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3. Programas de promoção da Autorregulação da aprendizagem

3.2. O programa Cartas do Gervásio ao seu umbigo

Como apresentado anteriormente, o programa cartas do Gervásio ao seu umbigo foi inicialmente desenvolvido em Portugal, na Universidade do Minho, em colaboração com pesquisadores da Universidade de Oviedo, na Espanha, no entanto, hoje conta com parceiros em diferentes países como, Brasil, Chile, Moçambique, México e Colômbia (Rosário, Polydoro, Fuentes & Gaeta, 2012). Tem como objetivo proporcionar aos estudantes do ensino superior um espaço para a reflexão favorável ao desenvolvimento de estratégias de aprendizagem, da autonomia e da autorregulação da aprendizagem.

Diferentes pesquisas apontam a eficácia desse programa para promover os processos autorregulatórios (Núñez et al., 2011, Rosário, Mourão et al., 2010a, b; Magalhães, 2009; Nunes, 2009, Rosário, Mourão et al., 2007, Pina, Rosário, Tejada & Lara 2006, Solano, 2006, Rosário et al., 2005). Os alunos tendem a apresentar melhores resultados, a favor do pós-teste, diminuição no processo superficial de estudo, maior conhecimento das estratégias de aprendizagem, tendendo a planejar, executar e avaliar mais as atividades de estudo. Pesquisas nacionais também destacam resultados positivos do programa (Freitas, 2013; Polydoro, Rosário & Freitas, 2012; Freitas, Polydoro & Rosário, 2012,), evidenciando a contribuição para ajudar o aluno a refletir, treinar e aplicar competências de estudo e aprendizagem no ensino superior (Freitas, 2013; Freitas, Polydoro & Rosário, 2012; Pelissoni, Polydoro, Freitas & Rosário, 2013; Pelissoni, Polydoro, Freitas, Emilio & Rosário, 2013).

Rosário et al (2014 b) realizaram um estudo de análise transcultural desse programa. Para isso, analisaram resultados (pré e pós-teste) de 510 estudantes ingressantes, sendo que 263 participaram da intervenção em diferentes países, a saber: Portugal, Chile, Espanha e Moçambique. Os resultados indicaram que o programa é efetivo tanto para promoção do uso de estratégias de ARA e nas variáveis motivacionais, especialmente autoeficácia para ARA, que estão diretamente relacionadas ao processo de estudo. Especificamente, após a intervenção, foram identificadas diferenças significativas sempre a favor dos participantes do grupo experimental em relação a: uso de estratégias de ARA, a qualidade da escrita de texto de acordo com a Taxonomia de Estrutura de Resultados da Aprendizagem Observada (Biggs, 1982), autoeficácia para autorregulação. Em relação à instrumentalidade da ARA foi observada mudança significativa, com efeito médio, somente em Moçambique e no Chile, e não nos países europeus (Espanha e Portugal). Essa situação é justificada pelos autores a partir do contexto em que os dois paises estão inseridos, na reforma do ensino superior com o

processo de Bolonha, na qual pretende-se desenvolver o autonomia do estudo com uso de novas tecnologias no formato de grandes aulas, mas as pesquisas mostram que isso não está acontecendo de fato, visto que os estudantes não declaram utilizar estratégias de aprendizagem para poder responder às diferentes demandas das tarefas acadêmicas.

Após controlar estatisticamente o efeito de covariantes (idade, genêro e país de realização da intervenção) Rosário e colaboradores (2014b) concluiram que o programa Cartas de Gervásio é eficaz independentemente do país que foi implementado. Os autores argumentam que isso pode ser justificado por inúmeras razões, mas destacam o papel da aprendizagem vicária (a partir das situações vividas pelo personagem Gervásio), e a possibilidade de discutir as estratégias de ARA do personagem pode ser próximo às dificuldades e tarefas que os estudantes enfrentam em diferentes países. Ou seja, os alunos se identificam e discutem as próprias dificuldades na intervenção, além de aprenderem as estratégias ARA discutidas. Desse modo, os autores indicam que os gestores das IES poderiam considerar a possibilidade da organização de cursos ou oficinas com formato parecido sobre estratégias de ARA como uma forma de apoiar a aprendizagem dos estudantes. Além disso, foi identificado que a idade não está associada com diferenças estatísticas no pós- teste, enquanto o gênero parece ser uma variável que deve ser levada em consideração, principalmente, em relação ao uso de estratégias de autorregulação e autoeficácia para autorregular-se.

Freitas (2013) realizou uma pesquisa quase-experimental para avaliar a eficácia desse programa com estudantes ingressantes brasileiros. A partir de análises quantitativas e qualitativas identificou evidências favoráveis à intervenção. Com base na estatística descritiva e inferencial, identificou que os resultados dos participantes do grupo experimental (n=26) foram significantemente melhores nas variáveis: autorregulação da aprendizagem, instrumentalidade para autorregular-se, conhecimento das estratégias de aprendizagem, autoeficácia para autorregular-se e autoeficácia na formação superior no pós-teste.

A partir da análise de conteúdo de questões de avaliação da intervenção, a autora observou que a maioria dos estudantes afirmou que o programa atendeu às expectativas e possibilitou mudanças de natureza acadêmica. Segundo Freitas (2013), foram identificadas cinco categorias de mudanças no processo de aprendizagem e de estudo decorrentes da experiência na oficina: 1. Incremento de motivação e segurança pessoal – participantes relataram que estavam mais confiantes em si mesmos para promover mudanças e sentiam-se

mais à vontade para estudar, assim como, mais seguros para entender a matéria; 2. Aumento do conhecimento declarativo e da percepção de instrumentalidade – relato do aumento de informações sobre como melhorar o estudo a partir do aprendizado e/ou aperfeiçoamento de estratégias de aprendizagem e da identificação da utilidade dessas estratégias; 3. Autopercepção e identificação de estratégias de enfrentamento – relato de realização de autoavaliação diante das questões de estudo; 4. Maior apropriação do ambiente universitário – relato da contribuição da oficina para sua integração às novas exigências e à rotina da universidade; e 5. Fortalecimento do processo de autorregulação da aprendizagem – relato de novas estratégias de aprendizagem e de gerenciamento do tempo, tanto na fase de planejamento, como na fase de execução e avaliação.

De modo geral, Freitas (2013) identificou que o impacto imediato do programa ocorreu especialmente nas dimensões: pessoal, institucional e de estudo. Na dimensão pessoal por envolver questões relativas à autopercepção referente à capacidade de executar ações relativas à formação superior e para autorregular-se, à percepção sobre a utilidade das estratégias e à alteração de comportamentos relativos à autorregulação da aprendizagem. Já o impacto da oficina na dimensão institucional caracterizou-se pela apropriação de algumas rotinas e exigências da universidade, assim como na dimensão de estudo, o impacto foi evidenciado pelo fato de a oficina oferecer conhecimento sobre novas estratégias de aprendizagem. As condições que possibilitaram essas mudanças podem ser classificadas em duas categorias: a primeira relaciona-se às condições concernentes ao programa Cartas do Gervásio ao seu Umbigo e a segunda, às condições ligadas à intervenção; uma vez que os participantes relataram que as atividades conduzidas ao longo dos encontros, a postura das coordenadoras, a composição dos grupos, as cartas e o seu conteúdo foram fundamentais para o processo de mudança.

Segundo a percepção dos alunos, as mudanças, com médio impacto, ocorreram nas dimensões pessoal, de estudo e interpessoal. Na dimensão pessoal, por envolver questões relativas à motivação (pelo fato de os alunos se perceberem com mais motivação e autoconfiança) e a mudança de postura em sala de aula (falar em público e argumentar mais em sala de aula). Na dimensão estudo por envolver questões relativas à utilidade, autopercepção de estratégias de enfrentamento e autorregulação da aprendizagem, por oferecer conhecimento sobre novas estratégias de aprendizagem e, como consequência, mudanças de natureza comportamental. Na dimensão interpessoal ocorreram mudanças pela

promoção de contato com colegas de diferentes cursos, experiências e/ou dificuldades e pelo apoio especializado das coordenadoras.

Dessa forma, Freitas (2013) concluiu que o programa Cartas do Gervásio ao seu Umbigo foi eficaz quando realizado com universitários ingressantes em uma instituição pública e pode ser oferecido por serviços de apoio a estudantes em outros momentos de formação. Além disso, a autora sugere que futuras pesquisas podem avaliar o impacto do programa, em diferentes formatos (presencial, à distância ou híbrido), no desempenho dos alunos; mensurar o impacto do programa no desempenho dos alunos a partir da análise por equação estrutural entre variáveis condicionais, de aprendizagem e de desempenho; avaliar o impacto do programa no desempenho dos alunos em longo prazo e a partir da generalização para outras esferas da vida.

Em levantamento bibliográfico sobre o programa não foi identificada nenhuma iniciativa que combina os dois procedimentos, presenciais e virtuais. Identificou-se que o programa foi realizado em grande parte no formato presencial (Rosário et al., 2010a; Rosário et al, 2010b; Rosário et al, 2010c; Nunes, 2009; Magalhães, 2009; Pina, Rosário e Tejada, 2008; Rosário et al, 2007; Pina et al, 2006; Solano, 2006), somente duas pesquisas relatam intervenções virtuais (Cerezo, 2010; Núñez et al., 2011). Destaca-se que as atividades híbridas podem trazer beneficios tanto para os participantes quanto para as instituições envolvidas, já que combinar os dois procedimentos pode ativar melhor os processos de ARA, além de otimizar recursos utilizados, visto que os mesmos podem ser aplicados em um número maior de estudantes.

Cerezo (2011) objetivou mensurar a eficácia, a efetividade e a eficiência do programa nos formatos virtual e presencial e identificou que o formato virtual oferece mais benefícios do que o presencial, pois aperfeiçoa o processo de aprendizagem dos alunos e promove melhor rendimento, uma vez que os estudantes dedicaram menos horas do que os alunos que participaram do formato presencial. Em relação à utilidade do programa, em ambos os formatos, os alunos o consideram de grande utilidade. No entanto, quando submetidos ao formato virtual, os alunos apresentaram mais oportunidades para refletir sobre sua forma de estudar do que os participantes do formato presencial. A eficiência do programa foi mensurada a partir da relação custo–benefício de sua aplicação; em ambos os formatos foi identificado como eficiente, no entanto, o formato virtual, segundo os alunos, apresentou mais vantagens, uma vez que é flexível e requisita menos do docente e materiais (Cerezo, 2011).

Núñez e colaboradores (2011) desenvolveram pesquisa para identificar a eficácia do mesmo programa no formato virtual exclusivamente. O programa foi implementado por meio da plataforma Moodle em uma universidade espanhola. As 14 cartas do programa foram utilizadas ao longo de 13 sessões e ficaram disponíveis no ambiente virtual de aprendizagem aos alunos durante um período de 15 dias, para que eles pudessem entregar as atividades e ter o feedback do instrutor. Além disso, os estudantes dispunham de espaço para realizar debates sobre as atividades e os conteúdos lidos nas cartas. Os resultados indicaram que, após a intervenção, os estudantes que participaram do grupo experimental estavam mais capacitados em comparação aos do grupo controle, que exibiram mais conhecimento sobre as estratégias autorregulatórias, reportavam mais o uso de estratégias de autorregulação quando trabalhavam com textos, relatavam usar menos o enfoque superficial e mais o profundo em seus estudos acadêmicos e obtiveram melhor desempenho acadêmico ao final do ano. No entanto, os autores apontaram a necessidade de outras pesquisas investirem na avaliação dessa eficácia, uma vez que este foi o único resultado descrito com este programa.

Destaca-se que o programa Cartas de Gervásio ao seu umbigo é baseado na teoria social cognitiva, e se sustenta, principalmente, por dois pilares: a modelação (Rosário & Polydoro, 2012; Rosário et al., 2012a) e a narrativa (Rosário, Polydoro, Fuentes & Gaeta, 2013). A modelação é o processo pelo qual os observadores alteram pensamentos, crenças e comportamentos após observarem o desempenho do outro (Schunk, 2001). Os modelos podem ser reais ou simbólicos, mas, independentemente de qual for usado, é importante que haja similaridade do modelo, porque os efeitos motivacionais da aprendizagem por observação vicária estão relacionados à percepção da capacidade de realizar determinada ação ou alterar pensamentos, que seriam as crenças de autoeficácia (Schunk, 2001). Neste caso, Gervásio e Umbigo, além de outros personagens que fazem parte do programa servem de modelos, a fim de ensinar estratégias de aprendizagem e o automonitoramento.

A narrativa é o segundo pilar estruturante do programa, por ser mais uma oportunidade para que as pessoas tenham consciência de um conjunto de conhecimentos e comportamentos autorregulatórios que utilizam, ou sabem que deveriam utilizar, em sua aprendizagem (Rosário; Núñez; Gonzalez-Pienda, 2006; Rosário, 2004). A narrativa tem a função educativa de munir os alunos de conhecimentos que serão úteis futuramente e possibilitar outro tipo conhecimento não vinculado diretamente à aquisição de conhecimento, mas a uma aprendizagem profunda (Rosário et al., 2012).

O conteúdo das cartas, além de promover a autorregulação da aprendizagem, possibilita o desenvolvimento de competências de natureza instrumental, interpessoal e sistêmica (Freitas, 2013). As competências de natureza instrumental dizem respeito à capacidade de analisar e sintetizar a informação; procurar e combinar informação de fontes diversas; organizar, planejar e programar tarefas no tempo, além de conhecer e exercitar estratégias de tomada de decisão. A competência interpessoal diz respeito ao trabalho em equipe e à importância do papel de cada um no produto final. A competência sistêmica implica aplicação do conhecimento na prática; saber investigar e aprender, ter capacidade de adaptação a novas situações com soluções divergentes, trabalho autônomo e independente e necessidade do empenho pessoal para alcançar sucesso (Núñes, 2009; Freitas, 2013; Rosário & Polydoro, 2015).

Os estudos já desenvolvidos sobre o programa indicam algumas implicações de natureza metodológica e prática, entre elas, a necessidade de desenvolver estudos longitudinais para aumentar a generalização dos achados adquiridos do programa e de investigar os efeitos em longo prazo do programa (Rosário et al, 2014, Rosário et al., 2010b, Rosário et al., 2007b; Pina et al., 2006); a necessidade de construir instrumentos mais centrados na resolução de tarefas (Rosário et al., 2005 ) e que foquem medidas de ARA como evento, com a utilização de diários de estudos ou percepções do ambiente acadêmico (Rosário et al, 2014); a implementação de programas similares em formatos de seminários de recepção aos calouros ou sua inserção na grade curricular (Rosário et al., 2010a; Rosário et al., 2010b Rosário et al., 2007b; Pina et al., 2006;); o aprimoramento do programa no formato virtual (Núñez et al., 2011; Cerezo, 2011); a sugestão de inserir o professor no processo de mudança de atitudes do comportamento do aluno (Magalhães, 2009; Núñez, 2009). Segundo Freitas (2013) e Solano (2006), há evidência de que o programa tende a ser mais eficaz para alunos ingressantes do que para alunos mais experientes, uma vez que o programa possibilita mais noções da vivência acadêmica.

Como destaca Freitas (2013), o programa Cartas do Gervásio ao seu Umbigo não é a única possibilidade de intervenção em autorregulação da aprendizagem voltada para estudantes do ensino superior, porém é possível identificar que dentre as intervenções descritas na literatura, é a única que utiliza a narrativa para fomentar os processos autorregulatórios. A narrativa e outros pilares do programa justificam sua boa aceitação por parte dos ingressantes (Cerezo, 2011; Solano, 2006) e coordenadores de curso (Magalhães, 2009), além do interesse por parte de pesquisadores de diferentes países como a Espanha,

Portugal, Chile e Moçambique (Rosário el al., 2014) indicando a necessidade do desenvolvimento de outras pesquisas sobre o programa em outros contextos. Tendo em vista que o programa Cartas de Gervásio já estava adaptado para o contexto brasileiro, sua disponibilidade linguística, os ótimos resultados obtidos com os estudantes em diferentes momentos do curso no formato de justaposição curricular, optou-se pelo uso do programa.

Assim, esta investigação pretende responder as seguintes questões: será que uma disciplina que combina procedimentos presenciais de instrução sobre ARA, com discussão, ensino direto das estratégias de aprendizagem e uso de ferramentas virtuais é eficaz na promoção da ARA? Essa intervenção traria mudanças em variaveis cognitivas e metacognitivas (conhecimento das estratégias de aprendizagem, abordagens à aprendizagem, processos de ARA) e motivacionais (autoeficácia, instrumentalidade da ARA, procrastinação) dos estudantes envolvidos? Mesmo em curto prazo de tempo (um semestre) existiria impacto no desempenho acadêmico dos estudantes envolvidos?

Desta forma, propõe-se estudar a eficácia do programa Cartas de Gervásio ao seu umbigo (Rosário et al, 2012), desenvolvido no formato de disciplina eletiva, com design híbrido que combina procedimentos presenciais (leituras de materiais, discussão entre os participantes, dinâmicas ensino direto das estratégias) e virtuais (discussão em fóruns, disponibilização de materiais complementares e exercícios práticos).