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Caso 7 (Demissão): Cristina Ou me mandam ou eu pulo a cerca: o pedido de demissão [Auxiliar de Montagem Mãe de dois filhos Funcionária dedicada e apaixonada

2 TOYOTISMO, PRECARIZAÇÃO E GÊNERO: O TRABALHO EM CARGO DE COMANDO NA INDÚSTRIA CALÇADISTA

2.6 IMPACTO DO TOYOTISMO NO TRABALHO DE CHEFIA NA INDÚSTRIA CALÇADISTA

2.6.2 Ocupação de novos territórios

tecnológicas, organizacionais e de flexibilização do trabalho”, conforme sugerem Neves e Neto (2006, p. 35).

2.6.2 Ocupação de novos territórios

Entendemos como novos territórios aqueles gestados pelo capitalismo flexível e de acordo com a sua lógica. Os novos territórios surgiram no contexto da reestruturação produtiva, em função desta, a serviço das necessidades de expansão da globalização do capital, expansão da acumulação e para isso também a expansão das suas zonas de exploração.

O espírito que deu norte ao processo de migração de capital produtivo para zonas sem tradição industrial como o Haiti, a fronteira do México e zonas rurais do nordeste brasileiro encontra expressão mais franca na declaração de um diretor de um dos maiores grupos europeus, citado por François Chesnais, para o qual a globalização é:

a liberdade para o seu grupo de se implantar onde ele quiser, o tempo que ele quiser, para produzir o que ele quiser, comprando e vendendo o que ele quiser, e tendo que suportar o menor número de obrigações possíveis em matéria de direito do trabalho e de convenções sociais (CHESNAIS, 1997 apud HIRATA, 2001, p. 142).

Os grandes grupos econômicos ligados ao setor calçadista foram atraídos por governos estaduais no Nordeste brasileiro não só pelas suas políticas de isenções fiscais e apoios creditícios, mas especialmente porque estes governos venderam de alguma forma a ideia de que os trabalhadores nordestinos são mais dóceis porque não organizados politicamente e (talvez por suspeitar disso) se encarregaram de dispersar a produção por município. Tudo isso foi feito em nome do desenvolvimento regional!

Resultado deste processo, o Estado do Ceará recebeu empresas de grande porte, geralmente empregando mais de 500 trabalhadores. Uma emprega 16.365 num município com cerca de 80.000 habitantes; a outra empregava 2.400 trabalhadores em outro município (RIGOTTO, MACIEL E BORSOI, 2010).

Na Bahia, a unidade de Itapetinga, a primeira e a maior já implantada no Estado, em 2001 empregava 4.412 com 3.309 em Itapetinga (complexo industrial e em três galpões) e 1.103 dispersos em dez municípios: Itororó (três galpões); Itambé (dois galpões), Potiraguá; Itarantim; Macarani (dois galpões); Maiquinique; Firmino Alves (dois galpões); Ibicuí; Iguaí;

e Caatiba (BAHIA, 2000). Segundo dados da FIEB, entre 2010 e 2011, a empresa chegou a empregar 10.741 trabalhadores e trabalhadoras.

A fragmentação da produção tem levado a uma grande fragmentação dos trabalhadores. Três sindicatos de trabalhadores ligados ao setor calçadista foram encontrados por Lima, Borsoi e Araújo (2011). Na Bahia, em estudo anterior,identificamos quatro sindicatos em um Estado com empresas deste tipo em apenas 24 municípios27.Trabalhadores, dirigentes sindicais, prefeitos e vereadores, comerciantes e a população em geral convivem com a ameaça constante de migração do capital e de fim do emprego e da renda. Esta questão aparece em pesquisa realizada por Oliveira (2002) no município de Itapetinga:

a cidade tem vivido constantemente sob a ameaça de que o investimento migre para outras regiões, diante das tentativas de organização sindical dos trabalhadores, uma vez que as principais vantagens locacionais que motivaram a vinda desta empresa para o Nordeste foram os baixos salários praticados e a baixa capacidade organização (sic) da classe trabalhadora nesta região (OLIVEIRA, 2002, p. 224).

Um novo movimento de deslocalização da produção para países com mão de obra mais barata, como a China, vai ocorrer e com grande repercussão entre 2012 e 2013 quando cerca de 4.000 trabalhadores foram demitidos pela empresa no referido município. Frente ao fechamento de unidades produtivas, mobilizações foram realizadas pelos prefeitos de Itapetinga e de toda a região que contava com plantas industriais. Por iniciativa da Câmara de Vereadores de Itapetinga foi realizado o I Encontro de Prefeitos e Vereadores da Região para Discutir a Crise no Setor Calçadista. Objetivo comum era impedir as demissões, tomando medidas28 para manter o emprego29.

As facilidades em mobilidades são dadas tanto pelas características próprias do setor e pelas características nos novos territórios. Como lembra Lima, Borsoi e Araújo (2011, p.382), as fábricas são facilmente desmontáveis. “O caráter modular da produção, o baixo ou quase inexistente investimentos em infraestrutura – fornecida pelo estado – minimizam prejuízos, bastando às fábricas encaixotarem suas máquinas para migrar para um novo local”.

27 Cerqueira (2007) identificou, através dos dados do Banco de Investimentos Diretos (BID) que, entre 1994 e

2004, 24 municípios receberam investimentos no segmento calçadista.

28 Entre as medidas, indicaram: realizar audiências com presença do Governador do Estado da Bahia; Formação

de um Bloco Parlamentar com Deputados Federais e Estaduais da Região; Formação de Gabinete Intersetorial formado por Prefeitos, Vereadores, Sindicato dos Trabalhadores, representante da Vulcabrás/Azaléia e outras organizações da Sociedade Civil; Audiência com Ministro da Fazenda, Guido Mantega em Brasília.

29Informações disponíveis em http://www.itapetinganamidia.com/itapetinga-sedia-o-1%C2%BA- encontro-de-prefeitos-e-vereadores-da-regiao-para-discutir-a-crise-no-setor-calcadista/, em 14 de janeiro de 2015.

Em estudo anterior, constatamos algo semelhante em Ipirá. O sindicato organizou uma greve para uma segunda-feira. Durante o processo de mobilização contou com forte apelo operário. As reivindicações eram reajuste salarial; que, ao final das jornadas, a empresa fizesse a manutenção das máquinas para evitar acidentes no trabalho; fim do “banco de horas” e cesta básica. A empresa respondeu sorrateiramente simulando a sua saída do município. Ameaçou abandonar a produção, fazendo uso da mentira e da manipulação, explorando sentimentos como o medo de perda do emprego. Conforme narrativa de um ex-trabalhador (costureiro), irmão de uma das dirigentes sindicais articuladora da greve:

“Antes, logo que eu entrei na fábrica, eu não era filiado, mas teve até a questão de uma paralisação que viria a ter; só que, por eles fazerem um ‘teatro’, o pessoal teve medo... o ‘teatro’ que eles fizeram foi colocar na mente dos funcionários que eles sairiam daqui da cidade caso alguém fizesse greve, tanto que, na esteira que eu trabalhava, quando eu cheguei, não tinha nenhuma máquina de costura. Aí foi até um serão, eu me lembro como hoje, eles chamaram todo mundo para fazer serão e, no outro dia, quando a gente chegou, nesse sábado, já não tinha nenhuma máquina no local e eles liberaram a gente. Disse que não ia ter mais serão não, e aí acho que jogou na boca de alguém que a fábrica ia embora e aí a notícia se espalhou. A paralisação seria na segunda e aí o pessoal já não paralisou mais. Foi trabalhar todo mundo, normalmente, com medo da fábrica ir embora. O sindicato ainda tentou. Era Dene que era o presidente, e ele foi lá frente, conversou com o pessoal só que o pessoal nem ouvido deu mais a ele. Porque, antes, o pessoal estava parando, ouvindo o que ele estava dizendo, muita gente dando crédito, tinha gente que batia palma, logo depois disso, aí, nem parar o pessoal parava mais. Foi medo, puro medo. O povo tem medo e eles sabem que o povo tem medo e se aproveitam disso. Eles sabem das condições da cidade, que a cidade não proporciona emprego suficiente para todos, eles sabem que eles são muito importantes, mas se esquecem que nós também somos muito importantes para eles, que sem a gente não tem produção (Everaldo, 19 anos, cor parda, solteiro, filiado) (SILVA, 2008, p. 176-177) (grifo nosso).

A manobra para subordinar os trabalhadores, impedindo-os de participar da greve, envolveu o uso de máquinas velhas para montar o cenário do ‘teatro’. Uma funcionária que trabalhava no setor de limpeza explicou como se deu a construção da cena.

A última vez que teve a greve, aí o pessoal, ficou com medo, o pessoal da fábrica ameaçou fechar a fábrica. Eu digo, porque eu trabalhava na limpeza e eu sei, né? Eles pegaram um mocado de máquinas que estavam no almoxarifado, velhas, que não prestavam mais e encheram os caminhão, dizendo que estava levando as máquinas da fábrica embora e que ia fechar. Aí, pronto, todo mundo se ‘pelou’ de medo, aí ninguém quis fazer mais greve, todo mundo ficou pianinho, todo mundo ficou com medo de fechar... (Magnólia, 24 anos, casada, uma filha, atualmente, filiada ao sindicato) (SILVA, 2008, p. 177-178) (grifo nosso).

Como afirma Bourdieu, quando o desemprego atinge taxas muito elevadas e, em função disso, o emprego se torna “uma coisa rara, desejável a qualquer preço”, os trabalhadores são submetidos aos empregadores e esses “usam e abusam do poder que lhes é dado” (BOURDIEU, 2000, p. 122). A empresa trabalha a partir desse medo do desemprego que leva todos a uma insegurança generalizada. A empresa flexível baixa custos com a produção gerindo de forma racional a insegurança generalizada. É a flexploração ou o que Bourdieu vem denominando “gestão racional da insegurança” (BOURDIER, 2000, p. 125).

O medo e a insegurança que tão bem caracterizam as relações de trabalho na contemporaneidade, mas especialmente em territórios sem indústrias e com muita dependência de qualquer emprego foi mencionada em importante estudo sobre a indústria automobilística implantada em Resende no RJ, coordenado por Ramalho e Santana (2006), especialmente o trabalho de Rocha (2006), envolvendo trabalhadores da VW. Neste é possível perceber que um dos principais problemas que aflige os trabalhadores é a preocupação com a manutenção dos seus empregos: 48% deles estão “ora preocupado” e 22% deles estão “ora muito preocupado”. 70% dos entrevistados teme perder o emprego.

O tema reaparece na pesquisa quando os entrevistados foram interrogados sobre temas que deveriam orientar a ação sindical: 71% indicaram como tema “a estabilidade no emprego”. Esta preocupação reaparece em outro momento quando apontam como principal expectativa com relação ao papel do sindicato o “diálogo com a empresa” (82%) seguido de formação profissional (81%) – que também está relacionado com o medo de perder o emprego. Ainda segundo Rocha, “A função precípua do sindicato – organizar os trabalhadores – aparece apenas em terceiro lugar no rol das expectativas dos trabalhadores com 62%” (ROCHA, 2006, p. 109).

O alvo prioritário da política centrada na manipulação e exploração objetiva e subjetiva de uma condição muito vulnerável devida e de trabalho é uma força de trabalho jovem, a maioria em seu primeiro emprego, podendo ser feminina ou masculina a depender do setor de atividade e segundo a lógica da divisão sexual do trabalho e dos usos que o capital faz dela em territórios sem trabalho e sem luta organizada.

Na indústria automobilística investigada por Ramalho e Santana (2006, p. 99) a preferência é “pelo operário local, com raízes no município, mas sem experiência profissional e política”. Trata-se de uma força de trabalho bastante masculina (97%) e predominantemente jovem (70% têm no máximo 34 anos).

Na produção calçadista no Ceará, dos 197 entrevistados por Lima, Borsoi e Araujo (2011), 76,6% tinham idade entre 18 e 30 anos, 51,3% se declararam solteiros e eram,

majoritariamente, do sexo feminino. Em estudo anterior, Rigotto (2008) analisa uma unidade produtiva de calçados instalada em Maranguape, no Ceará, na qual encontramos a mais alta taxa de participação das mulheres na produção de calçados: de um total de 2.500 trabalhadores(as), elas representam 66%. A força de trabalho dessa unidade é “jovem, muito jovem”.

Em Ipirá-Ba, em estudo anterior, encontramos perfil muito jovem e bem distribuído do ponto de vista sexual. Dos 1733 trabalhadores identificados através dos dados fornecidos pela empresa, 1061 eram jovens com idades entre 18 e 25 anos. Destes, 581 são do sexo masculino e 480 do sexo feminino. Após os 40 anos, apenas 19 homens e 13 mulheres conseguiram uma vaga na fábrica. E a partir dessa idade, somente os homens conseguiram ter acesso à empresa.

Os salários auferidos na indústria calçadista são muito baixos, concorrendo a uma dos mais desprezíveis da produção industrial. Em Resende, no setor automobilístico, 65% dos trabalhadores recebiam de 3 a 5 SM – valor acima da média da região local e bem abaixo do valor pago no ABC paulista.

No Ceará, a maioria recebia de 1 a 2 SM, segundo Lima, Borsoi e Araújo (2011); e Rigotto (2008) aponta que em Maranguape 85,77% dos trabalhadores recebiam de 1,01 a 1,50 SM e apenas 6,07% encontram-se entre os que ganham de 1,51 a 2,00 SM. Esta autora observa, a partir de análise comparativa, que em Picada Café apenas 10,80% dos trabalhadores da indústria calçadista recebiam na faixa mais baixa.

Na segunda faixa, a situação fica invertida com 49,68% dos operários; e 33,91% destes, recebem de 2,01 a 3,0 SM. Em Ipirá estas diferentes faixas salariais inexistem para o operariado, na medida em que a empresa paga uma salário levemente acima do salário mínimo a todos da produção, independente do sexo e do conteúdo do trabalho realizado (costura, corte, montagem para citar os mais caros). A unidade de Ipirá extinguiu as categorias profissionais. Todos são contratados como Trabalhador polivalente ou Operador do Calçado (SILVA, 2008).

Que outros experimentos vêm sendo realizados pela empresa flexível? Aqui concebida enquanto empresa reestruturada segundo a lógica do capital flexível ou por ela constituída em novos territórios com o objetivo de produzir cada vez mais com menos trabalhadores,

lançando mão de relações cada vez mais flexíveis Que experimentos seguem realizando na

incessante busca pelo aprimoramento do método para reduzir custos?

Um possível experimento no nível da hierarquia técnica nos foi apontado por Santos (2004) quando identificou em empresas do polo gaúcho – berço da maioria das empresas que migraram para o Nordeste brasileiro – a tendência à extinção do trabalhador coringa e a sua

substituição por uma nova função criada pela reestruturação produtiva: a auxiliar de chefia. Em estudo sobre as fábricas do Ceará, Rigotto, Marciel e Borsoi (2010) encontraram a

auxiliar de produção como cargo de comando. Que trabalho é esse realizado pela auxiliar de chefia ou auxiliar de produção?

Em estudo anterior, também identificamos o auxiliar na empresa calçadista em Ipirá. [...] a unidade produtiva gaúcha implantada em Ipirá não possui o trabalhador “coringa”. Nessa unidade encontram-se os(as) supervisores(as) gaúchos(as), que ficam observando e dando opinião aos que, na rígida hierarquia da empresa, lhes são subordinados: os chefes, ipiraenses, os que geralmente, colocam a mão na massa30 e que contam com um auxiliar de chefia o qual, segundo as palavras de um chefe da montagem, trabalha um pouco mais que o operário, organiza a esteira... é o cara que trabalha junto comigo, é o meu braço direito. Abaixo dos(as) auxiliares, vêm os(as) trabalhadores(as) da produção [...] (SILVA, 2008, p. 161).

E durante este estudo, entrevistamos dois trabalhadores ocupantes destes cargos e verificamos, mas não aprofundamos a análise, situação absurdamente precária envolvendo o trabalho do auxiliar de chefia, especialmente no que diz respeito às condições de trabalho, à jornada, à polivalência e ao salário. Um deles, um homem jovem negro, funcionário do setor do corte de couro31 relatou o seguinte:

O meu trabalho agora está muito pesado e eu já pedi até para eles colocarem alguém lá para me ajudar e eles disseram que não tem condições, mas, só que tem condições. Tá muito pesado; tem que tá pegando muito rolo de material, peso assim de 50, 60 quilos, praticamente, o dia todo e quando chega determinado horário eu já estou muito cansado... eu já cheguei a dizer a eles que estou parecendo um jegue de carga lá de junto das máquinas, carregando peso, pra cima e pra baixo(risos) (Auxiliar do setor de corte do couro, mais ou menos 30 anos, negro, solteiro) (SILVA, 2008, p. 198) (grifo nosso).

Qual impacto deste trabalho pesado e penoso sobre a saúde da chefia? O que significa ser “braço direito” do coordenador? Aquele auxiliar de chefia dá algumas pistas que precisam ser compreendidas melhor através de estudo específico:

Geralmente todo mundo chega 6:00 em ponto e passa o cartão; eu não, no caso, por ser auxiliar, eu tenho que chegar sempre antes, quinze minutos e, se for possível, até meia hora antes. [...] para todo mundo trabalhar às seis horas eu tenho que fazer uma correria grande, antes, tem que ver isso, tem que ver aquilo, o que vou fazer, o que não vou, tem que olhar se todo mundo está, que máquina que está quebrada, se o mecânico está aí, se estão consertando; então tudo eu tenho que fazer nesses quinze ou vinte minutos;

30 Trechos do depoimento de uma ex-chefe do setor de costura.

31 Mesmo não sendo sujeito da nossa pesquisa (que tinha como sujeito central os operários), incorporamos à

amostra algumas entrevistas com chefes pela visão mais abrangente que estes possuem do trabalho na fábrica ou pelo menos no seu setor.

seis horas em ponto está todo mundo na minha frente trabalhando, se eu não fizer isso, aí vem o meu chefe pra cima de mim, vem o meu supervisor, ‘Fulano o que é que está acontecendo? Que é isso, que é aquilo?’ (grifo nosso).

[...]

Quando bate 16:08 todo mundo desliga suas máquinas e sai, mas só que o certo é para mim sair 16:08, mas, geralmente eu saio 16:30, 17 horas; às vezes, se for fazer “serão” ou hora-extra, eu saio 18 horas, 19 horas; e é essa agonia todos os dias, é sempre a mesma agonia, todo dia a mesma agonia (SILVA, 2008, p. 170 a 171) (grifo nosso).

Como a violência se expressa no trabalho de chefia neste contexto de pressão no trabalho, de imposição de metas e de prazos apertados e de pressão dos clientes? Rigotto, Marciel e Borsoi (2010) chamam a atenção para uma dimensão desta violência: o choque cultural. O “de fora” traz uma “cultura de fora”, impõem regras burocráticas e ritmos desconhecidos pelos que vivem nos territórios sem indústria.

Outra dimensão analisada por estas autoras é o uso do assédio moral enquanto prática organizacional deliberada pela empresa como um meio para intensificar a produção e atingir as metas. E para isso a empresa flexível divide os trabalhadores, estimula a competição entre eles, e exige que a chefia dê o pior de si.

[...] Só que eles [gerentes] falam pras pessoas [supervisores, auxiliares de produção] mudarem, entendeu? Eles falam! Não é porque as pessoas sejam ruins, é porque eles [gerentes] fazem! Eu digo porque eu cheguei a participar assim de reunião. Eles obrigam as pessoas a ser ruim lá dentro com os funcionários! Eles ensinam como é pra ser. A pessoa tem que ser assim e pronto! [...] Eles exigem o pior de você! Quero não, mulher! (Francisca, Empresa A) (RIGOTTO, MACIEL E BORSOI, 2010, p. 225) (grifo nosso).

O relato de Francisca é muito claro no sentido de mostrar que há uma recusa ao trabalho que corrói o caráter. Aquilo que Sennet denominou corrosão do caráter enquanto processo que resulta das relações individualistas estimuladas pelo capitalismo flexível. Valores humanitários como a solidariedade e o cuidado são negados e em seu lugar afirmam- se os princípios do toyotismo: não importa como, dê conta! É o que fica demonstrado no depoimento abaixo sobre a demissão de um supervisor:

(...) supervisor bom lá pega beco é cedo. Eles não valorizam gente que valoriza funcionário. Se você valorizar funcionário e não a empresa, você está ferrado, está desempregado. Você tem que valorizar primeiro a empresa, o funcionário é o resto, o funcionário é a máquina para você trabalhar. (...) eles querem saber que o cara dê conta, cobre, cobre, sem receber nada em troca. (Armando, Empresa B). (RIGOTTO, MACIEL E BORSOI, 2010, p. 224) (grifo nosso).

Pela maior proximidade com o operariado, o auxiliar de chefia pode ser o mais pressionado a assediar moralmente:

O “pior de você”, muitas vezes, torna-se uma exigência para que trabalhadores mantenham-se em postos de mando, principalmente quando se trata de posições hierárquicas mais próximas de quem executa as tarefas operacionais na produção. (RIGOTTO, MACIEL E BORSOI, 2010, p. 225) (grifo nosso).

Por fim, consideramos importante aprofundar a análise deste trabalho que tem levado mulheres à sua recusa. Francisca afirmou em entrevista “Quero não, mulher!”. O que este não pode informar sobre as condições de trabalho, inclusive sobre as razões para uma maior empregabilidade de mulheres nos referidos cargos. Sabemos que o acesso das mulheres a cargo de chefia tem sido historicamente limitado por inúmeras barreiras.

Antes do surgimento das grandes corporações capitalistas, as corporações pré- capitalistas, mesmo aquelas de predominância feminina, já excluíam as mulheres dos cargos de maestria. Saffioti (1979), ao fazer referência ao estudo realizado por Madeleine Guilbert, lembra os obstáculos impostos às mulheres na França medieval, a exemplo das viúvas do mestre a quem era concedido o acesso ao posto de mestre desde que não se casasse novamente.

Por outro lado, estudos como o de Santos (2004) envolvendo o setor calçadista dão conta de que só recentemente as mulheres acessaram cargos de comando. A presença em cargos de comando – ainda minoritária, mas inegavelmente expressiva – é o que temos de novidade no trabalho feminino industrial, em geral, e na indústria calçadista, em particular na atual conjuntura do capitalismo. Melo (2000) aponta que na indústria de transformação, a presença de mulheres gerentes dobrou num intervalo de 12 anos: em 1985 existiam 22.396 mulheres gerentes e esse número se elevou para 52.752 em 1997. Presença ainda maior nos cargos mais inferiores como as chefas de seção: em 1985 elas somam 17.462 e chegam a somar 55.106 em 1997.

Em campo, durante a pesquisa de mestrado em Ipirá na Bahia, mulheres foram vistas ocupando cargos de chefia, sobretudo na costura. Guimarães (2001, p.90) menciona estudos de Bruschini, que apontam o importante “afluxo de mulheres a posições de chefia” na administração, e destaca que “na indústria – e em setores tradicionais como o têxtil – a redução no número de ocupadas anda de braços com um crescimento importante, de 62% (...) das mulheres mestras, contra mestras e técnicas”.

A identificação de mulheres recusando os cargos de chefia pode ser sugestiva da natureza das relações flexíveis no trabalho, além do fato de apontar retrocesso no que diz