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3 O PAPEL DO PROCESSO ADMINISTRATIVO NA ADMINISTRAÇÃO

5.2 A NORMA SANCIONADORA DE DIREITO ADMINISTRATIVO E SUA

5.2.3 Princípio da irretroatividade

É de se recordar, por oportuno, que um dos princípios gerais do Direito, segundo a lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, repousa na regra geral que impõe a irretroatividade das leis199. Assim, por força de tal enunciado, já é possível se concluir que todas estas devem ser concebidas, independentemente de conterem dispositivos sancionadores ou não, sempre na intenção, via de regra, de virem a promover o disciplinamento de casos futuros, e não com o fito de serem aplicadas a fatos já ocorridos.

É exatamente a partir desse mandamento universal, pois, que emerge, entre nós, o chamado princípio da irretroatividade, outro preceito basilar com origem direta na segurança jurídica que o Estado de Direito tenciona ofertar. Não deve causar estranheza, assim, o fato de aqui lhe serem tecidas algumas considerações, até mesmo porque são cediças as relevantes implicações que provoca o princípio na teoria acerca da aplicação da norma sancionadora do tempo.

Nesse passo, cumpre de início estabelecer que, como corolário lógico do princípio da legalidade, ao qual inevitavelmente se integra, determina o princípio da irretroatividade, no âmbito do Direito Administrativo sancionador, que todo e qualquer ato abstratamente reputado por lei como ilícito, sempre que se tenha noticiada sua prática, venha a receber, do organismo estatal competente, o tratamento que lhe seja conferido por normas que obrigatoriamente se revelem preexistentes ao seu cometimento, haja vista que não é admitida, pelo preceito, a interferência de legislações ulteriores.

199 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. v. I. Rio de

Importa ainda observar que, à medida que assentado com nítido foco no ideário de justiça e de isonomia200, vem o princípio a representar, conforme assinalado por Heraldo Garcia Vitta, “uma garantia ao cidadão e também uma certeza do Direito”201. Enfim, é exatamente por obra da irretroatividade imposta pelo preceito, não se deve olvidar, que fica assegurado, aos particulares, que seu comportamento só poderá ser apenado desde que haja previsão, neste sentido, em normas legais vigentes ao tempo da sua prática, o que seguramente vem acompanhado do fornecimento da convicção, imperiosa, de que não será sua esfera jurídica surpreendida com a incidência, sobre si, de dispositivos sancionadores que eventual e posteriormente cheguem a ser editados.

Não há dúvidas, portanto, considerado o sistema brasileiro, acerca da total inaplicabilidade, a fatos anteriores, de lei formal que crie uma dada infração administrativa e preveja sua respectiva sanção, o mesmo se podendo afirmar, ainda, nos casos de advento de diploma legal que venha a majorar, qualitativa ou quantitativamente, esta última. Acresça-se, também, que nem mesmo à lei, em ambas as situações, será permitido, sob pena de flagrante inconstitucionalidade, dispor favoravelmente acerca de sua própria retroação, pois, embora não se tenha, na Magna Carta de 1988, qualquer previsão ostensiva neste sentido, trata-se de um garantia que, imanente ao texto constitucional, decorre diretamente do princípio da segurança jurídica, postulado inafastável do Estado de Direito.

A mesma facilidade com que se chega a esta última conclusão, contudo, não é observada quando se tem em vista a superveniência de lei abolidora da ilicitude (administrativa) da conduta ou atenuadora da sanção correspondente. Não se deve deixar de perceber, afinal, que inexiste, no âmbito do Direito Administrativo sancionador, regra similar

200 Cf. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2009, p. 266.

à que vige para a legislação penal, cuja retroatividade, nos casos em que gere benefícios ao acusado, é imposta por força de expressa ordem constitucional202.

Na verdade, toda vez que é considerada, em nosso sistema, a possibilidade da edição de uma lei posterior que se mostre mais vantajosa ao particular acusado do cometimento de ilícito administrativo, três situações distintas se apresentam possíveis. Abaixo, examinar-se-ão as consequências de cada uma delas.

A primeira hipótese, de mais fácil resolução, ocorre quando a nova lei, não deixando espaço ao surgimento de qualquer dúvida a respeito, em seu próprio texto vem a estabelecer, ostensivamente, que devem seus dispositivos ser aplicados a casos pretéritos. Para estas situações, tem-se como inequívoca, sublinhe-se, a plena retroação da norma com o fim de beneficiar o infrator. Enfim, é de se reconhecer que não há nenhum óbice, de natureza constitucional ou legal, que impeça tal previsão. Ademais, não pareceria nem um pouco razoável que se prestasse o princípio da irretroatividade, caracterizado que é por seu feitio protetivo, a deixar de conceder ao acusado um benefício que eventualmente lhe traga lei posterior.

A segunda hipótese, por sua vez, diz respeito ao silêncio que porventura se verifique numa cadeia de normas sucessivas. Aqui, diferentemente do que se cogitou acima, uma lei mais favorável nada vem a dispor acerca da possibilidade de sua incidência sobre fatos passados. Para estes casos, a solução que se deve adotar, segundo a quase totalidade da doutrina203, caminha no sentido da admissão da retroação, entendimento ao qual se adere por

202 Vide art. 5º, XL, da Constituição Federal.

203 Mencionem-se aqui, por exemplo, na doutrina nacional, os ensinamentos de Daniel Ferreira (FERREIRA,

Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 138-139), Heraldo Garcia Vitta (VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 113), Edilson Pereira Nobre Júnior (NOBRE JR., Edilson Pereira. Sanções administrativas e princípios de direito penal. In: Revista de

Direito Administrativo nº 219. Rio de Janeiro: Renovar, jan/mar. 2000, p. 145-147) e Fábio Medina Osório

(OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 271); e, na doutrina internacional, as lições de Hartmut Maurer (MAURER, Hartmut. Elementos de direito

administrativo alemão. Trad. de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 2001, p. 78).

Em sentido contrário, tem-se a opinião de Rafael Munhoz de Mello (MUNHOZ DE MELLO, Rafael. Princípios

variadas razões: a uma, porque não haveria qualquer motivo para o engessamento de normas ultrapassadas; a duas, porque insistir na aplicação de um dispositivo normativo já revogado não traria nenhuma vantagem social; a três, por força do princípio constitucional da igualdade e dos valores relacionados à justiça; a quatro, devido ao fato da retroatividade decorrer “de um imperativo ético de atualização do Direito Punitivo, em face dos efeitos da isonomia”204; e a cinco, por simetria ao tratamento que é conferido, no Direito Penal, às normas que se mostrem mais benéficas ao réu.

A terceira hipótese, por fim, tem lugar toda vez que, na própria redação da lei mais favorável ao acusado, vier expressamente consignada a vedação de sua retroatividade para abranger fatos já ocorridos. O desafio, aqui, se afigura mais difícil, pois a tarefa de se encontrar uma solução a essas situações, à luz do direito brasileiro, irá sempre reclamar do intérprete uma ponderação equilibrada acerca de uma série de circunstâncias presentes sobre o caso concreto. Assim, pode-se dizer que não existe, para tais situações, uma resposta única que, pronta e definitiva, sirva para a resolução da generalidade das hipóteses possíveis, haja vista que caberá somente ao aplicador do Direito, considerado cada caso individualmente, o trabalho de sopesamento dos direitos e dos dispositivos normativos em disputa205.

Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 155), para quem não deve a lei mais benéfica jamais retroagir, a menos que ela própria, expressamente, contenha essa previsão.

204 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2009, p. 268.

205 Esta parece ser, inclusive, a opinião de Fábio Medina Osório quando, atento a essa dificuldade, descreve uma

possível trilha a ser percorrida, pelo intérprete, na busca por respostas quanto à constitucionalidade ou não, considerada a individualidade de cada caso, da proibição, fixada pelo legislador, da retroação de norma que se mostre mais benéfica ao acusado da prática de ilícito administrativo: “Se o legislador veda a retroatividade, há que se analisar, desde logo, se a proibição possui sentido e funcionalidade justificáveis no Estado Democrático de Direito. Essa análise haverá de sopesar uma série de circunstâncias. Terá o legislador legitimidade e interesse na vedação do benefício da retroatividade? Eis aí uma linha de questionamento que se desdobrará em múltiplas consequências. Que tipo de direito fundamental será afetado pela proibição da retroatividade? Eis outro leque de relevantes consequências a ser explorado. Somente o processo argumentativo, no bojo da decisão a ser adotada, poderá revelar o sentido dos textos e dispositivos em confronto. A visão a ser adotada, porém, haverá de corresponder a uma política hermenêutica restritiva, evitando que o legislador possa proibir retroatividade a efeitos de normas mais benéficas, dirigidas a direitos fundamentais indisponíveis, abrigando valores estáveis que deveriam sofrer o impacto das alterações normativas” (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo