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ODE À POESIA POLONESA CONTEMPORÂNEA

No documento Ano I 1 / 2010 CURITIBA - PR (páginas 167-172)

Rafael VOIGT LEANDRO

A revista Poesia Sempre, publicada pela Fundação Biblioteca Na- cional, costuma dedicar a cada número uma seção especial em homena- gem à poesia de outros países ou a poetas nacionais. Em 2008, o periódico dedicou aproximadamente cem páginas para a poesia polonesa contem- porânea.

Em suas palavras iniciais, o editor Marco Lucchesi destaca o an- tigo intercâmbio poético existente entre Polônia e Brasil. Não é demais recordar que, na segunda metade do século XIX, a lírica do romântico Adam Mickiewicz sensibilizou dois grandes nomes da literatura brasilei- ra: Machado de Assis e Castro Alves.

A organização do número polonês de Poesia Sempre ficou a cargo dos professores Henryk Siewierski (UnB) e Marcelo Paiva de Souza (UFPR), ambos com vasta experiência na tarefa de traduzir para o portu- guês a poesia e a prosa polonesas.

No prefácio Têmpera e força, Siewierski e Souza salientam o inte- resse de poetas contemporâneos brasileiros, como Paulo Leminski e Ana Cristina César, pela poesia polonesa. Encarregam-se de lembrar ao públi- co a receptividade do mercado editorial brasileiro à ficção polonesa. Res- saltam, inclusive, o fato de a maior parte dos poemas pertencentes a essa miniantologia não ser inédita no Brasil, o que pode ser considerado como ponto positivo, uma vez que reverencia o já antigo trabalho de divulga- ção da literatura polonesa no Brasil.

É no mínimo curiosa a presença do texto Contra os poetas, de Wi- told Gombrowicz, traduzido por Marcelo Paiva de Souza. À primeira vista, o leitor poderá pensar: Qual a razão desse manifesto em desfavor dos poetas? Porém, não é à toa que as ideias de Gombrowicz pairam ali. Não existe por trás disso qualquer intenção de desestimular o leitor. Muito pelo contrário.

A tese de Gombrowicz não está contra todos os poetas. Embora, logo de saída, afirme não gostar de poemas e confesse que esses o chatei- am, o ficcionista polonês, na verdade, põe filosoficamente em xeque a poesia engendrada na arte pela arte. Julga-se cansado do “excesso de poesia, o excesso de palavras poéticas, o excesso de metáforas, o excesso de sublimação, o excesso, enfim, de condensação e de limpeza de todo elemento antipoético (...)”.

Ao traçar sua espécie de Poética aristotélica, Gombrowicz conside- ra o poeta como “o ser que já não pode expressar a si mesmo”. Dotado de postura artificial, distante da realidade, o vate não é capaz de comunicar a relação entre ele e o mundo, nem mesmo confrontar sua realidade factual com outras realidades. Firma-se apenas no propósito de adorar a palavra poética e glorificar a vocação do Poeta. Nesse mundo hermético, fonte eterna de deleite de uma classe inacessível, ilhada em seu Parnaso, o poema não poderia ser o instrumento de representação das verdadeiras demandas da sociedade. Diante disso, Gombrowicz é taxativo: “(...) Os Poetas tornaram-se escravos – e poderíamos definir o poeta como o ser que já não pode expressar a si mesmo, porque precisa expressar o Poe- ma.”

Essa dialética de Gombrowicz, discutida por Márcia Sá Cavalcan- te Schuback, no breve ensaio Literatura em fuga da filosofia, estampado nessa edição especial de Poesia Sempre, revela o olhar “socrático- filosófico-existencialista” do autor de Ferdydurke. Segundo ela, nos Diários do ficcionista polonês, percebe-se um forte embate entre a forma e o eu. O ensaio de Witold Gombrowicz desafia o leitor a desmanchar esse im- pério poético de culto irrestrito à forma, construído há séculos, ou ao menos a encontrar amostras de poetas distintos dessa concepção. A mo- derna poesia da Polônia auxiliaria o leitor na concretização de algum desses intentos?

Para responder a essa pergunta, torna-se necessário ler e analisar os dez autores que participam dessa miniantologia. Porém, antes de tudo, cabe relacionar os nomes dos tradutores responsáveis pela versão portu- guesa dos poemas: Aleksandar Jovanović, Ana Cristina César, Fernando Mendes Vianna, Grażyna Drabik, Henryk Siewierski, José Santiago Naud, Marcelo Paiva de Souza, Nelson Ascher, Regina Przybycień e Zbigniew Wódkowski.

Na abertura da coletânea, encontram-se três poemas de

ALEKSANDER WAT, poeta de Varsóvia ligado ao movimento futurista

polonês. O primeiro deles é um poema sem título, que sinaliza o desinte- resse de Wat pela métrica clássica. Apesar de fazer referência a Ulisses e Penélope, dois clássicos personagens da Odisseia homérica, o eu-lírico de Wat não se interessa em afagar as musas. Sua intenção concentra-se no jogo da linguagem, na própria destituição de sentido das palavras e con- ceitos, sem deixar de refletir sobre a condição existencial do ser humano no princípio do século XX. Em Poeta, Wat aborda o que o poeta é ou pode ser conforme sua vontade. Em Véspera em Notre-Dame, o eu-poético exalta o potencial sinestésico da Catedral de Notre-Dame.

CZESŁAW MIŁOSZ surge com seu aguçado senso da realidade em

seis poemas. Em Economia Divina, o leitor depara-se com as consequên- cias catastróficas resultantes de um momento de epifania. O discurso poético de Linhagem explicita o modo como inconscientemente nos ali- mentamos de nossas heranças ou vivências histórico-culturais. A experi- ência mimética da realidade entoada no poema Rios evidencia um traço característico da poética do ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1980. De sua lavra de conotação espiritualista ou teológica, aparecem Maria Madalena e eu, assim como Leituras. Para fechar sua participação, Mestre do meu ofício rende culto à memória do poeta Jarosław Iwaszkie- wicz. E aproveita a ocasião para discutir o dialogismo entre a morte e o mistério do tempo.

TADEUSZ RÓŻEWICZ entra na coletânea como fiel representante

dos poetas que publicaram logo após a II Guerra. Seus versos compostos por palavras simples carregam a memória das vítimas daquele período de horror instalado pelos regimes totalitários. A poética de Różewicz ressalta a necessidade de reconstrução da identidade no pós-guerra. Ao refletir sobre sua poesia, Różewicz mostra-se consciente das limitações inerentes ao próprio ato de versejar.

Na sequência, abre-se um grande espaço para a heterogênea Ge- ração de 56. TYMOTEUSZ KARPOWICZ apresenta sua vinculação à poesia de tendência linguística. Karpowicz parece explorar ao máximo o sentido das palavras na cadenciada sintaxe de seus versos. Em algumas passa- gens, exige dos leitores certa habilidade para estreitar relações semânticas que, por vezes, se distanciam no texto ou no contexto. Em Sonho, seu jogo

linguístico possibilita a metáfora da metáfora: o poeta vê-se envolto pelas asas de uma borboleta criada poeticamente por ele mesmo. No caso de

MIRON BIAŁOSZEWSKI, nota-se igualmente o semanticismo de sua lírica

sensível. O eu-lírico de Auto-retrato busca o autoconhecimento pela alte- ridade e pela negação do próprio descobrimento de si mesmo.

Em lugar de incontestável realce, WISŁAWA SZYMBORSKA emerge da ilha da Utopia. A simplicidade de sua linguagem poética não permite ao leitor a fuga romântica da realidade. A tortura, o terrorismo, Hitler, a guerra, a memória, a mulher, o Vietnã, são temáticas tratadas sob uma ótica incomum. Em tom coloquial, a ganhadora do Prêmio Nobel de Lite- ratura de 1996 põe o leitor cara a cara com problemas simples na forma, mas complexos na essência. Impossível quedar-se ante os problemas filosóficos dessa poetisa. O paradoxo poético de Szymborska ecoa em figuras de linguagem engenhosamente construídas para que a catarse acompanhe o leitor ao longo da leitura.

Como indicativo da diversidade de estilos dos poetas dessa gera- ção, ZBIGNIEW HERBERT vem acompanhado do alter-ego do homem da

segunda metade do século XX: o senhor Cogito. A mensagem e as aven- turas dessa personagem representam e discutem a moral e a ética abala- das pela Guerra. A razão, o orgulho, o desprezo, a ira, o misterioso poder da música permeiam as nossas cogitações de leitores. No plano formal, Zbigniew Herbert não se preocupa com vírgulas e pontos, como se esses sinais pudessem obstar o sentido pleno das palavras e dos versos. Ao retirar lições do comportamento de elementos da Natureza, como em A pedra e Ao rio, Herbert aponta para novos modos de aprender a ética. A tradição mitológica representada no duelo entre Apolo e Mársias é embe- bida em doses de ironia. A trenodia, forma poética tão ao gosto de Jan Kochanowski, ressoa com ares modernos na voz do eu-lírico Fórtinbras, rei da Noruega e personagem da tragédia shakespeariana Hamlet. Ele persegue a alma do falecido príncipe Hamlet, retirando-o de sua aura heroica e refletindo sobre a dimensão mais humana da vida. Em Carroça, o poeta questiona-se acerca do futuro da poesia tradicional ao confrontar a tradição e a modernidade presentes em um tanka do imperador-poeta Hirohito.

Ainda da Geração de 56, há um poema intitulado Limpos, de

confronta a feiura e a beleza. Contrariando a paradigmática supremacia do belo, aposta no culto ao repugnante e desagradável. Por meio da anti- poética, combate o aprisionamento do homem num falso paraíso de con- vicções morais e intelectuais inabaláveis, incompatível com o mundo atual macerado por incertezas.

Para arrematar a antologia, consta uma dupla de representantes da Geração de 68. ADAM ZAGAJEWSKI escreve sobre Derrota e Mircea Elia- de, historiador e romancista romeno. Os dois poemas dialogam entre si. No contexto de reconstrução do pós-guerra, o eu-lírico de Derrota permi- te-se falar de amor e de esperança, mas, é claro, sem esconder as feridas ainda abertas pelo beligerante século XX. No poema seguinte, Zagajews- ki leva os “demônios da Europa do Leste” para o funeral de Eliade, haja vista atração deste historiador da religião pelo fascismo. Na mesma linha dessa poética, STANISŁAW BARAŃCZAK questiona-se a respeito dA longevi- dade dos verdugos. Por que vivem saudáveis até uma idade avançada? Por que são velhotes vigorosos? Por que se mantêm entre nós? Esses porquês sem respostas, suscitados diretamente no poema, mostram a nossa inca- pacidade para entender “a diferença entre o prêmio e o castigo”.

Ao término da leitura, o leitor poderá, quem sabe, responder aos questionamentos levantados pela crítica literária de Witold Gombrowicz em Contra os poetas. Traçar as devidas distinções entre os poetas delinea- dos por Gombrowicz e a poesia praticada pelas gerações de poetas polo- neses selecionadas para essa miniantologia será o trabalho do leitor. Po- de-se dizer que são dois universos poéticos situados a uma distância considerável. Ao ler essa seleta, é preciso repensar as inúmeras facetas do discurso sagaz de Gombrowicz contra a Poesia e os Poetas. Pelo cotejo de ideias, será possível notar por onde caminhou e caminha a poética polo- nesa.

Esse número da revista Poesia Sempre simboliza um novo capítulo da história de relações literárias e culturais entre Polônia e Brasil. Nesse ponto, mais uma vez deve ser ouvida a voz Gombrowicz: “Se (...) quere- mos nos dar conta de nossa situação real no mundo, não podemos evitar o confronto com outras realidades, diversas da nossa.” Os responsáveis por Poesia Sempre partilham desse ideal. Por conseguinte, escreveram essa inestimável ode à poesia polonesa contemporânea.

No documento Ano I 1 / 2010 CURITIBA - PR (páginas 167-172)