 37, caput, da Constituição Federal

Portanto, no caso de não taxar a lei como ilícita determinada conduta, é inequívoco que não haverá o menor espaço à Administração Pública para fazê-lo. Daí o porquê de sentenciar Carlos Ari Sundfeld: “à legalidade repugnaria a norma administrativa definir como ilícito (proibido, portanto) comportamento permitido pelo silêncio da lei”191.

Vê-se, então, que o princípio da legalidade, no campo punitivo, “retrata a remessa da punição à soberania popular”, como observa Marçal Justen Filho192. Logo, a mensagem na qual se pode traduzir o princípio, toda vez que estudado nesse plano, segundo se depreende das palavras do autor, é que compete somente ao povo, titular da soberania, por intermédio de seus representantes, proceder à qualificação de certos atos como ilícitos e optar pelas sanções que entender adequadas.

Um ponto sempre debatido, em meio a essa temática, diz respeito à possibilidade ou não de Medida Provisória consignar infrações administrativas e cominar sua respectiva sanção. Com a devida vênia ao pensamento de Fábio Medina Osório, que expressamente admite tal hipótese em alguns casos193, perfilha o presente trabalho, com fulcro nas opiniões de Heraldo Garcia Vitta194, Edilson Pereira Nobre Júnior195e Rafael Munhoz de Mello196, o entendimento que a refuta completamente.

191 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1ª ed., 3ª tir. São Paulo: Malheiros, 2003, p.

80.

192 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14ª ed. São

Paulo: Dialética, 2010, p. 882.

193 “Em Direito Penal, descabe cogitar de medidas provisórias na tipificação de infrações e sanções. Decorre esta

vedação de expressa previsão constitucional, diante da reserva de lei. Porém, em matéria de Direito Administrativo Sancionador, não há, necessariamente, essa mesma restrição, com idêntico alcance. (...) Pode-se aceitar tal instrumento em campos e punições menos impactantes nos direitos fundamentais” (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 207).

194 “A mudança introduzida no art. 62, da Constituição, pela Emenda Constitucional 32, que vedou a edição de

medidas provisórias sobre matéria de direito penal, não é razão bastante para possibilitar o uso delas nas sanções administrativas, pois, conforme visto antes, os ilícitos penal e administrativo são, ontologicamente, iguais; e, além disso, não se pode interpretar um dispositivo de maneira isolada, devendo ser analisado em conjunto com outras regras e princípios norteadores do sistema normativo, entre os quais o da dignidade da pessoa humana e o do regime democrático de Direito (arts 1º e 2º, da CF), sem falarmos do princípio da segurança jurídica, tantas vezes mencionado” (VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 86-87).

195 “Apesar de configurar expressão da competência de legislar, vale contra essa espécie normativa [medidas

provisórias] os mesmos argumentos tecidos pela doutrina, no particular da definição de crimes e penas, qual seja o de não se admitir tipo sob condição” (NOBRE JR., Edilson Pereira. Sanções administrativas e princípios de direito penal. In: Revista de Direito Administrativo nº 219. Rio de Janeiro: Renovar, jan/mar. 2000, p. 134).

Não se trata, esclareça-se desde logo, de se pretender negar aqui, a este instrumento normativo, a qualidade que este reconhecidamente ostenta de lei formal, até mesmo porque, à medida que integram esses diplomas o rol descrito no art. 59 da Constituição da República, resta inegável sua aptidão para, de modo primário, promover inovações junto à ordem jurídica.

Ocorre que, mesmo detendo as medidas provisórias essa capacidade, a verdade é que não se coaduna seu regime jurídico precário com a estabilidade requerida para o disciplinamento de sanções, sejam estas de Direito Administrativo ou de Direito Penal, inclusive. Afinal, não há como se conceber, por força do princípio da segurança jurídica, que se instituam ilícitos e sanções sob tal ou qual condição – traduzida esta, no caso das medidas provisórias, na sua aprovação, dentro do prazo constitucional, por ambas as casas do Congresso Nacional.

É de se pontuarem, ainda, as distinções relevantes observáveis entre os respectivos regimes da legalidade penal e da legalidade inerente à função administrativa sancionadora. Não se deve olvidar, enfim, que é exatamente devido ao fato de se submeterem a regimes jurídicos não coincidentes que se subdividem as sanções em classes ou espécies estudadas separadamente.

Nesse passo, cabe verificar que, diferentemente do que ocorre na seara penal, não se exige, para a tipificação de ilícitos administrativos, que sua previsão tenha amparo em lei federal. Com efeito, tanto aos Municípios quanto aos Estados, como também ao Distrito Federal e à União, é permitido legislar, por seus órgãos constitucionalmente definidos, acerca

196 “Ora, as sanções administrativas são impostas pela Administração Pública, estrutura hierárquica que tem em

seu topo, no âmbito federal, o Presidente da República, a quem a Constituição Federal outorga competência para editar medidas provisórias. Admitir que as sanções administrativas sejam criadas por medida provisória significa aceitar que um mesmo sujeito crie a norma e a aplique – situação que vai de encontro ao princípio do Estado de Direito e à idéia de separação de poderes, que é seu pressuposto. Até que fosse apreciada pelo Poder Legislativo, as sanções administrativas criadas por medida provisória seriam impostas pelo mesmo ente que as criou – o que dá margem ao exercício arbitrário do poder estatal” (MUNHOZ DE MELLO, Rafael. Princípios

Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. As sanções administrativas à luz da Constituição

de infrações e sanções administrativas, sendo inclusive possível, a cada um daqueles entes federativos, vir a disciplinar o procedimento a ser seguido, na sua respectiva esfera, pelo processo punitivo correspondente, desde que respeitadas, claro, todas as garantias insertas na cláusula do devido processo legal. Observa-se, pois, com isso, que vigora, para o Direito Administrativo Sancionador, a idéia da descentralização legislativa, ao contrário do que acontece no Direito Penal, onde impera a reserva de lei federal.

Não se deve olvidar, também, ainda no tocante às diferenças de conteúdo que apresenta o princípio numa e noutra esfera, de um certo grau de flexibilidade que se sabe existir na legalidade inerente à atividade administrativa sancionadora, algo verdadeiramente inaceitável à tradição penalística, sensivelmente marcada pela rigidez com que são tipificadas como crimes as condutas às quais se cominam sanções197. A consequência prática que se observa diante disso, conforme se pode deduzir, é a de que os tipos sancionadores de Direito Administrativo, compostos não raras vezes por conceitos ou termos jurídicos altamente indeterminados, comportam uma elasticidade bem superior àquela que é verificada nos tipos penais, o que culmina conferindo, à autoridade administrativa julgadora, amplos espaços para formar sua convicção acerca da subsunção do fato à norma punitiva.

197 Atento a essa realidade, aduz Fábio Medina Osório que residiria a razão para tamanha diferença na ausência,

no Direito Administrativo Sancionador, do que denomina de “amarras” que escravizariam as normas penais, que seria decorrente, em grande parte, das distintas trajetórias históricas percorridas por cada um desses sistemas: enquanto o sancionamento administrativo era tratado, inicialmente, no bojo do chamado poder de polícia (à margem, portanto, do Direito Punitivo), sempre caracterizado, como se sabe, pela discricionariedade com que costuma ser manejado, enfrentou a evolução do Direito Penal, no caminho que traçou, o amadurecimento progressivo de um conjunto universal de direitos humanos e de direitos fundamentais positivados (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 207). Daí o porquê, segundo explica o mesmo autor, da legalidade da função administrativa sancionadora, mais flexível, ser permeada, até hoje, por competências discricionárias orientadas à consecução do interesse público (Ibid., p. 208).